De início, o empresário gaúcho Orlando Busin estava sendo processado criminalmente por sonegação fiscal.
Mas havia um detalhe: na vara fiscal, ele questionava o cálculo do débito tributário.
Uma perícia contábil havia sido deferida e reduções anteriores já tinham ocorrido.
Seria justo prosseguir com a ação penal enquanto sequer se sabia ao certo o valor devido?
Foi com esse dilema que o Superior Tribunal de Justiça se deparou em junho de 2025, produzindo uma decisão que concluiu assim:
A suspensão da ação penal por crime contra a ordem tributária é admissível quando a discussão cível sobre o débito tributário apresenta plausibilidade e potencial de repercussão na esfera penal.
AgRg no AREsp 2.667.847-RS, Rel. Ministro Carlos Cini Marchionatti (Desembargador convocado do TJRS), Quinta Turma, por unanimidade, julgado em 3/6/2025, DJEN 9/6/2025.
Historicamente, a relação entre processo penal e discussões cíveis sobre tributos seguia uma lógica binária.
Ou o débito era completamente anulado — aí sim, não haveria crime — ou a ação penal seguia seu curso normal.
Afinal, reduzir o valor não apagaria o delito, certo?
Minúcias do caso concreto
De início, o TJRS, tudo começou quando o Tribunal de Justiça gaúcho concedeu habeas corpus para Busin.
Isto porque, os Desembargadores identificaram algo peculiar: já havia ocorrido modificação do crédito tributário em apelação cível anterior (processo 70073308405), e agora uma perícia contábil sugeria novas incongruências.
Mais ainda — e aqui está o pulo do gato —, o STF havia declarado em 2023 a constitucionalidade de dispositivos permitindo pagamento do débito fiscal a qualquer tempo, extinguindo a punibilidade.
O Ministério Público insurgiu-se.
Argumentava que redução não é anulação.
Diminuir o débito de, digamos, R$ 1 milhão para R$ 800 mil não tornaria o fato atípico.
O crime continuaria existindo.
Por que então suspender o processo criminal?
Cinge-se a controvérsia a definir se a pendência de ação cível que discute a redução do valor do débito tributário justifica a suspensão da ação penal por crime contra a ordem tributária.
Ocorre que o raciocínio do STJ foi por outro caminho. “A ação cível detém aptidão para dilatar o espectro de direitos do réu na ação penal, propiciando novas alternativas defensivas”, escreveu Marchionatti.
Traduzindo: se o valor cair substancialmente, talvez o empresário consiga quitar a dívida. E pagando, extinguirá o processo criminal.
Inclusive, no caso relatado por Nefi Cordeiro em 2019 (EDcl nos EDcl no AgRg no AREsp 1.291.190/SP), por exemplo, a suspensão ocorreu porque uma sentença cível havia reconhecido a nulidade do procedimento administrativo fiscal.
Mudança de paradigma: da rigidez ao caso concreto
Todavia, o ministro Reynaldo Soares da Fonseca já vinha sinalizando mudanças.
No RHC 113.294/MG, pontificou: havendo “dúvida razoável sobre a própria materialidade do delito, é prudente suspender o trâmite no juízo penal”.
Note-se a palavra-chave: prudente. Não obrigatório, não automático. Prudente.
E foi justamente essa prudência judicial que prevaleceu no caso Busin.

Isto porque, o artigo 93 do CPP confere ao juiz a faculdade — repita-se, faculdade — de suspender o processo quando houver questão prejudicial relevante.
Mas o que seria relevante? Apenas a anulação total do débito? O STJ disse que não.
Veja-se o seguinte cenário hipotético: um contribuinte é acusado de sonegar R$ 2 milhões.
Na esfera fiscal, demonstra que o valor correto seria R$ 500 mil. Com essa redução de 75%, ele consegue um empréstimo, vende um imóvel, parcela o restante e paga tudo. Resultado: extinção da punibilidade.
Faria sentido tocar o processo penal adiante, com toda sua carga estigmatizante, enquanto essa possibilidade concreta existe?
Por outro lado — e aqui entra o equilíbrio da decisão —, o Estado não sai perdendo.
Durante a suspensão, o prazo prescricional também fica paralisado, conforme artigo 116, I, do Código Penal.
Ou seja, se a discussão cível se arrastar por anos e o contribuinte não pagar, o processo criminal retoma exatamente de onde parou. Sem prescrição, sem impunidade.
Três pilares da nova orientação
A tese fixada pela Quinta Turma repousa sobre três pilares.
Primeiro: a suspensão é cabível quando a discussão cível apresenta plausibilidade e potencial repercussão penal.
Ou seja, não basta alegar; é preciso demonstrar que há fundamentos sérios na impugnação do débito.
Segundo pilar: cabe ao magistrado, no caso concreto, avaliar se a suspensão é necessária.
Assim, nada de automatismos.
Um juiz pode entender que, mesmo havendo discussão cível, as circunstâncias recomendam o prosseguimento da ação penal.
Outro magistrado, diante de situação similar mas com nuances distintas, pode decidir pela suspensão. É o que a doutrina chama de prudente arbítrio judicial.
Assim, o mero ajuizamento de uma ação anulatória não suspende a ação penal. Guarde isso, cai muito em provas.
Por fim, o terceiro pilar: suspendeu o processo, suspendeu a prescrição. Esse mecanismo protege tanto o réu (que ganha tempo para resolver a questão tributária) quanto a sociedade (que não vê o crime prescrever durante a discussão).
Interessante notar como o Ministério Público tentou, sem êxito, aplicar a técnica do distinguishing. Alegou que os precedentes citados tratavam de situações diferentes — anulação total versus redução parcial.
Mas o STJ entendeu que a distinção não era relevante. O que importa é o potencial da discussão cível de afetar substancialmente o desenrolar da ação penal.
Tal entendimento conduz à conclusão de que as instâncias ordinárias, fundamentadas nos princípios da prudência e da proporcionalidade, podem determinar a suspensão do feito criminal quando houver ação civil prejudicial, ainda que desta resulte, no máximo, a diminuição do débito tributário.
Ademais, a suspensão da ação penal harmoniza os direitos do acusado com os direitos da acusação, uma vez que a prescrição da pretensão punitiva também ficará impedida, na forma do art. 116, I, do Código Penal, enquanto perdurar a prejudicialidade.
Como o tema pode ser cobrado em provas
(Questão inédita) O mero ajuizamento de ação anulatória no âmbito fiscal, por si só, suspende o trâmite da ação penal.
Gabarito: errado.
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