STF invalida leis locais que proibiam ideologia de gênero nas escolas

STF invalida leis locais que proibiam ideologia de gênero nas escolas

* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.

O Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucionais leis municipais que proibiam a inclusão de conteúdos sobre gênero e orientação sexual na rede pública de ensino.

A Corte julgou, em conjunto, duas ações:

  • ADPF 466, proposta pela Procuradoria-Geral da República, contra lei do município de Tubarão/SC; e
  • ADPF 522, de autoria do PSOL, que impugnava normas de Petrolina e Garanhuns/PE.

Participaram do julgamento, como amicus curiae:

  • A Anadep – Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos, que defendeu a inconstitucionalidade formal e material das leis que proíbem o ensino e o debate sobre gênero e orientação sexual nas escolas;
  • O Grupo Arco-Íris de Cidadania LGBT, que defendeu a inconstitucionalidade das leis municipais que proíbem o debate sobre gênero e orientação sexual nas escolas, por violarem o pacto federativo e direitos fundamentais como a igualdade, o pluralismo de ideias e a liberdade de ensinar e aprender;
  • A Clínica Interamericana de Direitos Humanos da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ, destacando que os standards do Sistema Interamericano de Direitos Humanos devem servir de parâmetro tanto para a admissibilidade quanto para o mérito das ADPFs, por integrarem o chamado “bloco de fundamentalidade”.

A Constituição de 1988 dota-se de dupla abertura – material, aos direitos fundamentais, e internacional, aos direitos humanos -, o que faz com que os tratados internacionais de direitos humanos e a Constituição componham um mesmo sistema normativo.

Portanto, o sistema interamericano não é fonte externa, mas parte integrante do direito constitucional brasileiro.

Análise jurídica

Inconstitucionalidade formal

O STF possui jurisprudência pacificada no sentido de que os municípios não possuem competência para legislar sobre conteúdos pedagógicos (diretrizes e bases educacionais) na rede pública de ensino, matéria de competência privativa da União.  

gênero

Nos termos do art. 22, XXIV, da Constituição da República, compete privativamente à União legislar sobre as “diretrizes e bases da educação nacional”.

O Constituinte não veiculou norma genérica reservando à União a competência para esgotar a legislação sobre educação. Ao contrário, limitou a regra de competência privativa às diretrizes e bases da educação.

O que não for considerado diretrizes a bases da educação entra na regra do art. 24, IX, da CF, segundo o qual compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre educação, competindo aos Municípios, ainda, a teor do art. 30, I e II, da CF, legislar sobre assuntos de interesse local e suplementar a legislação federal e a estadual no que couber.

A corte entendeu que a vedação ao uso de materiais relacionados ao ensino do gênero está longe de ser matéria de interesse local, podendo ser enquadrado, sim, como diretriz da educação, cuja competência é privativa da União.

LDB

Além do mais, as normas municipais objeto de julgamento contrapõe-se ao regramento conferido à matéria pela Lei nº 9.394/1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), notadamente no seu art. 3º, que estabelece os princípios com base nos quais será ministrado o ensino, destacando-se:

  • Igualdade de condições para o acesso e permanência na escola (inciso I);
  • Liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber (inciso II);
  • Pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas (inciso III);
  • Respeito à liberdade e apreço à tolerância (inciso IV); e
  • Valorização do profissional da educação escolar (inciso VII).

A lei municipal não se limitou a regulamentar o interesse local, mas proíbe conteúdo pedagógico que não corresponde às diretrizes fixadas na LDB, configurando usurpação de competência.

Portanto, a despeito de complementarem a legislação federal, os Estados e os Municípios não podem contrariar ou desrespeitar normas gerais fixadas pela União, bem como invadir a seara destinada à edição de diretrizes e bases de educação, cuja competência privativa é da União.

O Colegiado considerou que a norma local instituiu um regime jurídico paralelo e contrário à LDB, que estabelece princípios como a liberdade de aprender e ensinar, o pluralismo de ideias e a valorização do profissional da educação.

