Peculato-desvio: STJ rejeita denúncia contra governador

Peculato-desvio: STJ rejeita denúncia contra governador

Em 06/02/2025, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ) rejeitou, por 8 votos a 3, uma denúncia contra o governador do Amazonas que o acusava de peculato-desvio no transporte de respiradores durante a pandemia de Covid-19.

Nessa linha, vamos entender a repercussão jurídica.

Contexto

Como é cediço, o caso originou-se em 2020. Na época, o então Governador do Amazonas contratou uma empresa de táxi aéreo para transportar 28 respiradores de São Paulo para Manaus.

Entretanto, conforme previsão no contrato dos respiradores, quem deveria pagar esses valores deveria ser a empresa que vendeu os respiradores.

Isto é, segundo a denúncia do Ministério Público Federal (MPF), o Estado do Amazonas pagou R$ 191.852,80 pelo transporte, valor que a empresa fornecedora dos equipamentos deveria custear, conforme previsto no termo de referência da contratação.

Assim, aliado a outros detalhes, o MPF denunciou por “peculato-desvio”. Vamos entender o caso, mas antes, uma notícia também que está associado a esse julgamento que está pendente de discussão no judiciário:

Wilson Lima é réu em outro processo envolvendo a compra de respiradores:

Investigações

É importante ressaltar que este caso deriva da mesma investigação que resultou em outra ação penal (APn 993). Nela, o STJ recebeu denúncia contra o governador por supostas irregularidades na compra dos mesmos respiradores, com alegado superfaturamento de R$ 2 milhões.

Isto é, em setembro de 2021, Wilson Lima tornou-se réu em outro processo, por supostos crimes praticados na compra superfaturada de respiradores pulmonares destinados ao tratamento de vítimas da Covid-19 no estado. A decisão foi unânime.

No processo, o MPF apontou que o governador do Amazonas cometeu delitos de dispensa irregular de licitação, fraude a procedimento licitatório, peculato, liderança em organização criminosa e embaraço às investigações.

Os crimes ocorreram na compra de 28 respiradores, cujo superfaturamento teria causado prejuízo de mais de R$ 2 milhões aos cofres públicos. Segundo o órgão, o preço de mercado de um respirador, na época, era cerca de R$ 17 mil, mas os itens foram comprados pelo governo por mais de R$ 100 mil cada.

Na denúncia, o MPF descreve irregularidades na forma de condução da compra emergencial, na emissão de pareceres e na dispensa da licitação, além de apontar o desvio de recursos públicos destinados ao combate à pandemia no Amazonas”.

Vale destacar que esse caso ainda não foi julgado.

Análise jurídica

Peculato

O crime de peculato está previsto no artigo 312 do Código Penal, nos seguintes termos:

Art. 312 - Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio:

Pena - reclusão, de dois a doze anos, e multa.

§ 1º - Aplica-se a mesma pena, se o funcionário público, embora não tendo a posse do dinheiro, valor ou bem, o subtrai, ou concorre para que seja subtraído, em proveito próprio ou alheio, valendo-se de facilidade que lhe proporciona a qualidade de funcionário.

Peculato culposo

§ 2º - Se o funcionário concorre culposamente para o crime de outrem:

Pena - detenção, de três meses a um ano.

§ 3º - No caso do parágrafo anterior, a reparação do dano, se precede à sentença irrecorrível, extingue a punibilidade; se lhe é posterior, reduz de metade a pena imposta.

A análise do crime de peculato vai ser subdividida pela classificação doutrinária.

O caput prevê as figuras denominadas de peculato-apropriação e peculato-desvio, sendo que ambas compõem o chamado peculato próprio.

Há, no parágrafo primeiro, o chamado peculato-furto, que é classificado como peculato impróprio.

Por fim, o parágrafo segundo traz o chamado peculato culposo.

Há outras modalidades de peculato, a serem tratadas na análise dos artigos subsequentes ao 312. 

