Análise Econômica do Direito e a execução da pena de multa pelo Ministério Público: quando a eficiência econômica não prevalece sobre a finalidade punitiva

Análise Econômica do Direito e a execução da pena de multa pelo Ministério Público: quando a eficiência econômica não prevalece sobre a finalidade punitiva

Prof. Gustavo Cordeiro

Introdução: o paradoxo da execução “antieconômica”

Imagine uma situação aparentemente absurda: o Estado gasta R$ 5.000 para executar uma multa de R$ 500. Do ponto de vista puramente econômico, essa operação seria claramente ineficiente. Contudo, o Superior Tribunal de Justiça, em recente julgado (REsp 2.189.020-SP), decidiu que essa “ineficiência” econômica não justifica a extinção da execução penal da multa pelo Ministério Público.

Este caso ilustra perfeitamente um dos grandes debates da moderna ciência jurídica: até que ponto a Análise Econômica do Direito (AED) deve influenciar as decisões do sistema de justiça criminal? A resposta, como veremos, não é simples e revela tensões fundamentais entre eficiência econômica e finalidades punitivas do direito penal.

A Análise Econômica do Direito: descomplicando o conceito

O que é AED na prática?

A Análise Econômica do Direito funciona como uma “calculadora social” que mede se determinada lei ou decisão judicial gera mais benefícios ou prejuízos para a sociedade. É como se perguntássemos: “Vale a pena?” para cada norma jurídica.

Exemplo prático: Imaginem uma lei que obrigue todos os carros a ter airbag. A AED calcularia:

  • Custos: aumento no preço dos veículos, impacto na indústria
  • Benefícios: vidas salvas, redução de gastos hospitalares, menor sofrimento familiar
  • Conclusão: se os benefícios superarem os custos, a lei é “eficiente”

Os três pilares da AED

1. Pessoas são racionais (na maioria das vezes)

  • Todos nós tomamos decisões pesando prós e contras
  • Exemplo: um empresário só contrata mais funcionários se o lucro adicional superar o salário a pagar

2. Incentivos movem o mundo

  • As leis criam “cenouras” (recompensas) e “chicotes” (punições) que mudam comportamentos
  • Exemplo: aumentar a multa por excesso de velocidade reduz infrações de trânsito

3. Nem sempre somos 100% racionais

  • Temos medos irracionais, seguimos multidões, somos excessivamente otimistas
  • Exemplo: medo exagerado de avião (mais seguro) vs. despreocupação com carro (mais perigoso)

Como a AED “mede” a eficiência

Eficiência de Pareto: a situação ideal onde ninguém sai perdendo e pelo menos alguém ganha. É como um “ganha-ganha” perfeito.

Eficiência de Kaldor-Hicks: aceita que alguns percam, desde que os ganhos totais superem as perdas. É a lógica do “bem comum”, mesmo com sacrifícios individuais.

Exemplo da hidrelétrica:

  • Ganha: população com energia barata
  • Perde: moradores deslocados e impactos ao meio ambiente
  • Conclusão AED: se o ganho social total for maior que as perdas, a obra é “eficiente”

Ferramentas práticas da AED

Análise custo-benefício: a conta básica de somar benefícios e subtrair custos

Valoração contingencial: pergunta direta à população: “Quanto você pagaria para ter ar mais limpo?”

Modelos hedônicos: observa o mercado para descobrir valores ocultos

  • Exemplo: casas em bairros seguros custam mais → logo, segurança tem valor econômico

Taxas de desconto: revelam se preferimos benefícios hoje ou no futuro

  • Taxa alta: “prefiro R$ 100 hoje a R$ 110 no ano que vem”
  • Taxa baixa: “aceito R$ 100 hoje para ter R$ 105 no ano que vem”

O dilema da execução da pena de multa: aprofundando a decisão do STJ

O contexto histórico da controvérsia

Execução

A discussão sobre quem deve executar a pena de multa gerou uma das maiores controvérsias entre STF e STJ nos últimos anos. Para entender a dimensão da decisão no REsp 2.189.020-SP, é preciso conhecer essa evolução histórica:

Antes da Lei 9.268/96:

  • Multa não paga = prisão
  • Sistema claramente punitivo

Com a Lei 9.268/96:

  • Multa não paga = dívida de valor
  • Nasceu a confusão: é punição ou arrecadação?

