* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.
Volta da gratificação faroeste
A Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro aprovou uma gratificação para policiais civis já apelidada de “gratificação faroeste”, e isso porque ela prevê o pagamento de um bônus em dinheiro para policiais que, dentre outras coisas, consigam “neutralizar” criminosos em ações.
Pelo texto aprovado, a gratificação deve ser concedida “em caso de apreensão de armas de grande calibre ou de uso restrito, em operações policiais, bem como em caso de neutralização de criminosos”.
A gratificação prevista pelo projeto deve ser concedida por ato do governador. Ela varia entre 10% e 150% em relação à remuneração do agente.
Na mesma votação, a Alerj também aprovou emenda que veda que delegado da Polícia Civil chefie força de segurança que atue em “policiamento ostensivo e comunitário”, sob pena de caracterização de desvio de função.
Gratificação semelhante
Gratificação parecida vigorou no Estado do Rio de Janeiro entre 1995 e 1998, e abarcava tanto policiais civil quanto policiais militares e bombeiros militares.
O professor da UERJ Ignacio Cano liderou uma pesquisa à época que embasou a derrubada da medida na própria Assembleia, em 1998.
Os dados apontaram que a média de mortes em ações policiais dobrou após a lei. Entre janeiro de 93 a abril de 95, o estado contabilizou 16 mortes por mês. No entanto, entre maio de 95 a junho de 96, o número subiu para 32 mortes mensais.
Ainda no mesmo período, o registro das mortes por intervenção policial como “Autos de Resistência” também aumentou exponencialmente – com maior incidência em favelas. Ao todo, foram 324 ocorrências em comunidades contra 251 fora delas.
O professor asseverou, agora em 2025:
“O efeito, naquela época - nada surpreendente - foi o aumento das mortes. A gente viu isso muito claramente o aumento da letalidade, porque aumentavam as mortes e não aumentavam os feridos. Então, estava claro que a intenção de matar ficava mais premente para os policiais, que iam ser premiadas e alguns deles foram promovidos - naquela época, tinha premiação e promoção. E o fato de acontecer nesse momento indica que a gente, depois de 30 anos, não aprendeu nada e continua incentivando a morte das pessoas”.
A gratificação faroeste é um benefício pecuniário pago a determinados agentes de segurança que prevê o pagamento em pecúnia de um valor por ações praticadas pelo beneficiário, tais como apreensão de armas ou morte (neutralização) de criminosos. |
Defesas e críticas
A proposta é polêmica, e atrai tanto defensores quanto críticos.
Os defensores acreditam que o pagamento da gratificação faroeste deve ser visto como um importante incentivo para o combate e diminuição da criminalidade, pois estaria reforçando as ações de enfrentamento ao crime, seja por meio da apreensão de armamento ou por meio da neutralização do bandido.
Já os críticos alertam para o perigo dessa gratificação. Isso porque ela poderia, ao contrário do alegado pelos defensores da medida, dar início a um verdadeiro banho de sangue no Estado, com o aumento das mortes e o recrudescimento da violência.
A Defensoria Pública do Rio e o Ministério Público Federal já se manifestaram sobre a medida, taxando-a de inconstitucional.
Análise jurídica
O Ministério Público Federal notificou o governador do Rio Cláudio Castro acerca da inconstitucionalidade da chamada “gratificação faroeste”, destacando que o mecanismo contraria a ADPF das Favelas, já que o Supremo Tribunal Federal suspendeu normas estaduais que avaliassem o trabalho de policiais pela letalidade.

Lembrando que a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil no caso “Favela Nova Brasília”, no Complexo do Alemão.
Na ocasião, entre 1994 e 1995, 26 pessoas foram executadas em duas chacinas e três mulheres, incluindo duas adolescentes, sofreram violência sexual por parte dos policiais.
