Superendividamento – banco comparece na audiência mas não apresenta proposta – multa? Como decidiu o STJ

Superendividamento – banco comparece na audiência mas não apresenta proposta – multa? Como decidiu o STJ

De início, cumpre analisar a recente decisão proferida pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça no julgamento do REsp 2.191.259/RS, que traz importante interpretação sobre os limites da aplicação das sanções previstas no art. 104-A, § 2º, do Código de Defesa do Consumidor, introduzido pela Lei nº 14.181/2021, conhecida como Lei do Superendividamento.

O caso sob análise envolveu discussão acerca da possibilidade de imposição das consequências legais previstas para o não comparecimento do credor à audiência conciliatória ao credor que, embora tenha comparecido devidamente representado e com poderes para transigir, não apresentou proposta concreta de repactuação.

A importância do julgado reside no fato de estabelecer balizas interpretativas para a aplicação da nova legislação sobre superendividamento, delimitando os deveres das partes na fase pré-processual do procedimento de repactuação de dívidas e definindo os contornos do princípio da cooperação nesse contexto específico.

O que é o superendividamento?

Ocorre o superendividamento quando…

  • o consumidor pessoa física
  • que está de boa-fé
  • não consegue pagar a totalidade de suas dívidas de consumo (exigíveis e vincendas)
  • sem comprometer o seu mínimo existencial.

O superendividamento está diretamente relacionado com o mínimo existencial do indivíduo, conforme explicam Pablo Stolze e Carlos Eduardo Elias de Oliveira:

“O superendividamento contém traços de uma morte civil social. O indivíduo com o “nome sujo” e sem margem de crédito tende ao ostracismo. Não consegue montar novos negócios. Enfrenta estigmas ao buscar emprego. Sujeita-se a viver “de favor”. Enfim, o superendividamento pode levar o indivíduo a um estado de desesperança e, nas palavras de Raul Seixas, na música Ouro de Tolo, ficar sentado ‘no trono de um apartamento, com a boca escancarada cheia de dentes, esperando a morte chegar’.

O motivo é que o superendividamento fulmina o mínimo existencial do indivíduo.” (GAGLIANO, Pablo Stolze; OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Comentários à Lei do Superendividamento (Lei nº 14.181, de 1º de julho de 2021) e o princípio do crédito responsável. Uma primeira análise. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6575, 2 jul. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/91675. Acesso em: 2 jul. 2021).

Processo de repactuação de dívidas (art. 104-A do CDC)

A requerimento do consumidor superendividado pessoa natural, o juiz poderá instaurar processo de repactuação de dívidas.

Será, então, designada audiência conciliatória, presidida pelo juiz ou por conciliador credenciado no juízo, com a presença de todos os credores.

Na audiência, o consumidor apresentará proposta de plano de pagamento com prazo máximo de 5 anos, preservados o mínimo existencial, as garantias e as formas de pagamento originalmente pactuadas.

O pedido do consumidor para instaurar processo de repactuação:

  • não importará em declaração de insolvência civil; e
  • poderá ser repetido somente após decorrido o prazo de 2 anos, contado da liquidação das obrigações previstas no plano de pagamento homologado, sem prejuízo de eventual repactuação.

Conteúdo do plano de pagamento

Deverão constar no plano de pagamento:

I – medidas de dilação dos prazos de pagamento e de redução dos encargos da dívida ou da remuneração do fornecedor, entre outras destinadas a facilitar o pagamento da dívida;

II – referência à suspensão ou à extinção das ações judiciais em curso;

III – data a partir da qual será providenciada a exclusão do consumidor de bancos de dados e de cadastros de inadimplentes;

IV – condicionamento de seus efeitos à abstenção, pelo consumidor, de condutas que importem no agravamento de sua situação de superendividamento.

Não havendo êxito na conciliação (art. 104-B)

Se não houver êxito na conciliação em relação a quaisquer credores, o juiz, a pedido do consumidor, instaurará processo por superendividamento com a finalidade de:

  • revisão e integração dos contratos; e
  • repactuação das dívidas remanescentes mediante plano judicial compulsório.