Resumindo, o tipo penal apresenta quatro modalidades principais:

  1. Peculato-apropriação: quando o funcionário público se apropria do bem de que tem posse em razão do cargo
  2. Peculato-desvio: quando o funcionário público desvia o bem em proveito próprio ou de terceiro
  3. Peculato-furto (§1º): quando o funcionário público, mesmo não tendo posse do bem, o subtrai ou concorre para sua subtração
  4. Peculato culposo (§2º): quando o funcionário público concorre culposamente para o crime de outrem

Peculato-apropriação

Veja, o peculato-apropriação está previsto na primeira parte do caput do artigo 312, com os seguintes termos: “Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo”.

Como no crime de apropriação indébita, a ação nuclear é apropriar-se (apoderar-se, assenhorear-se, arrogar-se a posse de) de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular.

Logo, exige-se, para a configuração do peculato apropriação, a anterior posse ou detenção lícita da coisa, em razão do cargo, ou seja, o agente deve ter, anteriormente à conduta típica, a posse justa do dinheiro, do valor ou de qualquer outro bem móvel, público ou particular.

A disponibilidade jurídica exigida em alguns casos pelo STJ não é a disponibilidade de dispor do bem como lhe aprouver, mas a disponibilidade, por exemplo, do ordenador de despesas, que, se paga a si próprio diárias de forma indevida, pode responder por peculato. É a disponibilidade de alocar os recursos, mas nos termos da lei.

Deste modo, a consumação do delito se dá com a inversão do título da posse. Isto é, o agente deixa de possuir em nome alheio (alieno domine), em razão de seu cargo, para possuir como dono (causa dominii). Portanto, é um elemento subjetivo, que deve ser demonstrado por um ato exterior, algo que transcenda o simples elemento anímico, a mera vontade do agente.

Peculato-desvio

O peculato desvio corresponde à segunda parte do caput do artigo 312, traduzindo-se na expressão: “ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio”.

A conduta incriminada é desviar, o funcionário público, dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, em proveito próprio ou alheio.

Desviar é dar destinação diversa. Ou seja, é a malversação do dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel de que o funcionário público tem a posse em razão do cargo.

Cezar Bittencourt ensina que não é necessário o animus rem sibi habendi, podendo configurar-se o crime com o uso irregular do dinheiro, valor ou bem móvel, desde que haja o propósito do proveito próprio ou alheio.

Outros entendimentos importantes, extraídos inclusive do nosso LDI:

1)O peculato desvio tem como elemento subjetivo o dolo, além de exigir o elemento subjetivo especial, representado pela expressão “em proveito próprio ou alheio”.

2)Embora, a doutrina majoritária entenda que é crime material, exigindo o resultado naturalístico, a inversão da posse, para sua consumação, o STJ tem entendido que se trata de crime formal. O STJ tem precedente em que considerou o crime formal, ao julgar que se configura o crime em caso de retenção, pelo Governador, de valores relativos a empréstimos consignados:

"Peculato-desvio é crime formal para cuja consumação não se exige que o agente público ou terceiro obtenha vantagem indevida mediante prática criminosa, bastando a destinação diversa daquela que deveria ter o dinheiro. Os aspectos formais da descrição típica da conduta estão preenchidos na medida em que é desviado dinheiro destinado ao pagamento de empréstimos consignados de servidores públicos".

2. Configura peculato-desvio a retenção dos valores descontados da folha de pagamento dos servidores públicos que recebiam seus vencimentos já com os descontos dos valores de retenção a título de empréstimo consignado, mas, por ordem de administrador, os repasses às instituições financeiras credoras não eram realizados.

3. "Na modalidade peculato-desvio, não se discute o deslocamento de verbas públicas em razão de gestão administrativa, mas o deslocamento de dinheiro particular em posse do Estado. Assim, a consumação do crime não depende da prova do destino do dinheiro ou do benefício obtido por agente ou terceiro". (APn 814/SD, Rel. p/ acórdão Min João Otávio de Noronha, Corte Especial, DJe 04/02/2020).