Era STJ (Súmula 521):

  • Entendimento: multa = dívida fiscal
  • Execução exclusiva pela Fazenda Pública
  • Rito da Lei 6.830/80 (execução fiscal)

Era STF (ADI 3.150/DF):

  • Revolução: multa mantém caráter penal
  • Execução prioritária pelo MP
  • Execução subsidiária pela Fazenda (após 90 dias)

A decisão do STJ: análise técnica detalhada

O Ministro Ribeiro Dantas, no REsp 2.189.020-SP, enfrentou questão ainda mais específica: o valor da multa importa para sua execução?

Os argumentos da defesa baseados na AED:

  1. Desproporcionalidade econômica: custo do processo > valor da multa
  2. Princípio da eficiência: CF/88, art. 37 (Administração eficiente)
  3. Analogia com execução fiscal: leis estaduais autorizam não executar valores baixos
  4. Razoabilidade: desperdício de recursos públicos

A resposta firme do STJ:

“A execução da pena de multa ajuizada pelo Ministério Público não pode ser extinta com base no fato de o valor da multa se enquadrar em autorização dada por lei para que se deixe de ajuizar execução fiscal ou no fato de o gasto com o processo superar o valor a ser cobrado.”

Os fundamentos jurídicos da decisão

1. Natureza jurídica da multa penal → O STJ reafirmou que a multa criminal não perdeu seu caráter sancionatório após a Lei 9.268/96. Mesmo sendo “dívida de valor”, continua sendo punição, não tributo.

2. Finalidades distintas

  • Execução penal: prevenção, retribuição, ressocialização
  • Execução fiscal: arrecadação pura

3. Competência constitucional do MP → O art. 129, I, da CF/88 atribui ao MP a ação penal. Essa função se estende até a execução completa da sanção.

4. Impossibilidade de analogia → Leis que autorizam não executar tributos de baixo valor não se aplicam à execução penal, pois os objetivos são completamente diferentes.

Análise crítica: AED vs. finalidades do Direito Penal

O problema da monetização da justiça

A decisão do STJ revela um limite fundamental da AED tradicional: nem tudo pode ser medido em dinheiro. Vejamos por quê:

1. Efeito dissuasório (Deterrence)

  • Se criminosos soubessem que multas baixas não são executadas, haveria incentivo para crimes “baratos”
  • A certeza da punição vale mais que sua severidade
  • Exemplo: multa de R$ 300 executada com 100% de certeza desestimula mais que multa de R$ 3.000 executada apenas às vezes

2. Preservação da autoridade estatal

  • A não execução sistemática corrói a credibilidade do sistema
  • Gera sensação de impunidade
  • Valor econômico: impossível de calcular precisamente

3. Isonomia e justiça

  • Executar apenas multas “rentáveis” discrimina condenados pobres
  • Ricos pagariam multas altas (executadas), pobres teriam multas baixas (não executadas)
  • Contradição: inversão da lógica da individualização da pena

As externalidades ignoradas pela AED tradicional

Externalidades positivas (não contabilizadas):

  • Reforço da autoridade judicial
  • Educação social sobre consequências do crime
  • Satisfação da vítima e da sociedade
  • Fortalecimento do Estado de Direito

Externalidades negativas (se não executar):

  • Sensação de impunidade
  • Descrédito do Poder Judiciário
  • Incentivo a crimes de menor potencial ofensivo
  • Violação da isonomia

Limitações estruturais da AED no Direito Penal

1. Dificuldade de quantificação – Como calcular economicamente:

  • O valor da justiça?
  • O prestígio das instituições?
  • A paz social?
  • A confiança no sistema?

