Tribunal reconhece legitimidade processual de animais

Tribunal reconhece legitimidade processual de animais

* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.

Entenda o que aconteceu

O Tribunal de Justiça de Santa Catarina reconheceu a legitimidade processual de dois cachorros (Tom e Pretinha) que haviam sido atingidos por disparos de arma de fogo (processo nº 5002956-64.2021.8.24.0052).

O vizinho dos cachorros efetuou entre quatro e seis disparos de arma de fogo em direção aos bichinhos enquanto eles brincavam em um terreno baldio. O dono dos animais também estava no local na companhia de um amigo.

Tom foi atingido por um tiro na pata direita e foi submetido a tratamentos e cirurgia, tendo o custo total de R$ 3.511,05. Ele ficou com uma lesão permanente na pata.

Pretinha, por sua vez, foi atingida por dois disparos, que alvejaram o tórax e a escápula. Ela ficou hospitalizada por vários dias, tendo o custo total de R$ 3.580,70.

O réu argumentou que os dois cachorros foram atingidos por acidente, e que a conduta se deu em legítima defesa, já que Tom e Pretinha estariam atacando seu cão, que estaria por perto. Essa tese não foi aceita.

O juízo de 1º grau condenou o réu ao pagamento de indenização pelos danos materiais, no valor de R$1.000, correspondente aos valores gastos com despesas veterinárias devidamente comprovados, além de indenização por danos morais no valor correspondente à R$2.000,00, devendo este valor reverter-se exclusivamente em favor de Tom e Pretinha.

Após recurso de ambas as partes, o Tribunal majorou o valor dos danos materiais, manteve os danos morais em prol dos cachorros e condenou o réu ao pagamento de R$3.000,00 por danos morais em favor do tutor dos pets.

Leading case (caso líder)

O marco histórico no reconhecimento da legitimidade processual dos animais se deu na Justiça do Paraná, em 2021, onde dois cachorros (Skype e Rambo), vítimas de maus-tratos, foram aceitos como autores de uma ação contra os antigos donos.

Na ação, os cachorros pediam pensão mensal e indenização por dano moral.

Tribunal de Justiça reconhece legitimidade de pets

Os desembargadores da 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Paraná foram unânimes. Eles reconheceram o direito de cães, gatos e outros animais de serem autores de um processo, para defender seus próprios direitos.

Mas os Tribunais de Justiça não são, ainda hoje, unânimes nesse assunto. Há inúmeras decisões negando esse direito aos animais. O tema, portanto, está longe de ser pacífico.

O deputado baiano Eduardo Costa apresentou, na Câmara dos Deputados, o PL 124/2021, cujo objetivo é disciplinar a presença de “animais não-humanos” no polo ativo de demandas judiciais.

Natureza jurídica dos pets

Nas últimas décadas havia prevalecido a corrente clássica de que os animais de estimação possuíam natureza jurídica de coisa, sendo um bem móvel (semovente). Portanto, seriam simplesmente objetos de direitos, e não sujeitos de direito.

Neste sentido, os bichos seriam apenas um item do patrimônio de seu titular. Não teriam direitos, de forma que suas garantias estariam relacionadas aos direitos de seus donos, e as discussões sobre eles estariam mais próximas de institutos como a posse e a propriedade.

Teria aplicação, portanto, do artigo 82 do código civil:

Art. 82. São móveis os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico-social.

Ocorre que a realidade é extremamente mutável, e o Direito precisa se adaptar para acompanhar a evolução social.

Presenciamos, nos últimos anos, novos fenômenos relacionados à relação entre as pessoas, chamados de “pais de pets”, e seus bichinhos de estimação: criação de planos de saúde para pets, buffets especializados em organizar festas para os bichinhos, creches e hotéis para cães e gatos, surgimento de profissões voltadas a esses animais e muito mais.

Diante dessa inovação fática os operadores do direito tiveram que se adaptar na interpretação e aplicação do ordenamento jurídico, pois a definição como simples coisas não resolve mais as controvérsias sobre os pets.

“Terceiro gênero”

Existe uma corrente moderna, na qual considera os animais como sujeitos de direito. Algumas decisões judiciais, como a envolvendo Tom e Pretinha, já adotam essa visão, apesar de não serem majoritárias.

Mas o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem caminhado para adotar uma corrente intermediária, pela qual os animais de estimação seriam um “terceiro gênero“. Para o ministro Luís Felipe Salomão, não se trata de humanizar o animal, tampouco de equiparar a posse dos bichos com a guarda de filhos, mas de considerar que o direito de propriedade sobre eles não pode ser exercido de maneira idêntica àquele relativo às coisas inanimadas ou que não são dotadas de sensibilidade. Portanto, os animais seriam seres dotados de sensibilidade. Conferir o REsp 1.944.228.

