O Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu recentemente que o uso de celular por presos durante o trabalho externo não configura falta grave, salvo se houver uma ordem judicial específica proibindo essa conduta.
Este entendimento foi reafirmado no julgamento do Habeas Corpus nº 866758, no qual o preso Daniel Baquete Gonzalez foi beneficiado.
Peculiaridades do caso
No caso concreto, Daniel Baquete Gonzalez foi penalizado pela utilização de um celular enquanto trabalhava fora do presídio.
O Ministério Público Federal (MPF) argumentou que a ação configurava falta grave conforme o artigo 50, inciso VII, da Lei de Execução Penal (LEP), que proíbe a posse e uso de aparelhos de comunicação por presos.
O relator do caso, Ministro Jesuíno Rissato, destacou que a LEP não prevê incomunicabilidade para presos em regime de trabalho externo.
Ele ressaltou que a penalização por falta grave só se aplicaria se houvesse uma ordem judicial expressa proibindo o uso de celular fora do presídio.
Como tal ordem não existia no caso de Gonzalez, não era possível considerar sua conduta como uma falta grave.
Entendimento do STJ
A 6ª Turma do STJ, por unanimidade, negou provimento ao recurso do MPF, reafirmando que, para a configuração de falta grave, é necessária uma ordem judicial específica proibindo o uso de celulares por presos em trabalho externo.
Sem essa ordem, a conduta não se enquadra nas previsões do artigo 50, inciso VII, da LEP.
A decisão ressaltou que a punição por falta grave destina-se a manter a disciplina interna das unidades prisionais e não se estende automaticamente ao contexto de trabalho externo.
Mas, o que é Falta Grave?
A Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/84) prevê um rol taxativo de situações que configuram falta grave do condenado que esteja cumprindo pena privativa de liberdade.
Art. 50. Comete falta grave o condenado à pena privativa de liberdade que: I — incitar ou participar de movimento para subverter a ordem ou a disciplina; II — fugir; III — possuir, indevidamente, instrumento capaz de ofender a integridade física de outrem; IV — provocar acidente de trabalho; V — descumprir, no regime aberto, as condições impostas; VI — inobservar os deveres previstos nos incisos II e V, do artigo 39, desta Lei; VII — tiver em sua posse, utilizar ou fornecer aparelho telefônico, de rádio ou similar, que permita a comunicação com outros presos ou com o ambiente externo. Parágrafo único. O disposto neste artigo aplica-se, no que couber, ao preso provisório.
Falta grave, no contexto da execução penal, refere-se a ações do preso que violam significativamente as normas estabelecidas para o cumprimento da pena.
Entendimentos da Jurisprudência
É falta grave
Exemplos de faltas graves reconhecidas pela jurisprudência incluem:
- Tentativa de fuga: Considerada falta grave mesmo que a fuga não seja bem-sucedida (HC 459.439/RS).
- Posse de drogas: A posse de substâncias ilícitas dentro do presídio é reiteradamente considerada falta grave (HC 284.275/SP).
- Posse de Chip de Celular: A posse de componentes essenciais de um celular, como chips, dentro de um estabelecimento prisional, configura falta grave (STJ. 5ª Turma. HC 260122-RS).
- Prática de Crime Doloso: A prática de fato definido como crime doloso durante a execução penal configura falta grave, independentemente do trânsito em julgado da condenação criminal, desde que a apuração ocorra com observância do devido processo legal (RE 776823).
Não é falta grave
Por outro lado, comportamentos que não configuram falta grave incluem:
- Recusa ao trabalho sem justificativa relevante: A recusa ao trabalho deve ser analisada caso a caso e não é automaticamente considerada falta grave (HC 451.234/RS).
- Uso de celular fora do presídio sem ordem judicial contrária: Como decidido no HC 866758, o uso de celular durante o trabalho externo não configura falta grave sem uma ordem judicial específica.
- Mudança de Endereço: A mudança de endereço sem autorização judicial durante o livramento condicional não configura falta grave, conforme estabelecido pelo STJ (HC 203015-SP).
- Recusa de Alimento: A recusa do detento em aceitar alimentos que julga impróprios para consumo, quando feita pacificamente, não configura falta grave (AREsp 2.418.453/SP).
- É proibida a aplicação de Sanções Coletivas: Se, na execução penal, não foi possível identificar o autor da falta grave, não é possível aplicar a punição a todos os detentos que estavam no local do fato. Isso porque a LEP proíbe a aplicação de sanções coletivas (art. 45, § 3º) e a CF/88 determina que nenhuma pena passará da pessoa do condenado (art. 5º, XLV), exigindo, portanto, a individualização da conduta. (STJ. 6ª Turma. HC 177293-SP, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 24/4/2012 (Info 496).
