Introdução
O Superior Tribunal de Justiça (STJ), em julgamento recente (HC 932.495-SC, Rel. Ministro Messod Azulay Neto, Quinta Turma, julgado em 6/8/2024), enfrentou uma questão delicada no âmbito do direito penal e constitucional: a possibilidade de interrupção da gravidez em caso de feto com Síndrome de Edwards.
O caso concreto e a decisão do STJ
No caso em tela, discutiu-se a concessão de salvo-conduto para autorizar a realização de procedimento de interrupção da gravidez de feto diagnosticado com Síndrome de Edwards e cardiopatia grave.
A Quinta Turma do STJ, por unanimidade, decidiu pela impossibilidade de concessão do salvo-conduto.
Síndrome de Edwards
A Síndrome de Edwards, também conhecida como trissomia do cromossomo 18, é uma condição genética grave caracterizada pela presença de um cromossomo 18 extra.
Esta síndrome está associada a múltiplas anomalias congênitas e a um prognóstico extremamente reservado.
Características da Síndrome de Edwards:
- Alta taxa de mortalidade pré-natal e neonatal;
- Severo atraso no desenvolvimento;
- Malformações cardíacas em cerca de 90% dos casos;
- Anomalias cerebrais, renais e gastrointestinais.
Diferentemente da anencefalia, onde há ausência de desenvolvimento cerebral, na Síndrome de Edwards existe desenvolvimento cerebral, ainda que frequentemente anormal.
Isso cria uma situação médica e ética mais complexa, pois alguns indivíduos com esta síndrome podem sobreviver além do período neonatal, embora com grave comprometimento.
Fundamentação legal
A decisão do STJ baseia-se principalmente na interpretação dos seguintes artigos do Código Penal:
Artigo 124 do Código Penal:
Artigo 126 do Código Penal:
Art. 128 do Código Penal:
Além disso, a decisão leva em conta princípios constitucionais, especialmente:
Artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal:
Artigo 5º, caput, da Constituição Federal:
Análise da decisão
Diferenciação em relação à ADPF 54
O STJ fez uma distinção crucial entre o caso em análise e o precedente estabelecido na ADPF 54.
Na ADPF 54, o STF declarou inconstitucional a interpretação que criminalizava a interrupção da gravidez de feto anencéfalo.
A decisão do STF baseou-se na premissa de que o feto anencéfalo não tem potencialidade de vida extrauterina.
No caso atual, embora o feto apresente Síndrome de Edwards, uma condição genética grave com alta probabilidade de letalidade, o STJ entendeu que não havia comprovação definitiva da impossibilidade de vida fora do útero.
Esta distinção foi fundamental para a decisão de não aplicar, por analogia, o entendimento da ADPF 54.
Ausência de risco comprovado à vida da gestante
O STJ também considerou que não havia elementos objetivos que indicassem risco à vida da gestante no prosseguimento da gravidez.
Esta consideração é relevante porque, se houvesse tal risco, poderia ser caracterizada a excludente de ilicitude prevista no art. 128, inciso I, do Código Penal.
Princípio da legalidade penal
A decisão do STJ parece estar alinhada com o princípio da legalidade penal, evitando uma interpretação extensiva que poderia ser considerada criação de nova hipótese de excludente de ilicitude não prevista em lei.
Comparação com a ADPF 54
É importante notar as diferenças entre este caso e a ADPF 54:
Implicações da decisão
Esta decisão do STJ tem implicações significativas:
Como o tema já caiu em concursos
MPE-SP - 2013 - MPE-SP - Promotor de Justiça Substituto A Suprema Corte tratou do tema antecipação do parto ou interrupção da gravidez na ADPF 54 em que foi postulada a interpretação dos arts. 124 e 126 do Código Penal – autoaborto e aborto com o consentimento da gestante – em conformidade com a Constituição Federal, quando fosse caso de feto anencéfalo. Após julgar procedente a ação, o Colendo Tribunal declarou que a ocorrência de anencefalia nos dispositivos invocados provoca a A)exclusão da antijuridicidade. B)exclusão da tipicidade. C)exclusão do concurso de crimes. D)aplicação de perdão judicial. E)inexigibilidade de conduta diversa. Gab: B
UERR - 2018 - IPERON Acerca da decisão do STF sobre a interrupção da gravidez de feto anencefálico, assinale a alternativa correta. A)Concluiu-se pela inadmissibilidade da interrupção da gravidez, pois o direito à vida - absoluto - só pode ser excepcionado em hipóteses expressamente previstas na Constituição. B)Em que pese a decisão autorizando a interrupção da gravidez, concordaram os Ministros ser impossível uma ponderação de interesses quando direitos constitucionais estão em aparente rota de colisão. C)A autorização para a interrupção da gravidez - com efeito apenas no caso concreto que era julgado - veio após a unanimidade dos Ministros decidirem que os direitos à intimidade e à autonomia da vontade dos pais têm maior valor do que o direito à vida do nascituro. D)Tencionava-se fosse dada a dispositivos do Código Penal uma interpretação conforme a Constituição e o instrumento escolhido para sua propositura foi a arguição de descumprimento de preceito fundamental. E)A decisão foi tomada em uma ação direta de inconstitucionalidade, em que se buscava a declaração da inconstitucionalidade de lei municipal que vedava a prática. Gab: D
VUNESP - 2022 - PC-RR - Delegado de Polícia Civil A decisão do Supremo Tribunal Federal, prolatada na ADPF no 54, que autoriza a realização voluntária do aborto de feto anencefálico teve como um dos seus expressos fundamentos A)a interpretação conforme a Constituição com redução de texto. B)o princípio da unidade constitucional. C)a interpretação declarativa especificadora. D)a interpretação constitucional concretizadora. E)a intepretação constitucional sem redução de texto. Gab: E
Conclusão
A decisão do STJ no HC 932.495-SC representa uma interpretação conservadora da lei penal em relação à interrupção da gravidez em casos de anomalias fetais graves.
Ao fazer uma distinção clara entre a Síndrome de Edwards e a anencefalia (objeto da ADPF 54), o Tribunal reafirma a excepcionalidade das hipóteses de aborto legal no Brasil, conforme previstas no artigo 128 do Código Penal.
Esta decisão provavelmente alimentará debates futuros sobre os limites da interpretação judicial em casos de anomalias fetais graves e sobre a necessidade de uma legislação mais específica para abordar essas situações complexas.
Além disso, ressalta a importância de considerar as particularidades médicas de cada condição genética ao avaliar questões legais relacionadas à interrupção da gravidez, sempre à luz dos princípios constitucionais, especialmente o da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF) e o direito à vida (art. 5º, caput, CF).
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