“2. A solução de questões que envolvem a ruptura da entidade familiar e o seu animal de estimação não pode, de modo algum, desconsiderar o ordenamento jurídico posto – o qual, sem prejuízo de vindouro e oportuno aperfeiçoamento legislativo, não apresenta lacuna e dá respostas aceitáveis a tais demandas –, devendo, todavia, o julgador, ao aplicá-lo, tomar como indispensável balizamento o aspecto afetivo que envolve a relação das pessoas com o seu animal de estimação, bem como a proteção à incolumidade física e à segurança do pet, concebido como ser dotado de sensibilidade e protegido de qualquer forma de crueldade.

2.1 A relação entre o dono e o seu animal de estimação encontra-se inserida no direito de propriedade e no direito das coisas, com o correspondente reflexo nas normas que definem o regime de bens (no caso, o da união estável). A aplicação de tais regramentos, contudo, submete-se a um filtro de compatibilidade de seus termos com a natureza particular dos animais de estimação, seres que são dotados de sensibilidade, com ênfase na proteção do afeto humano para com os animais.”

Por essa visão, adotada pelo STJ, reconhece-se os animais como seres sencientes. Mas o que são esses seres sencientes? Simples:

Seres sencientes são seres que possuem a capacidade de sentir e perceber o mundo ao seu redor. Isso inclui a habilidade de experimentar emoções como dor, prazer, alegria e sofrimento.

Dignidade

O Ministro do Supremo Tribunal Federal, Flávio Dino, em decisão cautelar na ADI 7.704, arrematou:

Ao se preocupar com outras formas de vida não humanas, a Constituição incorporou uma visão mitigada do antropocentrismo, de modo a reconhecer que seres não humanos podem ter valor e dignidade1. À luz do texto constitucional, a dignidade não é um atributo exclusivo do ser humano.

Portanto, será cada vez mais comum nos depararmos com questões envolvendo visita e guarda de pets, busca e apreensão de animais, proibição ou não de castração dos bichinhos e até mesmo animais sendo autores de ações judiciais.

Em resumo, quanto a visão acerca da natureza jurídica dos pets, temos:

1) A corrente clássica ou tradicional, que entende que o animal é um bem semovente, com fundamento antes mesmo do Código Civil;

2) A corrente moderna, que entende que o animal deve ser considerado como um ser sujeito de direito;

3) A corrente intermediária, adotada pelo STJ, pela qual o animal de estimação seria um “terceiro gênero”, dotado de sensibilidade, ou seja, um ser senciente.

Responsabilidade civil

O código civil não deixa dúvidas ao punir os danos decorrentes da prática de ato ilícito:

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

...

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

Os três elementos necessários para a responsabilização civil são:

  • Agente que pratica a ação ou omissão dolosa/culposa;
  • Dano; e
  • Nexo de causalidade.

No caso envolvendo os cachorros Tom e Pretinha, restou comprovado que o réu, ao disparar contra os cachorros, acabou causando danos que ultrapassaram o mero dissabor.

As lesões causadas nos animais acarretaram gastos médicos veterinários, além de danos extrapatrimoniais aptos à indenização, tais como hospitalização em razão de trauma balístico, hematomas, fraturas, procedimentos cirúrgicos, entre outras.

O juiz deixou claro que os valores referentes aos pets devem ser revertidos exclusivamente em favor de Tom e Pretinha.

Quanto aos danos estéticos, o juiz do Tribunal negou o pedido, argumentando que a fixação do dano estético em favor dos animais não é possível, considerando que são simples animais domésticos, não voltados a desfiles, exposições, fotografias para comerciais ou publicações e não dotados de especial beleza estética.

Conclusão

O entendimento fixado na decisão envolvendo Tom e Pretinha, como visto, ainda não é majoritária nos Tribunais brasileiros, mas começa a indicar uma tendência em reconhecer a legitimidade processual aos animais não humanos, tais como gatos e cachorros.

Ótimo tema para provas de direito processual civil, direito ambiental e direito constitucional.


  1. DIAS, Jefferson Aparecido; NELSON, Rocco Antônio Rangel Rosso. Do Direito dos animais não humanos – em busca de uma personalidade esquecida. Revista Brasileira de Direito Animal. UFBA. P. 35. ↩︎

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