Tráfico privilegiado não é hediondo: STF publica a Súmula Vinculante 63

Tráfico privilegiado não é hediondo: STF publica a Súmula Vinculante 63

Prof. Gustavo Cordeiro

Introdução: quando a súmula vem para consolidar — e não para inovar

Em outubro de 2025, o Supremo Tribunal Federal publicou a Súmula Vinculante 63, estabelecendo de forma definitiva que o tráfico privilegiado (art. 33, § 4º, da Lei 11.343/2006) não possui natureza hedionda. Para quem acompanha a jurisprudência criminal, essa súmula não traz exatamente uma novidade — afinal, desde 2016 o STF já decidia assim, e desde 2019 o Pacote Anticrime (Lei 13.964/2019) incluiu expressamente na Lei de Execução Penal que o tráfico privilegiado não é hediondo.

Então por que essa súmula é tão importante para concursos públicos?

Porque ela encerra de vez qualquer margem para dúvida interpretativa, vincula toda a administração pública e o Judiciário, e consolida um entendimento que impacta diretamente regime inicial de pena, progressão de regime, livramento condicional e substituição por penas restritivas de direitos.

Se você está se preparando para Magistratura, Ministério Público, Defensoria Pública ou Delegado, precisa dominar não apenas o enunciado da SV 63, mas toda a evolução jurisprudencial que levou a ele — e, principalmente, os efeitos práticos dessa classificação na execução penal.

Este artigo vai destrinchar a trajetória jurisprudencial, a legislação aplicável e, claro, mostrar como esse tema pode — e vai — aparecer na sua prova.

A origem do debate: Súmula 512 do STJ (2014)

Tudo começou em 2014, quando o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula 512:

"A aplicação da causa de diminuição de pena prevista no art. 33, § 4º, da Lei n. 11.343/2006 não afasta a hediondez do crime de tráfico de drogas."

Esse enunciado consolidava o entendimento de que, mesmo com o reconhecimento do privilégio (redução de 1/6 a 2/3 da pena), o crime continuava sendo classificado como hediondo para todos os fins da execução penal.

Na prática, isso significava:

  • Regime inicial obrigatoriamente fechado (à época);
  • Progressão de regime mais rigorosa: 2/5 para primários e 3/5 para reincidentes (conforme a redação da Lei 11.464/07);
  • Vedação ao livramento condicional para reincidentes específicos em crimes hediondos;
  • Impossibilidade de substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos (conforme redação original da Lei de Drogas).

A virada do STF: HC 118.533 (2016)

Em 23 de junho de 2016, o plenário do STF julgou o HC 118.533 e, por maioria, decidiu que o tráfico privilegiado não é crime hediondo.

O fundamento central foi simples e direto: o legislador, ao criar a causa especial de diminuição de pena do § 4º do art. 33 da Lei 11.343/2006, quis diferenciar o pequeno traficante ocasional do traficante habitual ou integrante de organização criminosa. Essa diferenciação não seria apenas quantitativa (na pena), mas também qualitativa (na natureza jurídica do delito).

tráfico privilegiado

Se a lei trata de forma diferenciada, impondo requisitos específicos e permitindo redução expressiva da pena, é porque reconhece que a gravidade concreta é menor. Logo, não faz sentido manter a classificação de hediondo.

A decisão foi um marco. Mas havia um problema: ela valia apenas para o caso concreto e não tinha efeito vinculante automático. Cada juiz e tribunal continuava livre para decidir — e muitos ainda aplicavam a Súmula 512 do STJ.

O STJ reage: cancelamento da Súmula 512 (novembro de 2016)

Diante da orientação fixada pelo STF, o STJ, em novembro de 2016, cancelou a Súmula 512.

Esse ato foi fundamental para uniformizar a jurisprudência dos tribunais inferiores e evitar decisões contraditórias. Com o cancelamento, ficou claro que o entendimento prevalente nos tribunais superiores era: tráfico privilegiado não é hediondo.

Mas a insegurança jurídica persistia. Ainda não havia norma legal expressa nem súmula vinculante sobre o tema.

O Pacote Anticrime: a positivação na LEP (2019)

A solução legislativa veio com a Lei 13.964/2019 (Pacote Anticrime), que incluiu o § 5º ao art. 112 da Lei de Execução Penal:

"Art. 112, § 5º, LEP: Não se considera hediondo ou equiparado, para os fins deste artigo, o crime de tráfico de drogas previsto no § 4º do art. 33 da Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006."