3)O STF já entendeu, em análise sumária, ser possível a capitulação como peculato-desvio da conduta de pagamento antecipado a contratante da Administração Pública, de forma ilegal, do valor total devido em virtude de aditivo contratual celebrado irregularmente, antes da execução das obras:

“(...) 5. O pagamento antecipado, ao arrepio da lei, da totalidade do valor de aditivo contratual celebrado irregularmente, poucos dias após a sua assinatura e antes de realizadas as obras públicas objeto do liame jurídico-administrativo, permite a formulação inicial de um juízo positivo de tipicidade do crime de peculato-desvio, previsto no art. 312, caput, segunda parte, do Código Penal, o que também autoriza o recebimento da denúncia, no ponto. (...)” (STF, Inq 3621/MA, Rel. p/ acórdão Min. Alexandre de Moraes, Primeira Turma, Julgamento em 28/03/2017).

4)Sobre referida figura típica, o STJ já consignou haver sua configuração em caso de expedição de passagens aéreas a terceiros sem interesse público e às custas do erário:

“(...) 5. O dolo exigido para a incidência do peculato-desvio é a consciência e a vontade definitiva de desviar a coisa (dinheiro, valor ou qualquer outra coisa móvel) pertencente ao Poder Público de sua finalidade. O elemento subjetivo especial do tipo ou do injusto é o de que que se faça o desvio em proveito próprio ou alheio. (...) 7. Na hipótese concreta, ao formular os pedidos ao Presidente da Assembleia Legislativa, o réu tinha consciência da existência de todos os elementos objetivos e subjetivos componentes do tipo objetivo do art. 312, caput, segunda figura, do CP, e, igualmente, teve a vontade de dar às verbas públicas aplicação diversa da que lhe é determinada, em benefício de outrem e em atendimento a interesses privados. 8. In casu, o réu requereu a expedição das passagens de forma consciente e intencional, não tendo deixado desatentamente de cuidar de patrimônio sobre o qual tinha a posse em razão do cargo, permitindo, com isso, a prática de crime doloso por terceira pessoa, não havendo, assim, adequação típica de sua conduta ao crime de peculato culposo. (...)” (APn 629/RO, Rel. Min. Nancy Andrighi, Corte Especial, DJe 10/08/2018).

Caso concreto

O Min. Raul Araújo, autor do voto vencedor, desenvolveu o seguinte raciocínio para concluir que não haveria peculato-desvio.

De início, examinou que só há crime se houver dolo. Isto porque, “para a caracterização do crime de peculato é imprescindível a demonstração do dolo específico de apropriação ou desvio em proveito próprio ou alheio” (REsp 1.745.410/SP).

Nessa linha, relatou que “entre os dias 3 e 7 de abril de 2020, período em que ocorreu o transporte dos respiradores, uma secretaria do estado ainda estava elaborando a minuta do termo de referência que estabeleceria a obrigação do fornecedor em arcar com os custos de entrega”.

Ou seja, simultaneamente ao tempo em que comprava os respiradores, outro órgão estadual já havia iniciado as providências para o transporte dos equipamentos. É como se “tudo aconteceu ao mesmo tempo”.

Além disso, ressaltou que o Amazonas enfrentava uma grave crise sanitária de colapso de óbitos e de saúde, inclusive, para você relembrar:

Em outras palavras, essa circunstância demandava ações simultâneas e urgentes de diversos órgãos públicos, muitas vezes sem a possibilidade de seguir o trajeto usual das contratações públicas.

Sendo assim, entendeu-se que para a configuração do peculato-desvio, seria necessário demonstrar que o agente público, conscientemente, desviou recursos sabendo que o pagamento do transporte era obrigação do fornecedor.

No entanto, como a distribuição formal dos custos ainda não estava estabelecida no momento do transporte, não se poderia falar em desvio doloso.

Decisão do STJ

Logo, por maioria, o STJ entendeu que havia justa causa para a ação penal eis que 1) não havia formalização prévia da responsabilidade pelos custos do transporte; 2) houve atuação simultânea e que não foi coordenada por diferente órgãos, o que, foi uma falha administrativa, mas não que foi uma conduta criminosa; 3) o contexto da pandemia solicitava um agir rápido para salvar vidas.

Bom, eu não tenho dúvidas que veremos muitos casos oriundo da pandemia.

E que isso cairá em provas.

Fique ligado!


Quer saber quais serão os próximos concursos?

0 Shares:
Você pode gostar também