No mundo da moda, é comum vermos roupas estampadas com referências a músicas, filmes e outras obras artísticas. Mas até que ponto essa prática é legal? Um recente caso envolvendo o espólio do cantor Tim Maia e a grife de roupas Reserva traz à tona importantes questões sobre direitos autorais no Brasil.
A Reserva, conhecida por suas camisetas com estampas criativas, lançou uma linha de produtos com frases como “Guaraná & Suco de caju & Goiabada & Sobremesa” e “Você & Eu & Eu & Você”, claramente inspiradas em músicas famosas de Tim Maia.
O problema? A grife não obteve autorização para usar essas letras.
O espólio de Tim Maia, representado por seu filho, entrou com uma ação judicial alegando violação de direitos autorais. A família do cantor entrou com uma ação em 2012, alegando uso indevido da obra.
A defesa da Reserva, por sua vez, alegou que as frases utilizadas nas camisetas não configuravam cópias literais das músicas. Argumentou que o uso do conectivo “e” alteraria o conteúdo original. Assim, seria necessário um esforço de associação para identificar a ligação com as obras de Tim Maia.
Bom, depois de andar pelo TJ-RJ, o caso chegou ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). O Tribunal proferiu uma decisão importante sobre o tema no REsp n. 2.121.497/RJ, divulgado no informativo 825 de 17/09/2024. Mas, antes, vamos entender o assunto juridicamente, ok?
Análise jurídica
Caracterização da violação de direitos autorais
De início, o STJ, ao analisar o mérito da questão, ofereceu uma interpretação crítica da Lei de Direitos Autorais. O tribunal entendeu que houve, de fato, uma violação dos direitos autorais de Tim Maia.
A decisão baseou-se em uma análise detalhada dos artigos 7º, 28 e 29 da Lei nº 9.610/1998. Eles estabelecem o escopo da proteção autoral e os direitos exclusivos do autor:
Art. 7º São obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro, tais como: V - as composições musicais, tenham ou não letra; VI - as obras audiovisuais, sonorizadas ou não, inclusive as cinematográficas;
Art. 28. Cabe ao autor o direito exclusivo de utilizar, fruir e dispor da obra literária, artística ou científica.
Art. 29. Depende de autorização prévia e expressa do autor a utilização da obra, por quaisquer modalidades, tais como: VIII - a utilização, direta ou indireta, da obra literária, artística ou científica, mediante: a) representação, recitação ou declamação; b) execução musical; c) emprego de alto-falante ou de sistemas análogos; d) radiodifusão sonora ou televisiva; e) captação de transmissão de radiodifusão em locais de freqüência coletiva; f) sonorização ambiental; g) a exibição audiovisual, cinematográfica ou por processo assemelhado; h) emprego de satélites artificiais; i) emprego de sistemas óticos, fios telefônicos ou não, cabos de qualquer tipo e meios de comunicação similares que venham a ser adotados; j) exposição de obras de artes plásticas e figurativas; X - quaisquer outras modalidades de utilização existentes ou que venham a ser inventadas.
Isto é, em seu voto, Bellizze afirmou que o direito autoral garante ao autor o uso exclusivo de sua criação, seja para reprodução parcial ou integral. Dessa forma, qualquer utilização comercial depende de autorização expressa.
Nessa linha, o ponto crucial na decisão foi a interpretação do tribunal sobre o que constitui uma “utilização” da obra protegida.
O STJ rejeitou o argumento da Reserva de que as estampas seriam meras referências ou paráfrases, enquadrando-as, ao invés disso, como reproduções não autorizadas.
Lembre, a Reserva argumentou que o uso do conectivo “&” retiraria a ideia da utilização original da obra que seria protegida.
O STJ destacou que as frases utilizadas nas camisetas não se tratam de meras referências às músicas de Tim Maia, mas sim de reproduções literais de trechos das letras, com a inclusão de um conectivo estilizado. Essa apropriação foi considerada pelo ministro como uma exploração comercial indevida, caracterizando a violação dos direitos do autor.
Intertextualidade e criatividade: os limites jurídicos na moda
Na análise do caso Tim Maia vs. Reserva, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) enfrentou um desafio curioso: equilibrar o conceito de intertextualidade com a proteção legal dos direitos autorais.
Isto é, embora reconhecendo a importância da intertextualidade no processo criativo, o tribunal não hesitou em estabelecer fronteiras claras para sua aplicação no âmbito jurídico.
Nesse sentido, o STJ fez uma distinção crucial entre o uso transformativo permitido – como no caso das paródias, expressamente autorizadas pelo artigo 47 da Lei de Direitos Autorais (LDA) – e a mera reprodução com alterações superficiais.