Esse dispositivo é cristalino: para fins de execução penal, o tráfico privilegiado não é hediondo.

Com isso, o legislador consolidou em lei o que o STF já decidira em 2016. A partir de 2020 (quando o Pacote Anticrime entrou em vigor), não havia mais dúvida: a lei era expressa.

A Súmula Vinculante 59: regime inicial e substituição (2023)

Mas o STF foi além. Em 2023, editou a Súmula Vinculante 59, que tratou especificamente do regime inicial de pena e da substituição por restritivas de direitos no tráfico privilegiado:

Súmula Vinculante 59: "É impositiva a fixação do regime aberto e a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos quando reconhecida a figura do tráfico privilegiado (art. 33, § 4º, da Lei 11.343/06) e ausentes vetores negativos na primeira fase da dosimetria (art. 59 do CP), observados os requisitos do art. 33, § 2º, alínea c, e do art. 44, ambos do Código Penal."

Essa súmula foi um divisor de águas. Ela estabeleceu que, no tráfico privilegiado:

  1. Se a pena-base for fixada no mínimo legal (art. 59, CP);
  2. E preenchidos os requisitos do art. 44 do CP (não reincidência em crime doloso, circunstâncias favoráveis, suficiência da medida);
  3. Então o regime inicial deve ser o aberto e a pena privativa de liberdade deve ser substituída por restritiva de direitos.

É uma súmula impositiva — ou seja, o juiz não tem discricionariedade para negar. Se os requisitos estiverem presentes, a substituição e o regime aberto são obrigatórios.

E agora vem a SV 63: o fechamento do ciclo (2025)

Finalmente, em 2025, o STF publica a Súmula Vinculante 63, que consolida de forma geral e abstrata o entendimento de que o tráfico privilegiado não é crime hediondo: “O crime de tráfico de drogas privilegiado (art. 33, § 4º, da Lei 11.343/2006) não se enquadra como hediondo ou equiparado.”

Com essa súmula, o STF:

  • Vincula toda a administração pública e o Judiciário (CF, art. 103-A);
  • Impede que qualquer juiz ou tribunal aplique regras de crimes hediondos ao tráfico privilegiado;
  • Consolida definitivamente a jurisprudência iniciada em 2016.

Consequências práticas: o que muda na execução penal?

A classificação do tráfico privilegiado como não hediondo tem efeitos diretos e profundos na execução penal. Vamos compará-los:

Progressão de regime

Situação do condenadoSe fosse hediondoComo não é hediondo
Primário sem violência/ameaça40% da pena16% da pena
Reincidente específico em crime hediondo60% da pena20% da pena

Base legal: Art. 112, caput e § 1º, da LEP.

Observação importante: Como o tráfico privilegiado exige que o agente seja primário (art. 33, § 4º, Lei 11.343/2006), na prática, o percentual aplicável será sempre o de 16%, pois reincidentes não podem ser beneficiados pelo privilégio.

Livramento condicional

Situação do condenadoSe fosse hediondoComo não é hediondo
Primário2/3 da pena1/3 da pena
ReincidenteProibido1/2 da pena

Base legal: Art. 83, V e parágrafo único, do CP; art. 112, VI, da LEP.

Observação importante: Novamente, como o tráfico privilegiado exige primariedade, o percentual aplicável será sempre 1/3 da pena.

Regime inicial de pena

Se reconhecido o tráfico privilegiado e ausentes circunstâncias judiciais negativas (art. 59, CP), o regime inicial deve ser o aberto, conforme SV 59.

Substituição por penas restritivas de direitos

Com a SV 59, a substituição é impositiva quando preenchidos os requisitos legais.

Por que a SV 63 não é exatamente uma novidade?

Você pode estar se perguntando: se desde 2016 o STF já decidia assim, e desde 2019 a lei é expressa, por que publicar uma súmula vinculante agora, em 2025?

A resposta está na função pedagógica e unificadora das súmulas vinculantes. Elas servem para:

  1. Eliminar litígios repetitivos: mesmo com o HC 118.533 e a Lei 13.964/2019, ainda havia juízes aplicando regras de crimes hediondos ao tráfico privilegiado;
  2. Vincular a administração pública: com a súmula vinculante, até órgãos administrativos (como o Conselho Penitenciário) devem observar o entendimento;
  3. Dar segurança jurídica: a súmula é um ato formal do STF que consolida o entendimento de forma solene e definitiva;

Portanto, embora não seja uma inovação no conteúdo, a SV 63 é uma conquista institucional importantíssima para a segurança jurídica e a defesa de direitos fundamentais.


