Zambelli: pode ser presa? E extraditada?
Foto: Evaristo Sá/AFP

Zambelli: pode ser presa? E extraditada?

A deputada Carla Zambelli encontra-se hoje numa dúvida jurídica que poucos parlamentares brasileiros já enfrentaram.

Isto porque, condenada pelo Supremo Tribunal Federal a uma década de prisão, ela fugiu do país alegando possuir cidadania italiana que a tornaria “intocável” no exterior.

Mas será que a realidade jurídica confirma essa percepção?

A questão transcende o caso individual da parlamentar paulista.

Por que a Constituição protege brasileiros contra extradição?

A vedação constitucional à extradição de brasileiros natos nasceu de uma desconfiança histórica profundamente enraizada.

Isto porque, nossos constituintes conheciam bem os exemplos de países onde sistemas judiciais serviam mais aos poderosos do que à justiça.

Por isso, inscreveram no artigo 5º, inciso LI, uma proteção que consideraram fundamental: nenhum brasileiro nato pode ser entregue a autoridades estrangeiras.

Essa proteção, contudo, não surgiu do nada. Ela reflete uma tradição jurídica continental europeia, onde prevalece a ideia de que cada nação deve cuidar dos seus próprios filhos. É como se o Estado brasileiro dissesse a cada cidadão: “Não importa onde você esteja ou o que tenha feito, se precisar responder por crimes, será julgado aqui, sob nossas leis e garantias.”

Entretanto, aqui surge uma primeira complexidade. Zambelli não é apenas brasileira – ela também possui passaporte italiano. Isso muda completamente o jogo jurídico, porque agora duas nações podem reivindicar legitimidade para protegê-la ou julgá-la.

Como funciona essa sobreposição de cidadanias?

Ora, imagine uma pessoa que tem duas casas, em duas cidades diferentes. Quando está na primeira casa, seguem-se as regras daquela cidade. Quando está na segunda, aplicam-se as normas locais deste outro município.

Com a dupla cidadania funciona de forma parecida, só que as “regras” são sistemas jurídicos inteiros.

Enquanto Zambelli permanecesse em solo brasileiro, nossa Constituição a protegeria de forma absoluta.

O Brasil jamais poderia entregá-la a qualquer país, independentemente dos crimes cometidos. Essa proteção é inquestionável e definitiva em território nacional.

Zambelli

Por outro lado, a situação muda dramaticamente quando ela se encontra em território italiano. Lá, as autoridades a reconhecem como cidadã italiana e aplicam as regras constitucionais italianas.

Ora, diferentemente do Brasil, a Itália permite extradição de seus nacionais quando há previsão em tratados internacionais – como existe com o Brasil.

Mas qual cidadania deve prevalecer quando há conflito?

Veja, o direito internacional desenvolveu uma resposta sofisticada através da teoria da “cidadania efetiva“. Em vez de olhar apenas para documentos formais, essa teoria examina com qual país a pessoa realmente construiu sua vida.

O que determina qual cidadania é “mais real”?

Em breve síntese, os tribunais internacionais desenvolveram critérios práticos para responder essa pergunta.

De maneira geral, eles observam onde a pessoa nasceu e cresceu, onde mantém sua residência principal, onde concentra seus negócios e patrimônio, onde estão seus familiares mais próximos, onde participa da vida política e social, e qual idioma usa no dia a dia.

Ora, aplicando esses critérios ao caso Zambelli, o quadro se torna bem claro.

Isto porque, ela nasceu no Brasil, desenvolveu aqui sua carreira política inteira, participa ativamente da vida nacional, mantém vínculos familiares e econômicos principalmente brasileiros, e usa o português como idioma principal.

Nessa linha, sua cidadania italiana, embora juridicamente válida, parece ter caráter mais instrumental do que efetivo.

As imunidades parlamentares protegem Zambelli?

A resposta curta é: pouco. Para entender por quê, precisamos distinguir dois tipos diferentes de proteção que a Constituição oferece aos parlamentares.

