STJ decide que contemplação lasciva é suficiente para caracterizar estupro
Fotos: Geovana Albuquerque/Agência Brasília

STJ decide que contemplação lasciva é suficiente para caracterizar estupro

* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.

Entenda o que aconteceu

A 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu, recentemente, que a mera contemplação lasciva pode ser suficiente para a consumação do crime de estupro, haja vista que os delitos contra a dignidade sexual se consumam independentemente da ligeireza e da superficialidade da conduta ou da ausência de contato físico.

No REsp 2.173.769, o STJ manteve a condenação de um médico por estupro praticado contra duas pacientes em seu consultório.

Como os crimes foram praticados? Vejamos então.

O médico solicitou que a paciente tirasse toda a roupa, fez comentários de cunho erótico sobre a região genital e pediu para ter contato físico. Quando a paciente negou, a consulta encerrou.

A defesa argumentou que a conduta não se amolda sequer ao tipo penal do crime de importunação sexual (artigo 215-A do Código Penal), que pune quem pratica contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia.

Ainda segundo a defesa, o médico teria apenas proferido elogios ou cantadas que não passaram disso, e apontou que, se olhares voluptuosos forem entendidos como ato libidinoso, toda a população poderia ser criminalizada.

O relator do caso, ministro Ribeiro Dantas, afirmou que a contemplação lasciva configura ato libidinoso para os tipos penais de estupro, independentemente de contato físico. A votação foi unânime pela confirmação da condenação pelo crime de estupro de vulnerável.

“O caso em tela não se reduz a meros ‘olhares voluptuosos’ que refletem desejo sexual por outrem, abrangidos pelo livre exercício da liberdade sexual. Está-se diante de conduta de agente que, durante seu ofício, leva a erro a vítima para que se desnude, com intuito de satisfazer a sua lascívia”. 

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Análise jurídica

Estupro virtual

A doutrina e a jurisprudência já vêm reconhecendo a possibilidade do cometimento do crime de estupro sem a necessidade de contato físico, a exemplo do estupro virtual.

Estupro virtual pode ser conceituado como o ato de constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ato libidinoso através da internet ou de outros meios virtuais (telefone, carta, rádio etc.), ou seja, sem contato físico direto.    

Geralmente o estupro virtual se consuma através das mais variadas redes sociais, tais como Instagram e Facebook.

O autor André Santos Guimarães arremata:

“No caso em que o autor, ameaçando divulgar vídeo íntimo da vítima, a constrange, via internet, a se auto masturbar ou a introduzir objetos na vagina ou no ânus, tem-se estupro, pois a vítima, mediante grave ameaça, foi constrangida a praticar ato libidinoso diverso da conjunção carnal. Portanto, o estupro virtual configura-se quando o autor se vale da internet para praticar em desfavor da vítima a conduta descrita no art. 213 do Código Penal”.1

Ademais, desde a alteração legislativa ocorrida em 2009, com a Lei nº 12.015/09, não há necessidade da conjunção carnal (contato físico direto / cópula pênis-vagina) para a consumação do crime de estupro.

Portanto, consideram-se atos tipificados como estupro virtual:

  • Obrigar a vítima a se masturbar sob pena de divulgação de vídeos íntimos;
  • Constranger a vítima, com base em ameaça, a introduzir objetos na vagina ou no ânus;
  • Forçar a vítima a se despir, sob pena de divulgação de fotos íntimas;

O STJ possui jurisprudência pacificada no sentido de admitir a figura do estupro virtual:

HABEAS CORPUS. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. QUALQUER ATO DE LIBIDINAGEM. CONTATO FÍSICO DIRETO. PRESCINDIBILIDADE. CONTEMPLAÇÃO LASCIVA POR MEIO VIRTUAL. SUFICIÊNCIA. ORDEM DENEGADA.

1. É pacífica a compreensão, portanto, de que o estupro de vulnerável se consuma com a prática de qualquer ato de libidinagem ofensivo à dignidade sexual da vítima, conforme já consolidado por esta Corte Nacional.

2. Doutrina e jurisprudência sustentam a prescindibilidade do contato físico direto do réu com a vítima, a fim de priorizar o nexo causal entre o ato praticado pelo acusado, destinado à satisfação da sua lascívia, e o efetivo dano à dignidade sexual sofrido pela ofendida.

3. No caso, ficou devidamente comprovado que o paciente agiu mediante nítido poder de controle psicológico sobre as outras duas agentes, dado o vínculo afetivo entre eles estabelecido. Assim, as incitou à prática dos atos de estupro contra as infantes (uma de 3 meses de idade e outra de 2 anos e 11 meses de idade), com o envio das respectivas imagens via aplicativo virtual, as quais permitiram a referida contemplação lasciva e a consequente adequação da conduta ao tipo do art. 217-A do Código Penal.

4. Ordem denegada.

(HC n. 478.310/PA, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 9/2/2021, DJe de 18/2/2021.)

Contemplação lasciva

Mas o que vem a ser a contemplação lasciva?

estupro

Portanto, o fato do acusado não ter tocado na vítima não é suficiente para isentá-lo de responsabilidade criminal, podendo, entretanto, influenciar na dosimetria da pena, em respeito à proporcionalidade entre um infrator que tocou na vítima e o outro que “apenas” a contemplou lascivamente.

A contemplação lasciva, sozinha, não se enquadra na expressão conjunção carnal. No entanto, ela pode se caracterizar como ato libidinoso diverso da conjunção carnal, apta a configurar o crime de estupro, previsto no art. 213, do código penal.

CP

Art. 213.  Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:          

Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.

...

Estupro de vulnerável

Art. 217-A.  Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:               

Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.              

§ 1o  Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.

Crime contra a dignidade sexual

Importante ressaltar que o crime de estupro é um crime contra a dignidade sexual, a exemplo dos crimes de violação sexual mediante fraude, assédio sexual, corrupção de menores, casa de prostituição, e ato obsceno.

Pode-se entender a dignidade sexual, que é um direito fundamental do ser humano, como a própria condição humana no âmbito das relações sexuais, envolvendo o respeito e a preservação da sexualidade.

Ademais, é à preservação desse inestimável valor que os crimes contra a dignidade sexual se voltam, garantindo sua indisponibilidade e plena observância.

Se a contemplação lasciva estiver conjugada com o ato de constrangimento do outro (“constranger alguém”), estará configurado o crime de estupro.

No caso recentemente analisado pelo STJ (REsp 2.173.769), que confirmou a condenação do médico pelo crime de estupro de vulnerável, a Corte ressaltou que a jurisprudência da Casa entende que a contemplação lasciva configura ato libidinoso para os tipos penais dos arts. 213 e 217-A do Código Penal, sendo irrelevante a ausência de contato físico.

E que a conduta do acusado, ao utilizar sua posição de médico para induzir as vítimas a se despirem e contemplar seus órgãos sexuais, caracteriza ato libidinoso consumado, não se resumindo a meros “olhares voluptuosos”.

A tese de julgamento foi a seguinte:

“1. A contemplação lasciva configura ato libidinoso para os tipos penais dos arts. 213 e 217-A do Código Penal, independentemente de contato físico.

2. A utilização de posição de confiança para induzir vítimas a se despirem com intuito lascivo caracteriza estupro de vulnerável.”

Tema que pode ser cobrado em provas de direito penal e processual penal. Portanto, muita atenção!


  1. GUIMARÃES, André Santos. Estupro Virtual. Instituto Justiça de Saia. Disponível em: <http://www.justicadesaia.com.br/estupro-virtual-2>. Acesso em 10/10/2020. ↩︎

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