STF declara o marco temporal inconstitucional
Foto: Kamikia Kisedje

STF declara o marco temporal inconstitucional

* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.

Decisão do STF

O Supremo Tribunal Federal formou maioria para derrubar a aplicação do marco temporal para a demarcação de terras indígenas. 

O julgamento discute a constitucionalidade da lei 14.701/23, norma que trata do reconhecimento, da demarcação, do uso e da gestão das terras indígenas.

O julgamento (envolvendo a ADC 87 e as ADIs 7.582, 7.583 e 7.586) foi tratado como de extrema urgência, visando pacificar conflitos no campo que têm gerado instabilidade social, econômica e mortes.

O ponto central é a análise da constitucionalidade da Lei 14.701/2023, que tentou restabelecer o marco temporal após o STF já ter afastado essa tese no Tema 1.031 de repercussão geral.

Mas qual foi a tese fixada no tema 1.031 do STF?

Tese

TEMA 1.031 do STF

I - A demarcação consiste em procedimento declaratório do direito originário territorial à posse das terras ocupadas tradicionalmente por comunidade indígena; 

II - A posse tradicional indígena é distinta da posse civil, consistindo na ocupação das terras habitadas em caráter permanente pelos indígenas, nas utilizadas para suas atividades produtivas, nas imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e nas necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições, nos termos do § 1º do artigo 231 do texto constitucional; 

III - A proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independe da existência de um marco temporal em 05 de outubro de 1988 ou da configuração do renitente esbulho, como conflito físico ou controvérsia judicial persistente à data da promulgação da Constituição; 

IV – Existindo ocupação tradicional indígena ou renitente esbulho contemporâneo à promulgação da Constituição Federal, aplica-se o regime indenizatório relativo às benfeitorias úteis e necessárias, previsto no § 6º do art. 231 da CF/88; 

V – Ausente ocupação tradicional indígena ao tempo da promulgação da Constituição Federal ou renitente esbulho na data da promulgação da Constituição, são válidos e eficazes, produzindo todos os seus efeitos, os atos e negócios jurídicos perfeitos e a coisa julgada relativos a justo título ou posse de boa-fé das terras de ocupação tradicional indígena, assistindo ao particular direito à justa e prévia indenização das benfeitorias necessárias e úteis, pela União; e, quando inviável o reassentamento dos particulares, caberá a eles indenização pela União (com direito de regresso em face do ente federativo que titulou a área) correspondente ao valor da terra nua, paga em dinheiro ou em títulos da dívida agrária, se for do interesse do beneficiário, e processada em autos apartados do procedimento de demarcação, com pagamento imediato da parte incontroversa, garantido o direito de retenção até o pagamento do valor incontroverso, permitidos a autocomposição e o regime do § 6º do art. 37 da CF; 

VI – Descabe indenização em casos já pacificados, decorrentes de terras indígenas já reconhecidas e declaradas em procedimento demarcatório, ressalvados os casos judicializados e em andamento; 

VII – É dever da União efetivar o procedimento demarcatório das terras indígenas, sendo admitida a formação de áreas reservadas somente diante da absoluta impossibilidade de concretização da ordem constitucional de demarcação, devendo ser ouvida, em todo caso, a comunidade indígena, buscando-se, se necessário, a autocomposição entre os respectivos entes federativos para a identificação das terras necessárias à formação das áreas reservadas, tendo sempre em vista a busca do interesse público e a paz social, bem como a proporcional compensação às comunidades indígenas (art. 16.4 da Convenção 169 OIT); 

VIII – A instauração de procedimento de redimensionamento de terra indígena não é vedada em caso de descumprimento dos elementos contidos no artigo 231 da Constituição da República, por meio de pedido de revisão do procedimento demarcatório apresentado até o prazo de cinco anos da demarcação anterior, sendo necessário comprovar grave e insanável erro na condução do procedimento administrativo ou na definição dos limites da terra indígena, ressalvadas as ações judiciais em curso e os pedidos de revisão já instaurados até a data de conclusão deste julgamento; 

IX - O laudo antropológico realizado nos termos do Decreto nº 1.775/1996 é um dos elementos fundamentais para a demonstração da tradicionalidade da ocupação de comunidade indígena determinada, de acordo com seus usos, costumes e tradições, na forma do instrumento normativo citado; 

X - As terras de ocupação tradicional indígena são de posse permanente da comunidade, cabendo aos indígenas o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e lagos nelas existentes; 

XI - As terras de ocupação tradicional indígena, na qualidade de terras públicas, são inalienáveis, indisponíveis e os direitos sobre elas imprescritíveis; 

XII – A ocupação tradicional das terras indígenas é compatível com a tutela constitucional do meio ambiente, sendo assegurado o exercício das atividades tradicionais dos povos indígenas; 

XIII – Os povos indígenas possuem capacidade civil e postulatória, sendo partes legítimas nos processos em que discutidos seus interesses, sem prejuízo, nos termos da lei, da legitimidade concorrente da FUNAI e da intervenção do Ministério Público como fiscal da lei. 