Veja o que diz o artigo:
Art. 47. São livres as paráfrases e paródias que não forem verdadeiras reproduções da obra originária nem lhe implicarem descrédito.
No caso em questão, os Ministros entenderam que a simples adição do símbolo “&” e a remoção de alguns conectivos nas frases das músicas de Tim Maia não configuravam uma transformação significativa da obra original.
Dessa forma, o tribunal reforçou a necessidade de uma verdadeira reinterpretação criativa para que se possa invocar o conceito de intertextualidade como defesa em casos de direitos autorais.
Indenização
Um dos aspectos mais interessantes da decisão do STJ reside na inovadora abordagem adotada para o cálculo da indenização. Isto porque, rompendo com entendimentos anteriores, o STJ estabeleceu que a mera restituição do valor obtido com a venda dos produtos não basta para compensar adequadamente o autor e, ao mesmo tempo, desencorajar futuras violações.
Assim, fundamentando-se no artigo 103 da LDA e nos princípios gerais de responsabilidade civil, o STJ determinou que a indenização deve englobar não apenas o montante total auferido com a venda das camisetas. Ou seja, incluirá também uma quantia adicional:
Art. 103. Quem editar obra literária, artística ou científica, sem autorização do titular, perderá para este os exemplares que se apreenderem e pagar-lhe-á o preço dos que tiver vendido. Parágrafo único. Não se conhecendo o número de exemplares que constituem a edição fraudulenta, pagará o transgressor o valor de três mil exemplares, além dos apreendidos.
Em outras palavras, esse valor adicional deve equivaler ao valor que seria cobrado pelo autor para autorizar o uso de suas músicas, baseando-se em valores de mercado e nas práticas anteriores do próprio artista. Assim, o STJ determinou que:
a) O montante total auferido pela grife Reserva com as vendas das camisetas estampadas com as músicas de Tim Maia (não apenas o lucro, mas o valor total das vendas).
b) O valor que seria cobrado pelo titular dos direitos autorais para autorizar o uso das músicas. Isso seria conforme os valores praticados no mercado pelo próprio Tim Maia em outras autorizações similares.
Vale frisar que o STJ estabeleceu que a soma desses dois componentes está limitada ao valor de R$ 600.000,00. Esse foi o montante requerido na petição inicial pelo espólio de Tim Maia (adstrição do pedido à petição inicial). Entretanto, o valor exato da indenização será apurado em fase de liquidação de sentença.
Conclusão
O litígio em questão nasceu de uma prática comum na indústria da moda: o uso de referências culturais, neste caso, trechos de músicas famosas, em estampas de camisetas.
Nessa linha, a grife Reserva, ao utilizar frases como “Guaraná & Suco de caju & Goiabada & Sobremesa” e “Você & Eu & Eu & Você” em seus produtos, claramente inspiradas nas obras de Tim Maia, trouxe à tona um debate crucial sobre os limites da criatividade e a proteção legal dos direitos autorais.
O Superior Tribunal de Justiça, ao analisar o caso, reafirmou o direito exclusivo do autor sobre sua obra, seja para reprodução parcial ou integral, e a necessidade de autorização expressa para qualquer utilização comercial.
Um ponto crucial da decisão foi a rejeição do argumento da Reserva de que as estampas seriam meras referências ou paráfrases. O STJ entendeu que a simples adição do símbolo “&” e a remoção de alguns conectivos não configuravam uma transformação significativa da obra original. Isso não se enquadra, portanto, nas exceções previstas no artigo 47 da LDA, que permite paródias e paráfrases.
