Absolvição por busca ilegal: transitar em alta velocidade não justifica busca pessoal por guarda municipal?

Absolvição por busca ilegal: transitar em alta velocidade não justifica busca pessoal por guarda municipal?

Uma recente decisão judicial no processo nº 1500148-05.2024.8.26.0548, da 2ª Vara da Comarca de Paulínia (SP), reacendeu o debate sobre os limites de atuação das Guardas Municipais.

Isto é, a sentença absolveu um réu acusado de tráfico de drogas por considerar ilegal a busca pessoal realizada por guardas municipais. Isso levanta questionamentos sobre a conformidade da decisão com o atual entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF).

Imagine as minúcias do caso concreto:

Dois guardas municipais, Alberto e Bruno, realizavam patrulhamento de rotina.

Avistaram uma motocicleta com dois ocupantes trafegando em alta velocidade, ultrapassando um semáforo vermelho.

Os guardas deram sinal de parada, que foi prontamente atendido pelo condutor da moto.

Assim, fizeram uma busca pessoal:

Realizada busca pessoal em ambos os ocupantes da motocicleta, com o condutor (Guilherme), foi encontrada uma porção de entorpecente.

Com o passageiro (Matheus), foram encontrados: uma balança de precisão; dois estojos contendo haxixe e maconha.

A questão posta aqui não será a análise da decisão recente do STF se o caso é de porte de drogas ou se é traficância, apenas quanto a validade das provas.

Assim, os passageiros foram denunciados por tráfico de drogas, mas acabou sendo absolvido em primeira instância. A decisão baseou-se na ilegalidade da busca pessoal realizada pelos guardas municipais.

A sentença fundamentou-se em dois pontos principais:

  1. Ausência de fundada suspeita: o juízo da 2ª Vara da Comarca de Paulínia (SP) entendeu que o simples fato de estar em um veículo em alta velocidade não configura, por si só, fundada suspeita para justificar uma busca pessoal.
  2. Incompetência da Guarda Municipal: a decisão ressaltou que a Constituição Federal, em seu artigo 144, § 8º, atribui à Guarda Municipal apenas a proteção do patrimônio público. Assim, não lhe conferiu poderes para atividades ostensivas de segurança pública.

Aparente contraste com o entendimento recente do STF

Em breve síntese, esta decisão parece contrastar com o recente posicionamento do STF no RE 1468558, julgado em outubro de 2024.

Nessa linha, recentemente, a Primeira Turma do Supremo manteve a legalidade da atuação da Guarda Civil Metropolitana (GCM) de São Paulo em busca pessoal e domiciliar relacionada a crime de tráfico de drogas. Analisamos a decisão aqui no blog:

Isto porque, o STF argumentou que a conduta da Guarda Municipal, no caso analisado, não envolveu diligência ostensiva ou investigativa. Em verdade, houve um caso de flagrante delito, sendo, portanto, válida.

Além disso, o Supremo ressaltou que, desde o julgamento da ADPF 995 em 2023, as guardas municipais foram incluídas entre os órgãos de segurança pública.

O STF, no julgamento da ADPF 995, decidiu que:

Nos termos do art. 144, § 8º, da CF, deve-se conceder interpretação conforme à Constituição ao art. 4º da Lei nº 13.022/2014 e ao art. 9º da Lei nº 13.675/2018 a fim de declarar inconstitucionais todas as interpretações judiciais que excluem as Guardas Municipais, devidamente criadas e instituídas, como integrantes do Sistema de Segurança Pública.

STF. Plenário. ADPF 995/DF, Rel. Min. Alexandre de Moraes, julgado em 29/08/2023.

Análise crítica

Perceba, a decisão da 2ª Vara da Comarca de Paulínia, ao invalidar as provas obtidas pela Guarda Municipal, diverge do entendimento mais recente expresso pelo STF no julgamento do RE 1468558.

Isto porque, esta decisão de primeira instância reflete uma interpretação restritiva do artigo 144, § 8º da Constituição Federal. Esta, historicamente, foi a posição predominante do STJ, mas que agora parece estar em processo de evolução nas cortes superiores, em razão da deferência ao entendimento do STF:

Caso concreto: dois guardas municipais estavam fazendo um patrulhamento nas ruas do bairro quando se depararam com Douglas sentado na calçada. Ao avistar a viatura, Douglas se levantou e colocou uma sacola plástica na cintura. Os guardas municipais desconfiaram da conduta e decidiram abordá-lo. Os agentes fizeram uma revista pessoal e encontraram drogas na posse de Douglas, que foi preso em flagrante. Para o STJ, essa busca pessoal foi ilegal e, portanto, a prova dela derivada também é ilícita.

As guardas municipais não possuem competência para patrulhar supostos pontos de tráfico de drogas, realizar abordagens e revistas em indivíduos suspeitos da prática de tal crime ou ainda investigar denúncias anônimas relacionadas ao tráfico e outros delitos cuja prática não atinja de maneira clara, direta e imediata os bens, serviços e instalações municipais.