Conexão com concursos: como esse tema pode cair

O tráfico privilegiado e sua natureza não hedionda são temas recorrentes em provas de carreiras jurídicas. As bancas adoram explorar:

  • A diferença entre tráfico de drogas e a sua figura “privilegiada” (na verdade, causa especial de diminuição de pena);
  • Os requisitos para concessão do privilégio;
  • Os efeitos da não hediondez na progressão de regime e livramento condicional;
  • A evolução jurisprudencial (Súmula 512 do STJ → HC 118.533 do STF → Lei 13.964/2019 → SV 59 e SV 63).
Questão simulada (estilo CESPE/FCC)

Enunciado:

Maria, primária e de bons antecedentes, foi presa em flagrante transportando 50 gramas de cocaína. Durante a instrução processual, ficou comprovado que ela não se dedica a atividades criminosas e não integra organização criminosa. O juiz, ao proferir sentença, reconheceu a causa de diminuição prevista no art. 33, § 4º, da Lei 11.343/2006, fixando a pena em 2 anos de reclusão. Na dosimetria, a pena-base foi fixada no mínimo legal e não houve agravantes ou atenuantes.

Com base na legislação, na jurisprudência do STF e nas Súmulas Vinculantes 59 e 63, assinale a alternativa correta:

(A) O crime de tráfico, ainda que privilegiado, é considerado hediondo, devendo o regime inicial ser fechado e vedada a substituição por penas restritivas de direitos.

(B) O tráfico privilegiado não é crime hediondo, mas o regime inicial deve ser semiaberto, conforme orientação do STJ na Súmula 512.

(C) O tráfico privilegiado não é crime hediondo, devendo o juiz fixar o regime aberto e substituir a pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, por força da SV 59.

(D) O tráfico privilegiado é crime hediondo apenas para fins de progressão de regime, devendo Maria cumprir 40% da pena para progredir ao semiaberto.

(E) O juiz tem discricionariedade para decidir sobre o regime inicial e a substituição da pena, independentemente da ausência de circunstâncias judiciais desfavoráveis.

Gabarito: C

Explicação:

(A) Incorreta. O tráfico privilegiado não é crime hediondo, conforme SV 63, HC 118.533/STF e art. 112, § 5º, da LEP. Logo, não há obrigatoriedade de regime fechado nem vedação à substituição.

(B) Incorreta. A Súmula 512 do STJ foi cancelada em novembro de 2016. Além disso, o regime inicial deve ser o aberto, não o semiaberto, conforme SV 59.

(C) Correta. Preenchidos os requisitos (primariedade, bons antecedentes, pena-base no mínimo, ausência de circunstâncias judiciais desfavoráveis), a SV 59 é impositiva: o juiz deve fixar regime aberto e substituir a pena privativa de liberdade por restritiva de direitos.

(D) Incorreta. O tráfico privilegiado não é hediondo para nenhum fim. A progressão de regime segue a regra geral: 16% para primários sem violência ou grave ameaça (art. 112, caput, LEP).

(E) Incorreta. A SV 59 é impositiva. Não há discricionariedade judicial quando os requisitos estão presentes.

Conclusão estratégica: o que você precisa memorizar

☑️ O tráfico privilegiado (art. 33, § 4º, Lei 11.343/2006) não é crime hediondo — SV 63, HC 118.533/STF, art. 112, § 5º, LEP.

✅ Súmula 512 do STJ foi cancelada em novembro de 2016.

☑️ Requisitos para o tráfico privilegiado: primário, bons antecedentes, não se dedicar a atividades criminosas, não integrar organização criminosa.

✅ Progressão de regime: 16% da pena (primário sem violência/ameaça).

☑️ Livramento condicional: 1/3 da pena (primário).

✅ Regime inicial e substituição (SV 59): se pena-base no mínimo e ausentes vetores negativos do art. 59, CP → regime aberto e substituição impositivos.

Dica de ouro para a prova: se a questão citar a Súmula 512 do STJ como vigente, ou disser que o tráfico privilegiado é hediondo, marque errado na hora. E se a questão perguntar sobre regime inicial e substituição no tráfico privilegiado, lembre-se: a SV 59 é impositiva quando os requisitos estão presentes — não há margem para discricionariedade.


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