Consequências da falta grave1
Falta grave acarreta a interrupção da contagem do tempo para a progressão
Se o condenado comete falta grave há a interrupção da contagem do tempo para a concessão da progressão de regime. Em outras palavras, zera-se e reinicia-se a contagem do requisito objetivo. Para a jurisprudência do STJ, se assim não fosse, ao custodiado em regime fechado que comete falta grave não se aplicaria sanção em decorrência dessa falta, o que seria um estímulo ao cometimento de infrações no decorrer da execução.
Vejamos o seguinte exemplo:
“A” recebeu uma condenação de 6 anos por roubo simples (que não é hediondo).
“A” começou a cumprir a pena em 01/01/2010 no regime fechado.
Para progredir ao regime semiaberto, “A” precisava cumprir 1/6* da pena (1 ano) e ter bom comportamento carcerário.
“A” completaria 1/6 da pena em 31/12/2010.
Ocorre que, em 30/11/2010, “A” fugiu. Sua recaptura aconteceu em 15/12/2010.
A fuga é considerada falta grave do condenado (art. 50, II, da LEP). Como “A” praticou falta grave, seu período de tempo para obter a progressão de regime irá reiniciar do zero.
No caso de fuga, recomeça-se a contagem do tempo a partir do dia da recaptura.
Logo, para que “A” obtenha o direito à progressão, precisará cumprir 1/6 do restante da pena período contado a partir de 15/12/2010.
Até o dia da fuga, “A” cumpriu 11 meses. Restam ainda 5 anos e 1 mês de pena. Desse período, “A” terá que cumprir 1/6. Conta-se esse 1/6 do dia da recaptura (15/12/2010).
Assim, “A” atingirá 1/6 em 19/10/2011.
Em suma, o cometimento de falta grave pelo apenado implica o reinício da contagem do prazo para obter os benefícios relativos à execução da pena, inclusive a progressão de regime prisional.
* A Lei nº 13.964, de 2019, alterou a redação do art. 112 da LEP e passou a prever novos percentuais para a progressão.
Falta grave não interfere no livramento condicional
Vale ressaltar que, no caso do livramento condicional, a falta grave não interrompe o prazo para obtenção do benefício, conforme entendimento sumulado do STJ:
Súmula 441-STJ: A falta grave não interrompe o prazo para obtenção de livramento condicional.
A falta grave não interfere no livramento condicional por ausência de previsão legal, ou seja, porque a LEP não determinou essa consequência (STJ. 5ª Turma. HC 263.361/SP, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 07/05/2013).
Falta grave não interfere, em regra, na concessão de indulto ou comutação de pena
O cometimento de falta grave não interrompe automaticamente o prazo para o deferimento do indulto ou da comutação de pena. A concessão desses benefícios deverá obedecer aos requisitos previstos no decreto presidencial pelo qual foram instituídos.
Assim, a prática de falta disciplinar de natureza grave, em regra, não interfere no lapso necessário à concessão de indulto e comutação da pena, salvo se houver previsão expressa no decreto presidencial.
Consequências decorrentes da prática de falta grave – resumo
Ademais, como o tema já caiu em provas:
(Instituto Consulplan – 2024 – MPE-SC – Promotor de Justiça Substituto) Tendo em vista as regras que norteiam execução penal brasileira e os entendimentos dos Tribunais Superiores, julgue o item a seguir. No Brasil, são vedadas as sanções coletivas aos presos que praticam falta grave em estabelecimento prisional, tratando-se de um desdobramento lógico do princípio constitucional da personalidade da pena (Art. 5º, XLV), havendo a necessidade da individualização da conduta para o reconhecimento da falta grave praticada pelo apenado em autoria coletiva. (Certo)
Conclusão
A decisão do STJ no caso de Daniel Baquete Gonzalez reforça a importância de uma interpretação precisa e justa das normas penais, especialmente no contexto da execução penal.
O entendimento de que o uso de celular por presos durante o trabalho externo não configura falta grave, a menos que haja uma ordem judicial específica, certamente cairá em provas.
A jurisprudência brasileira delineia claramente o que constitui falta grave, proporcionando diretrizes objetivas para a administração das penas e a conduta dos apenados.
Casos como tentativa de fuga, posse de drogas e a prática de crimes dolosos são exemplos de ações que violam significativamente as normas estabelecidas e, portanto, são corretamente tratadas como faltas graves.
Por outro lado, situações como a recusa ao trabalho sem justificativa relevante e o uso de celular fora do presídio, na ausência de uma ordem judicial específica, não devem se enquadrar como faltas graves, conforme demonstrado pelo caso analisado.
- CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Resumo das consequências decorrentes da prática de falta grave. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/861578d797aeb0634f77aff3f488cca2>. Acesso em: 18/07/2024. ↩︎
Quer saber quais serão os próximos concursos?
Confira nossos artigos para Carreiras Jurídicas!