A primeira é a imunidade material, que protege deputados e senadores quando expressam opiniões, proferem palavras ou emitem votos no exercício do mandato.

Veja, essa proteção é absoluta e permanente, continuando mesmo depois que o mandato termina. Mas ela só vale para atividades ligadas à função parlamentar.

No caso, a invasão de sistemas do Conselho Nacional de Justiça, pela qual Zambelli foi condenada, não tem, a princípio, relação alguma com o exercício do mandato. Por isso, a imunidade material não se aplica.

Por outro lado, a segunda proteção é a imunidade formal, que estabelece procedimentos especiais para processar parlamentares. Desde 2001, deputados e senadores podem ser processados normalmente por crimes comuns. Mas para prendê-los, a Constituição exige deliberação da Câmara ou do Senado.

Aqui surge uma questão fascinante: essa proteção funciona quando o parlamentar está no exterior? Se Zambelli for presa em outro país com base em alerta da Interpol, a prisão ocorreria fora da jurisdição brasileira. Isso cria dúvidas sérias sobre se as prerrogativas parlamentares nacionais se aplicam.

E se Zambelli perder o mandato automaticamente?

Existe uma possibilidade que pode simplificar todo o processo. O artigo 55 da Constituição prevê perda de mandato por “faltas excessivas às sessões ordinárias“. Se Zambelli continuar no exterior, inevitavelmente faltará às sessões da Câmara.

Nesse caso, a Mesa Diretora poderia declarar a perda do mandato por decisão administrativa, sem necessidade de votação no plenário, caso ela não consiga uma licença para afastamento.

Uma vez perdido o mandato, todas as prerrogativas parlamentares desapareceriam automaticamente, eliminando qualquer complicação relacionada às imunidades.

Como funcionam os tratados de extradição?

Em breve síntese, o Tratado de Extradição entre Brasil e Itália, de 1993, estabelece regras específicas que são cruciais para entender o caso Zambelli.

O artigo mais importante é o 6º, que diz: quando a pessoa procurada for nacional do país onde se encontra, este país “não será obrigado” a entregá-la.

Note bem a linguagem usada: “não será obrigado” é muito diferente de “não poderá”. A primeira expressão indica uma faculdade, uma escolha que o país pode fazer. A segunda seria uma proibição absoluta. Essa diferença de palavras faz toda a diferença prática.

O mesmo artigo estabelece uma contrapartida fundamental. Se a Itália decidir não extraditar Zambelli por ser cidadã italiana, deve “submeter o caso às suas autoridades competentes para eventual instauração de procedimento penal”. Isso significa que ela seria processada na Itália pelos mesmos crimes pelos quais foi condenada no Brasil.

Essa regra materializa um princípio fundamental do direito internacional: aut dedere aut judicare – “extradite ou julgue”. O objetivo é evitar que criminosos escapem da justiça simplesmente mudando de país.

O precedente Pizzolato

Vale salientar que, Henrique Pizzolato, ex-diretor do Banco do Brasil condenado no Mensalão, oferece o melhor exemplo de como a Itália trata casos similares.

Assim como Zambelli, ele possuía dupla cidadania brasileiro-italiana. Sua extradição aconteceu em 2015, da Itália para o Brasil, após decisão da Corte de Cassação italiana.

A decisão italiana considerou vários fatores que são relevantes para o caso Zambelli. Primeiro, analisaram a natureza e gravidade dos crimes. Segundo, avaliaram as garantias oferecidas pelo sistema penal brasileiro quanto ao respeito aos direitos humanos. Terceiro, consideraram o comportamento do extraditando – se havia tentado fugir da justiça brasileira.

Este precedente mostra que a cidadania italiana não cria proteção automática. Especialmente quando há indícios de fuga deliberada da jurisdição brasileira, as autoridades italianas podem priorizar a cooperação internacional sobre a proteção formal de seus nacionais.


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