Nesse caso, o juiz fará a citação de todos os credores cujos créditos não tenham integrado o acordo porventura celebrado.

Serão considerados no processo por superendividamento, se for o caso, os documentos e as informações prestadas em audiência.

Depois de citados, os credores terão o prazo de 15 dias para:

  • juntar documentos e
  • apresentar as razões pelas quais se negam a aceder (anuir) ao plano voluntário ou se negam a renegociar.

Contextualização processual

Superendividamento

Como visto, a Lei nº 14.181/2021 introduziu significativas alterações no Código de Defesa do Consumidor, visando aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e estabelecer mecanismos para a prevenção e o tratamento do superendividamento. Entre as inovações, destaca-se o procedimento de repactuação de dívidas do consumidor superendividado, que compreende uma fase pré-processual, de natureza conciliatória, e uma fase judicial, de caráter contencioso.

No caso em análise, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul manteve decisão que aplicou as sanções previstas no art. 104-A, § 2º, do CDC (suspensão da exigibilidade do débito, interrupção dos encargos da mora e sujeição compulsória ao plano de pagamento) a uma instituição financeira que, embora tenha comparecido à audiência conciliatória por meio de preposto com poderes para transigir, não apresentou proposta de acordo.

A controvérsia principal, portanto, centrou-se na interpretação do art. 104-A, § 2º, do CDC, que assim dispõe:

"O não comparecimento injustificado de qualquer credor, ou de seu procurador com poderes especiais e plenos para transigir, à audiência de conciliação de que trata o caput deste artigo acarretará a suspensão da exigibilidade do débito e a interrupção dos encargos da mora, bem como a sujeição compulsória ao plano de pagamento da dívida se o montante devido ao credor ausente for certo e conhecido pelo consumidor, devendo o pagamento a esse credor ser estipulado para ocorrer apenas após o pagamento aos credores presentes à audiência conciliatória."

Previsão de sanção para a fase conciliatória

A sanção em debate se refere expressamente à fase conciliatória, motivo pelo qual não existe óbice à sua aplicação na fase pré-processual.

Ninguém é obrigado a conciliar. Contudo, é salutar a imposição legal do dever de comparecimento à audiência de conciliação designada na primeira fase do processo, inclusive mediante procurador com “poderes especiais e plenos para transigir” (art. 104-A, § 2º, do CDC), sob pena de esvaziamento da finalidade do ato.

O comparecimento seria um dever anexo do contrato celebrado entre a instituição financeira e o consumidor, que decorre do princípio da boa-fé objetiva.

Portanto, as sanções em questão devem ser aplicadas independentemente de já ter sido instaurado o processo judicial de natureza litigiosa.

Responsabilidade das instituições financeiras pelo superendividamento

As instituições financeiras também são responsáveis pela situação de superendividamento, especialmente diante da violação dos deveres de transparência e informação adequada.

Nesse sentido, confira trecho da lição de Mariana Ribeiro Santiago:

“Não se pretende negar a licitude do fornecimento de crédito no mercado de consumo, como longamente se verifica na prática comercial, inclusive mediante a cobrança de encargos devidamente regulamentados pelos órgãos de controle da atividade financeira: a ilicitude apenas se verifica quando o referido negócio jurídico vem acompanhado de um exercício excessivo, ou seja, para além dos ditames éticos e sociais, como a prática de assédio de consumo ou mesmo a ausência de verificação adequada da capacidade financeira do contraente (no caso, do consumidor), levando-o ao patamar de endividamento patológico e privando-o do mínimo existencial constitucionalmente assegurado.” (Por um Direito ao Crédito Responsável: desafios e perspectivas para a tutela indenizatória do consumidor superendividado. - Revista de Direito do Consumidor, ano 33, vol. 152, mar./abr. 2024).

Inclusive, já há decisão do STJ sobre isso:

As sanções pelo não comparecimento injustificado do credor à audiência de conciliação no processo de tratamento do superendividamento, previstas no art. 104-A, § 2°, do CDC, podem ser aplicadas na fase consensual (pré-processual). 

STJ. 3ª Turma. REsp 2.168.199-RS, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 3/12/2024 (Informativo 836).