A Defensoria Público do Rio se manifestou no mesmo sentido do Ministério Público Federal. Ressaltou que a proposta contraria o que ficou definido na ADPF das Favelas, uma vez que a decisão da Corte tem como objetivo diminuir a letalidade policial no Estado, e a norma aprovada cria estímulo financeiro para “o uso máximo e letal da força”.
A manifestação da Defensoria do Rio se deu no bojo da própria ADPF das Favelas, em petição assinada pelo doutor Marcos Paulo Dutra Santos, coordenador do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos da Defensoria do Rio.
A nova gratificação, portanto, estaria indo de encontro ao entendimento da Suprema Corte exarado na ADPF das Favelas. |
Nesse sentido, o Defensor foi incisivo:
“Em sua decisão final, esta Suprema Corte não apenas reconheceu a violação massiva de direitos fundamentais, mas também impôs ao Estado do Rio de Janeiro uma série de obrigações de fazer e de não fazer, com o objetivo precípuo e inafastável de reduzir a letalidade policial e adequar a atuação das forças de segurança aos parâmetros constitucionais e convencionais de respeito aos direitos humanos...
A instituição de uma recompensa financeira pela ‘neutralização de criminosos’ é a antítese de todo o esforço regulatório e judicial empreendido no bojo da ADPF. Enquanto este Supremo determina a instalação de câmeras corporais para controlar e moderar o uso da força, a norma projetada cria um estímulo financeiro para o uso máximo e letal da força. Enquanto a Corte exige planejamento, proporcionalidade e excepcionalidade nas operações policiais, o dispositivo em tela premia o resultado morte, independentemente das circunstâncias, frustrando a formalização mesmo da persecução penal.”
A ADPF n. 635, também denominada “ADPF das Favelas”, discute medidas para reduzir a letalidade policial nas operações em comunidades do estado do Rio de Janeiro.
Em que pese a Suprema Corte não ter reconhecido um estado de coisas inconstitucionais na segurança pública do estado, homologou parcialmente, em um processo estrutural, por meio de uma decisão “per curiam”, um plano do Estado do Rio de Janeiro para reduzir letalidade policial, retomar áreas ocupadas por organizações criminosas e permitir investigação pela polícia federal sobre crimes e violações de direitos humanos.
Decisão per curiam
É o voto conjunto, refletindo uma posição consensual entre os ministros da Suprema Corte. Esse voto conjunto é simbólico, demonstrando o compromisso do STF com os direitos humanos e a segurança pública.
Ao final do julgamento da ADPF das Favelas, mesmo não se reconhecendo um estado de coisas inconstitucional na segurança pública do estado do Rio de Janeiro, a Suprema Corte determinou uma série de medidas a serem tomadas. Vejamos:
a) COMUNICAÇÃO IMEDIATA AO MINISTÉRIO PÚBLICO: o Ministério Público estadual deverá ser imediatamente comunicado das ocorrências, para que, se entender cabível, determine o comparecimento de um Promotor de Justiça ao local dos fatos. Essa comunicação deverá ser regulamentada entre a Procuradoria Geral de Justiça e a Secretaria de Segurança Pública.
b) ATUAÇÃO DO DELEGADO DE POLÍCIA: o Delegado de Polícia responsável deverá dirigir-se, imediatamente ao local da ocorrência, apreender os objetos que tiverem relação com o fato, após liberados pelos peritos criminais; colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias; e, desde logo, identificar e qualificar as testemunhas presenciais do fato.
c) ATUAÇÃO DA POLÍCIA TÉCNICA: a Superintendência da Polícia Técnico-Científica enviará, imediatamente, uma equipe especializada para comparecer ao local devidamente preservado, para a realização das necessárias perícias, liberação do local e remoção de cadáveres. Os cadáveres serão sempre fotografados na posição em que forem encontrados, bem como, na medida do possível, todas as lesões externas e vestígios deixados no local do crime.