Enfim, as leis municipais que proíbem o ensino de gênero nas escolas contrariam os arts. 26, caput, 27, I, 32, IV, 35, III, e 35-A da Lei federal nº 9.394/1996 (LDB), segundo os quais os conteúdos escolares deverão observar, ainda, a difusão de valores fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos cidadãos, de respeito ao bem comum e à ordem democrática, bem como o fortalecimento dos vínculos de família, dos laços de solidariedade humana e de tolerância recíproca em que se assenta a vida social e, ainda, o aprimoramento do educando como pessoa humana.

Houve, portanto, usurpação de competência privativa da União para legislar sobre o tema (artigo 22, XXIV, da CF/88).

Inconstitucionalidade material

As leis que tentam banir o ensino de gênero foram tidas como violadoras das liberdades constitucionais.

Para o STF, houve violação direta à liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber (art. 206, II, da CF) e ao pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas (artigo 206, I e III, da CF).

A legislação declarada inconstitucional representa uma verdadeira censura e um atentado às liberdades de cátedra, pensamento, consciência e expressão, violando o artigo 5º, IX, da CF, que assegura a livre expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura.

Também foi utilizado como fundamento a violação aos princípios elementares de um Estado democrático de direito, violando a laicidade do Estado (artigo 19, I, da CF) e o pluralismo político (artigo 1º, V, da CF).

Laicidade

A laicidade ganha força a partir do Iluminismo, que reforçou a necessidade da separação entre o Poder Público e a Igreja. Essa mistura entre fé e estado foi muito comum no absolutismo, e não trouxe bons frutos para a humanidade.

Benefícios trazidos pela laicidade:

  • Assegura liberdade religiosa;
  • Assegura tratamento igualitário entre as pessoas;
  • Assegura autonomia individual;
  • Assegura a pluralidade de pensamento e crença.

Mas a laicidade não significa que o Estado não possa dialogar ou firmar parcerias com a igreja. O que é vedado pela Constituição é a adoção de uma religião oficial, o favorecimento a uma igreja específica, a dependência e a vinculação a uma religião.

Importante não confundir laicidade com laicismo!

LAICIDADELAICISMO
Não há uma relação de dependência ou favorecimento entre o Estado e uma religião específica, mas há garantia à liberdade religiosa, e há possibilidade de fomenta às diversas religiões.Pensamento ideológico em que a religião é vista de forma negativa, pejorativa, devendo ser totalmente desconsiderada pelo Estado. É marcado pela intolerância religiosa e por medidas autoritárias.

Pluralidade do pensamento

Para a maioria dos ministros, a concepção de neutralidade compatível com a Constituição não é a imposição artificial de um ensino “insípido, inodoro e incolor”, mas sim a preservação das condições para o florescimento do pluralismo e o livre mercado de ideias.

Negar aos estudantes o contato com a pluralidade do pensamento resulta na formação de discentes robotizados e intelectualmente fragilizados.

Isso sem falar na incompatibilidade da norma declarada inconstitucional com a:

  • Dignidade da pessoa humana: art. 1º, III, da CF – O direito à autodeterminação sexual e de gênero decorre diretamente do princípio da dignidade da pessoa humana; e
  • O princípio fundamental da igualdade de todos perante a lei: art. 5º, caput, da CF.

A proibição de ensino de gênero não deixa de afrontar o objetivo constitucional de construir uma sociedade livre, justa e solidária e à promoção do bem de todos, sem preconceitos de sexo e quaisquer outras formas de discriminação.

Os diplomas normativos declarados inconstitucionais veiculam conteúdo essencialmente discriminatório no tocante a direitos e liberdades fundamentais de pessoas homossexuais ou transexuais, sendo dever do Estado promover políticas de combate à desigualdade e à discriminação de minorias.

Por fim, a Corte entendeu que a educação sobre diversidade sexual é importante para crianças, adolescentes e jovens, indivíduos especialmente vulneráveis, e ao suprimir o domínio do saber sobre diversidade do universo escolar, a norma desrespeita o direito a uma educação plural que prepare os indivíduos para a vida em sociedade, conforme previsto no artigo 205, da CF.


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