Terras tradicionalmente ocupadas

A CF/88, em seu artigo 231, prescreve que:

“Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

§ 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.

...

§ 4º As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.”

A grande questão, portanto, é saber quais terras são consideradas tradicionalmente ocupadas pelos índios.

Nesse contexto, ganha destaque o marco temporal, tese jurídica que ganhou repercussão em 2009, no julgamento da demarcação da reserva Raposa-Serra do Sol, em Roraima, segundo a qual as populações indígenas têm o direito de ocupar apenas as terras que já ocupavam ou que já disputavam no momento da promulgação da Constituição Federal de 1988, ou seja, em 05/10/1988.

Portanto, se em 05/10/1988 uma área não estava ocupada ou disputada por povos indígenas, essa área não deveria ser considerada terra indígena (segundo a tese do marco temporal).

Perspectivas

Os ambientalistas e os indígenas criticam fortemente o critério do marco temporal. Segundo eles, validaria invasões e abusos cometidos contra indígenas antes da Constituição.

De outro lado, temos os ruralistas e o agronegócio, que defendem a tese do marco temporal como fator determinante da garantia do direito de propriedade, além de contribuir para a segurança jurídica e econômica.

Marco

O embate está formado: ambientalistas e indígenas defendendo o fim do marco temporal, enquanto os ruralistas e o agronegócio defendendo a manutenção desse critério.

A disputa chegou ao STF no julgamento do RE 1.017.365 (tema 1.031), como visto, e a Suprema Corte, em 2023, afastou a tese do marco temporal.

Ocorre que, após o julgamento do tema, o Congresso aprovou a Lei nº 14.701/2023, que ressuscitou a tese do marco temporal, em clara reação à decisão do STF.

Interpretação do STF

Agora, a Corte enterra de vez a tese, sob os seguintes fundamentos:

  • Violação de Direitos Originários: o marco temporal ignora que muitas comunidades foram expulsas violentamente de seus territórios antes de 1988, tornando a prova de ocupação naquela data quase impossível.
  • Jurisprudência Internacional: a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) também rejeita o marco temporal. A Corte entende que o direito à propriedade indígena baseia-se na ocupação tradicional e na relação simbiótica com o território.
  • Retrocesso: condicionar direitos originários a uma data específica configura proteção insuficiente e retrocesso social.

O STF procedeu a uma “limpeza” na lei, invalidando trechos e conferindo interpretações específicas:

  • Indenização e Retenção (Arts. 9º e 11): considerou-se constitucional o direito dos proprietários de boa-fé à indenização prévia (pela terra nua e benfeitorias) e o direito de retenção, permitindo que permaneçam na área até o pagamento do valor incontroverso pela União.
  • Participação de Entes Federados (Arts. 5º e 6º): garante-se a participação de Estados e Municípios desde o início da fase instrutória (identificação e delimitação), garantindo o contraditório.
  • Atividades Econômicas (Arts. 26 e 27): são permitidas atividades econômicas e turismo em terras indígenas, desde que organizados pela própria comunidade e que os benefícios sejam revertidos para todo o grupo.
  • Redimensionamento (Art. 13): o STF declarou inconstitucional a proibição de ampliar terras já demarcadas, permitindo o redimensionamento em casos de erro grave e insanável na demarcação original.

Medidas estruturais e combate à omissão estatal

O relator, ministro Gilmar Mendes, destacou a omissão inconstitucional da União, que deveria ter concluído as demarcações em 1993, conforme o art. 67 do ADCT. Para suplantar essa mora, houve propostas de determinações como:

  • Transparência: publicação de uma lista de antiguidade de reivindicações em 60 dias.
  • Paz no Campo: vedação de novas invasões ou “retomadas” forçadas após o julgamento, sob pena de mover a comunidade invasora para o final da fila de demarcação.
  • Proteção: distribuição de dispositivos de emergência (“botões do pânico”) para comunidades em risco.

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