d) ATUAÇÃO DAS CORREGEDORIAS DAS POLÍCIAS: as Corregedorias da Polícia Civil e Militar deverão acompanhar as ocorrências que envolvam seus respectivos policiais, objetivando a coleta de dados e de informações visando instruir os respectivos procedimentos administrativos.
e) COLETA ADEQUADA DE DADOS EM CASO DE LETALIDADE POLICIAL: 1.2.2. Que o Ministério da Justiça e da Segurança Pública adote as providências cabíveis junto ao Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública (SINESP) para que sejam abertos os campos necessários viabilizando a inserção, por parte de todos os entes federados, dos dados desagregados sobre as mortes decorrentes de intervenção policial.
f) CÂMERAS NAS FARDAS: o Estado do Rio de Janeiro, no prazo de 180 (cento e oitenta) dias, comprove a implantação das câmeras nas viaturas policiais da Polícia Militar e da Polícia Civil, quando não estiver em atividades investigativas, e nas fardas ou uniformes dos agentes da Polícia Civil nas hipóteses pertinentes, com a publicação da respectiva regulamentação, abrangendo somente os casos em que a Polícia Civil do Estado realiza diligências ostensivas ou operações policiais planejadas, afastada a obrigatoriedade de uso de equipamentos de geolocalização e gravação audiovisual em atividades e diligências investigatórias desempenhadas pela Polícia Civil, exclusivamente no exercício da função de polícia judiciária, em virtude do potencial comprometimento do caráter sigiloso e eficiência dessas atividades e da segurança de policiais e testemunhas.
g) FINANCIAMENTO DAS MEDIDAS AQUI DETERMINADAS: 2.2. em complemento à aplicação de recursos do orçamento estadual, fica autorizado o recebimento de recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública pelo Estado do Rio de Janeiro por meio de convênio, contrato de repasse ou instrumento congênere para viabilizar o cumprimento da presente decisão, ainda que distinto seja o prazo de preservação das imagens em relação à regulamentação do Ministério da Justiça e da Segurança Pública, até o encerramento dos contratos vigentes na data deste julgamento.
h) APRESENTAÇÃO DE PLANOS PARA A SEGURANÇA PÚBLICA: os repasses somente serão realizados com a apresentação e aprovação de planos associados aos programas específicos de segurança pública, dos quais constarão a contrapartida do ente federativo, segundo critérios e condições definidos, quando exigidos em ato do Ministério da Justiça e Segurança Pública e deverão ser fiscalizados por órgão específico responsável pela gestão do fundo, sem prejuízo da fiscalização pelos respectivos Tribunais de Contas e do Ministério Público.
i) REOCUPAÇÃO TERRITORIAL DAS ÁREAS DOMINADAS POR ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS: determinar a elaboração de um plano de reocupação territorial de áreas sob domínio de organizações criminosas pelo Estado do Rio de Janeiro e pelos municípios interessados, observando os princípios do urbanismo social e com o escopo de viabilizar a presença do Poder Público de forma permanente, por meio da instalação de equipamentos públicos, políticas voltadas à juventude e a qualificação de serviços básicos, devendo o plano ter caráter operacional, com cronograma objetivo, contando com alocação obrigatória de recursos federais, estaduais e municipais, inclusive oriundos de emendas parlamentares impositivas.
j) PROPORCIONALIDADE DO USO DA FORÇA: 5. Em substituição ao parâmetro da excepcionalidade, aplicado durante a pandemia, determinar a observância da Lei 13.060, de 2014, declarada constitucional pelo STF na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.243/DF, e seu regulamento, cabendo às próprias forças de segurança avaliar e definir o grau de força adequado a cada contexto, com controle a posteriori, observando a proporcionalidade das ações e preferencialmente com planejamento prévio das operações.
Então podemos concluir, com certa segurança, que a volta da gratificação faroeste parece mesmo contrariar o decidido pelo STF na ADPF das Favelas. Ela ainda vai de encontro a todo esforço estatal para a redução da violência e da criminalidade no Estado do Rio de Janeiro.
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