Vejamos a ementa para finalizar:
RECURSOS ESPECIAIS. PROPRIEDADE INTELECTUAL. DIREITO AUTORAL. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. NÃO OCORRÊNCIA. CAMISETAS ESTAMPADAS COM LETRAS DE MÚSICAS. AUSÊNCIA DE AUTORIZAÇÃO DO AUTOR. VIOLAÇÃO. OCORRÊNCIA. DANOS MATERIAIS. INDENIZAÇÃO. DUPLO CARÁTER. COMPENSATÓRIO E SANCIONATÓRIO. MAJORAÇÃO. NECESSIDADE. SUCUMBÊNCIA RECÍPROCA. INEXISTÊNCIA. RECURSO ESPECIAL DA RÉ CONHECIDO E DESPROVIDO. RECURSO ESPECIAL DO AUTOR CONHECIDO E PROVIDO. 1. Os propósitos recursais consistem em definir: i) se houve negativa de prestação jurisdicional; ii) se ficou demonstrada a ofensa a direitos autorais ante a utilização de palavras de uso ordinário e aplicadas em paráfrases nas estampas de camisetas; iii) qual o valor da condenação por uso não autorizado de direitos autorais; e iv) se houve sucumbência recíproca. 2. Verifica-se que o Tribunal de origem analisou todas as questões relevantes para a solução da lide de forma fundamentada, não havendo falar em negativa de prestação jurisdicional. 3. A finalidade dos direitos autorais é a de servir de incentivo à produção artística, científica e cultural, fomentando o desenvolvimento cultural, mas, ao mesmo tempo, encorajar os autores à produção criativa e original reconhecendo ao autor direitos exclusivos sobre sua criação intelectual, conferindo-lhe o monopólio da exploração da obra e exigindo a prévia e expressa autorização para qualquer forma de sua utilização. 4. Em seu aspecto patrimonial, confere-se ao autor o direito exclusivo de utilizar, fruir e dispor da obra literária, artística ou científica, dependendo de autorização prévia e expressa do titular do direito a utilização da obra, por quaisquer modalidades, tais como a sua reprodução parcial ou integral e sua utilização, direta ou indireta, conforme preveem os arts. 28 e 29 da LDA. 5. A utilização da obra intelectual, mediante sua reprodução ou representação, não configura intertextualidade, que é comum na atividade criativa, mas está sujeita a princípios que distinguem o reaproveitamento lícito do ilícito, de modo que a relação entre a criação preexistente e a nova é apenas de referência, sem que se caracterize o plágio. Um exemplo de intertextualidade lícita é a paródia, expressamente autorizada pelo art. 47 da LDA. 6. No caso dos autos, houve afronta ao direito de autor em razão da comercialização indevida de camisetas com reprodução de obras musicais do cantor e compositor Tim Maia pelo grupo empresarial detentor da grife "Reserva". As estampas ultrapassam a mera referência às obras do autor, tratando-se de cópia das letras de suas músicas com o simplório acréscimo do conectivo "&", o que configura a apropriação indevida da obra para exploração comercial. 7. Também não prospera o argumento de que as palavras estampadas nas camisetas são de uso ordinário e aplicadas em paráfrases, pois foram dispostas expressando sons, ritmo e melodia, da mesma forma em que combinadas harmoniosamente na obra do autor, o que apenas corrobora a originalidade e a criatividade empregada pelo autor na composição da obra, a qual, repita-se, foi indevidamente aplicada pela ré. 8. A legislação de regência não prevê critérios específicos para o arbitramento da indenização. No âmbito da responsabilidade civil há a regra geral de que a indenização mede-se pela extensão do dano (art. 944 do CC), a qual também deve ser estendida às violações aos direitos autorais, observando-se, ainda, o duplo caráter indenizatório das ofensas, isto é, abrangendo tanto a finalidade ressarcitória como também a punitiva, de modo que haja o desencorajamento do infrator, inibindo novas práticas semelhantes. 9. O arbitramento da indenização por danos materiais no montante apenas do lucro auferido com a vendas das camisetas não se compatibiliza com esse duplo caráter indenizatório. A vinculação do artista a uma determinada marca sem a devida autorização é conduta preocupante, pois pode representar um endosso do autor a um pensamento que não se compactua com sua convicção pessoal, tornando-o praticamente um sócio da grife, mas sem o seu aval, podendo implicar uma vantagem muito maior para o infrator, como a valorização de sua marca e o incremento na venda de outros produtos. 10. Para que haja a adequada remuneração do autor que teve seu direito preterido, considerando as consequências econômicas negativas sofridas pelo artista e os lucros indevidamente obtidos pelo infrator, a indenização por perdas e danos abarcará o montante total auferido ilicitamente e todos os prejuízos suportados pelo titular do direito. 11. A sucumbência é analisada sob a perspectiva do princípio da causalidade, o qual permite afirmar que quem deu causa à propositura da ação deve arcar com os ônus sucumbenciais dela advindos. Ademais, o art. 86, parágrafo único, do CPC/2015 prevê que aquela parte que sucumbir em parte mínima do pedido não responderá pelas despesas e honorários, cabendo à parte contrária o pagamento de sua integralidade. Ônus sucumbenciais corretamente arbitrados na origem. 12. Recurso especial de Tiferet Comércio de Roupas Ltda. conhecido e desprovido. Recurso especial de Sebastião Rodrigues Maia (Espólio) conhecido e provido. (REsp n. 2.121.497/RJ, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 10/9/2024, DJe de 12/9/2024.)
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