2. Horizontes temporais diferentes

  • AED tradicional: foca resultados imediatos
  • Direito penal: efeitos de longo prazo (prevenção geral)

3. Conflito com princípios fundamentais → A eficiência econômica pode colidir com:

  • Dignidade humana
  • Isonomia
  • Legalidade
  • Proporcionalidade

O impacto do pacote anticrime: mudanças e permanências

A nova redação do art. 51 do CP

A Lei 13.964/2019 alterou o art. 51 do Código Penal:

Redação anterior:

“Art. 51. Transitada em julgado a sentença condenatória, a multa será considerada dívida de valor, aplicando-se-lhes as normas da legislação relativa à dívida ativa da Fazenda Pública, inclusive no que concerne às causas interruptivas e suspensivas da prescrição.”

Redação atual:

“Art. 51. Transitada em julgado a sentença condenatória, a multa será executada perante o juiz da execução penal e será considerada dívida de valor, aplicáveis as normas relativas à dívida ativa da Fazenda Pública, inclusive no que concerne às causas interruptivas e suspensivas da prescrição.”

Controvérsia doutrinária: fim da legitimidade subsidiária?

Posição majoritária da doutrina (Rogério Sanches, Jamil Chaim Alves):

  • O Pacote Anticrime aboliu a legitimidade subsidiária da Fazenda
  • Se o MP não executar, a multa simplesmente prescreve
  • A nova lei não prevê o prazo de 90 dias nem a transferência para a Fazenda

Posição do STJ (mantida):

  • A legitimidade subsidiária persiste
  • Fundamento: decisão do STF na ADI 3.150 não estava baseada apenas na lei, mas na CF/88
  • O art. 129, I, da CF não impede a atuação subsidiária da Fazenda

Questão inédita estilo CEBRASPE

Considerando a jurisprudência do STJ sobre execução de pena de multa e os princípios da análise econômica do direito, julgue o item seguinte:

A execução da pena de multa pelo Ministério Público pode ser extinta quando o valor da sanção for inferior ao custo estimado do processo executivo, em observância aos princípios constitucionais da eficiência e da razoabilidade.

RESPOSTA: ERRADO

Justificativa: Conforme REsp 2.189.020-SP, a execução penal não se submete a critérios puramente econômicos, pois tem finalidade punitiva e preventiva, não arrecadatória.

Considerações finais: o equilíbrio entre racionalidade econômica e valores jurídicos

A decisão do STJ no REsp 2.189.020-SP representa um marco na definição dos limites da Análise Econômica do Direito. Mostra que, embora a eficiência seja valor relevante, não pode sobrepor-se às finalidades essenciais do direito penal.

O caso ensina três lições fundamentais para concurseiros:

1. A AED é ferramenta, não dogma

  • Útil para avaliar políticas públicas
  • Limitada quando aplicada a valores fundamentais
  • Deve ser temperada por princípios constitucionais

2. O direito penal tem lógica própria

  • Finalidades que transcendem a arrecadação
  • Efeitos de longo prazo (prevenção geral)
  • Valores não quantificáveis economicamente

3. A jurisprudência evolui, mas mantém coerência

  • STJ mantém posição firme sobre execução obrigatória
  • Pacote Anticrime reforça competência da execução penal
  • Legitimidade subsidiária da Fazenda permanece controvertida

Para o futuro, espera-se que os Tribunais continuem aprimorando esse diálogo entre eficiência econômica e valores jurídicos fundamentais, sempre priorizando a justiça material sobre a economia processual quando ambas entrarem em conflito.

A execução da pena de multa pelo Ministério Público permanece obrigatória, independentemente de considerações econômicas, pois serve a finalidades que transcendem a mera arrecadação: a manutenção da autoridade estatal, a prevenção criminal e a preservação da isonomia entre os condenados.


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