A Constituição Federal de 1988 não atribui à guarda municipal atividades ostensivas típicas de polícia militar ou investigativas de polícia civil, como se fossem verdadeiras “polícias municipais”.
O papel das guardas municipais é tão somente o de proteção do patrimônio municipal, nele incluídos os seus bens, serviços e instalações.

A busca pessoal do art. 244 do CPP só será válida se realizada pelos agentes públicos com atribuição. Assim, mesmo se houver elementos concretos indicativos de fundada suspeita da posse de corpo de delito, a busca pessoal só será válida se realizada pelos agentes públicos com atribuição para tanto, a quem compete avaliar a presença de tais indícios e proceder à abordagem do suspeito.

A prisão em flagrante por qualquer do povo, prevista no art. 301 do CPP, só é aplicável para flagrantes visíveis de plano, como, por exemplo, a situação de alguém que, no transporte público, flagra um indivíduo subtraindo sorrateiramente a carteira do bolso da calça de outrem e o detém.

É possível e recomendável que os guardas municipais exerçam a vigilância, por exemplo, de creches, escolas e postos de saúde municipais, de modo a garantir que não tenham sua estrutura física danificada ou subtraída por vândalos ou furtadores e, assim, permitir a continuidade da prestação do serviço público municipal correlato a tais instalações.

Os guardas municipais até podem realizar patrulhamento preventivo na cidade, mas sempre vinculados à finalidade específica de tutelar os bens, serviços e instalações municipais, e não de reprimir a criminalidade urbana ordinária, função esta cabível apenas às polícias, tal como ocorre, na maioria das vezes, com o tráfico de drogas.

Os guardas municipais poderão realizar busca pessoal, mas apenas em situações absolutamente excepcionais – e por isso interpretadas restritivamente – nas quais se demonstre concretamente haver clara, direta e imediata relação de pertinência com a finalidade da corporação, isto é, quando se tratar de instrumento imprescindível para a tutela dos bens, serviços e instalações municipais.

É o caso, por exemplo, de alguém que seja visto tentando pular o muro para fora de uma escola municipal em situação que indique ser provável haver furtado um bem pertencente à instituição e ter consigo a res furtiva; ou, ainda, a hipótese de existir fundada suspeita de que um indivíduo esteja vendendo drogas dentro da sala de aula de uma escola municipal, o que, por certo, deve ser coibido pelos agentes incumbidos de resguardar a adequada execução do serviço público municipal de educação no local. Nessas situações extraordinárias, os guardas municipais estarão autorizados a revistar o suspeito para confirmar a existência do crime e efetuar a prisão em flagrante delito, se for o caso.

STJ. 6ª Turma. REsp 1977119-SP, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 16/08/2022 (Info 746).

Depois do julgado acima, o STF, no julgamento da ADPF 995, decidiu que:

Nos termos do art. 144, § 8º, da CF, deve-se conceder interpretação conforme à Constituição ao art. 4º da Lei nº 13.022/2014 e ao art. 9º da Lei nº 13.675/2018 a fim de declarar inconstitucionais todas as interpretações judiciais que excluem as Guardas Municipais, devidamente criadas e instituídas, como integrantes do Sistema de Segurança Pública.

Atuação das Guardas Municipais

Retomando, o cerne da questão reside na interpretação do dispositivo constitucional que estabelece:

"Os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei".

Tradicionalmente, o STJ tinha entendido que esta redação limita a atuação das Guardas Municipais a funções específicas de proteção patrimonial, não lhes conferindo poderes de polícia ostensiva ou investigativa.

No entanto, o recente julgamento do RE 1468558 pela Primeira Turma do STF indica uma possível mudança de entendimento. Isso porque houve uma validação da atuação da Guarda Civil Metropolitana em um caso de busca pessoal e domiciliar relacionado a tráfico de drogas.

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Logo, esta decisão do Supremo, contrária à da Comarca de Paulínia, sugere uma interpretação mais ampla das atribuições das Guardas Municipais.

É crucial notar que a ADPF 995, julgada em 2023, que incluiu as Guardas Municipais no Sistema Único de Segurança Pública, parece ter aberto caminho para essa nova interpretação.

No entanto, mesmo nessa decisão, o STF não conferiu às Guardas Municipais poderes idênticos aos das polícias. Em verdade, manteve distinções importantes em suas atribuições, como já analisamos.

Alinhamento de interpretações

Portanto, a decisão da 2ª Vara da Comarca de Paulínia, embora alinhada com interpretações anteriores do STJ, encontra-se agora em desacordo com a tendência mais recente manifestada pelo STF.

Torna-se importante também que o STJ reanalise o caso inclusive para que não se tome como parâmetro por decisões do Judiciário brasileiro, como foi o caso.

Até lá, decisões como a da 2ª Vara da Comarca de Paulínia, embora potencialmente sujeitas a reforma em instâncias superiores, continuarão a alimentar o debate jurídico sobre a atuação das Guardas Municipais no Brasil. Isso destaca a tensão entre interpretações mais restritivas e mais amplas de suas atribuições constitucionais.


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