A questão é a seguinte: temos multa para o CREDOR que comparece na audiência mas não oferece nenhuma proposta de acordo?

Fundamentos do voto do relator – proposta de acordo – consumidor

O voto do Ministro Relator Ricardo Villas Bôas Cueva, que prevaleceu por maioria, assentou-se na premissa de que, na fase pré-processual do processo de superendividamento, a iniciativa conciliatória e o ônus da apresentação de proposta de plano de pagamento são do consumidor, nos termos expressos do caput do art. 104-A do CDC.

Segundo o Relator, as sanções previstas no § 2º do art. 104-A do CDC destinam-se exclusivamente a punir o não comparecimento do credor à audiência ou o comparecimento sem poderes para transigir, não se aplicando ao credor que, embora presente e com poderes adequados, não formule proposta de acordo.

Doutra banda, vale salientar que a Ministra Nancy Andrighi abriu divergência, entendendo que o simples comparecimento do preposto da instituição financeira à audiência conciliatória, sem que esteja munido de contraproposta em caso de rejeição daquela apresentada pelo consumidor superendividado, denota postura não colaborativa e é, em termos práticos, indistinguível da sua ausência, o que justificaria a aplicação das sanções previstas no dispositivo legal.

O entendimento predominante

Por maioria, a Terceira Turma acompanhou o voto do Relator, fixando a tese de que não se aplicam as consequências do art. 104-A, § 2º, do CDC ao credor que comparece à audiência de conciliação com advogado com poderes para transigir, mas não apresenta proposta de acordo, desde que não identificados motivos de ordem cautelar que justifiquem tal medida.

A fundamentação majoritária estruturou-se nos seguintes pilares:

  1. Distribuição de ônus na fase pré-processual: o procedimento estabelece expressamente que cabe ao consumidor apresentar proposta de plano de pagamento, não havendo previsão legal de obrigação semelhante imposta ao credor;
  2. Interpretação restritiva de normas sancionatórias: as consequências previstas no dispositivo legal constituem sanções e, como tais, deve-se interpretá-las restritivamente, não comportando aplicação analógica ou extensiva;
  3. Consequência legal da não conciliação: a lei já prevê solução para o caso de não haver acordo na fase conciliatória: a submissão do contrato, a critério do consumidor, à fase judicial, com possível revisão e repactuação compulsória do débito;
  4. Poder geral de cautela do juiz: embora afastada a aplicação automática das sanções, reconheceu-se a possibilidade de o juiz, no exercício do poder geral de cautela e com a devida fundamentação, adotar medidas semelhantes na fase judicial, em caráter cautelar.

Outras decisões relevantes sobre o tema:

A Lei nº 14.181/2021 alterou o Código de Defesa do Consumidor, para aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento.

Essa Lei inseriu o art. 104-A no CDC oferecendo à pessoa física, em situação de vulnerabilidade (superendividamento), a possibilidade de, perante seus credores, rediscutir, repactuar e, finalmente, cumprir suas obrigações contratuais/financeiras.

Cabe à Justiça comum estadual e/ou distrital processar e julgar as demandas oriundas de ações de repactuação de dívidas decorrentes de superendividamento - ainda que exista interesse de ente federal (CEF). Isso porque a interpretação do art. 109, I, da CF/88, deve ser teleológica de forma a alcançar, na exceção da competência da Justiça Federal, as hipóteses em que existe o concurso de credores.

STJ. 2ª Seção. CC 193066-DF, Rel. Min. Marco Buzzi, julgado em 22/3/2023 (Informativo 768).

Como o tema já foi cobrado em concursos

FCC - 2021 - DPE-AM - Defensor Público

O não comparecimento injustificado de qualquer credor, ou de seu procurador com poderes especiais e plenos para transigir, à audiência de conciliação acarretará a suspensão da exigibilidade do débito e a interrupção dos encargos da mora, bem como a sujeição compulsória ao plano de pagamento da dívida se o montante devido ao credor ausente for certo e conhecido pelo consumido. (Correto).

Quer saber quais serão os próximos concursos?

Confira nossos artigos para Carreiras Jurídicas!
0 Shares:
Você pode gostar também