Servidor é condenado por injúria racial ao comparar cabelo de advogada com vassoura piaçava

Servidor é condenado por injúria racial ao comparar cabelo de advogada com vassoura piaçava

* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.

Servidor público da prefeitura de Sorocaba/SP foi condenado, pela juíza da 3ª vara Criminal de Sorocaba, a dois anos e oito meses de reclusão e 13 dias-multa por injúria racial após comparar o cabelo de uma advogada a uma vassoura de piaçava.

Além disso, o servidor poderá responder em liberdade e deverá prestar serviços à comunidade.

O caso

Servidor, Julietta Teófilo

O episódio ocorreu durante uma videochamada na Justiça do Trabalho de Sorocaba, em abril de 2023. Durante a reunião, a advogada Julietta Teófilo estava participando quando uma servidora pública fez um elogio ao cabelo da profissional: “Que cabelo bonito!

Foi aí que o servidor, Geraldo Baptista Benette, fez um comentário debochado, dizendo: “Bonito? Parece mais uma vassoura de piaçava“. A advogada prontamente chamou a atenção do funcionário público, afirmando que sua fala era criminosa.

Ao fim da reunião, a advogada relatou o caso à ouvidoria do TRT da 15ª Região, e a Comissão de Igualdade Racial da OAB acionou o Ministério Público.

A defesa do servidor condenado argumentou que a frase foi dita em tom de brincadeira e não tinha a intenção de ofender.

Benette arrematou:

“…que nunca teve a intenção de ofender a doutora Julietta, inclusive já a tinha atendido outras vezes e nunca aconteceu nada… que não tem nada contra pessoas negras, que nunca teve, não tem, e nunca terá… que tem setenta e três anos de idade, e na vida inteira dele nunca aconteceu uma coisa dessa com ele… que, se pudesse voltar no tempo, não teria pronunciado a palavra que pronunciou…”

Na sentença (processo nº 1517754-15.2023.8.26.0602), contudo, a juíza afastou a tese da defesa, asseverando que:

“A alegação da Defesa, em memorial, de que a frase dita pelo acusado foi em claro tom de brincadeira, não merece amparo pois o contexto em que tais palavras foram proferidas não revelam que eram amigos, que estavam numa conversa descontraída ou que o acusado tinha liberdade para “brincar” dessa forma com a vítima, ao contrário, estava cada um em seu ambiente de trabalho, exercendo sua função, e pelo que ficou demonstrado possuíam relação estritamente profissional, sem que houvesse qualquer motivo para que o acusado fizesse “piada de mau gosto” e usasse expressão discriminatória em razão da raça, cor ou etnia da vítima.”

A magistrada também afastou a tese subsidiária defensiva de que o ato teria como tipificação a injúria simples, e não injúria racial:

“Também não há que se falar que o crime praticado pelo acusado trata-se de crime de injúria em sua modalidade simples como alega a Defesa em memorial, pois este ocorre quando uma pessoa profere a outra um xingamento, contendo algo desonroso ou ofensivo, atingindo a sua dignidade, honra e moral, enquanto que o crime de injúria racial ocorre quando são utilizados elementos referentes à raça, cor, etnia ou procedência nacional, para ofender ou desrespeitar alguém, que foi o que ocorreu nestes autos, portanto, fica afastada a tese de desclassificação do crime de injúria racial para o crime de injúria em sua modalidade simples”.

A juíza aplicou a pena mínima prevista para o crime de injúria racial, mas aumentou a pena em um terço devido à função pública exercida pelo réu no momento do crime, conforme estabelece o art. 20-B da lei 7.716/89, que trata de crimes resultantes de preconceito de raça ou cor.

Além da pena de reclusão, substituída por prestação de serviços à comunidade e multa, o réu terá o direito de recorrer em liberdade.

Análise jurídica

Injúria simples e injúria racial

Vimos que a condenação do servidor foi pelo crime de injúria racial, e não injúria simples. Mas você sabe a diferença? Se liga só!

A diferença entre injúria simples e injúria racial é que a injúria simples é uma ofensa à dignidade ou ao decoro de alguém, por meio de palavras, gestos ou outros meios que expressem desprezo, menosprezo ou desrespeito, enquanto a injúria racial é uma ofensa à honra de alguém valendo-se de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião ou origem.

Considera-se a injúria racial um crime contra a igualdade, e não mais contra a honra de uma pessoa. Desde janeiro de 2023 (Lei nº 14.532/2023), no Brasil, o racismo e a injúria racial recebem tratamento legal similar.

Ademais, a Lei nº 7.716/89 define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. O artigo 2º-A trata da injúria racial:

Art. 2º-A Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional.

Pena: reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.

Parágrafo único. A pena é aumentada de metade se o crime for cometido mediante concurso de 2 (duas) ou mais pessoas.

...

Art. 20-B. Os crimes previstos nos arts. 2º-A e 20 desta Lei terão as penas aumentadas de 1/3 (um terço) até a metade, quando praticados por funcionário público, conforme definição prevista no Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las.

Já o artigo 140, do Código Penal, trata da injúria simples:

Art. 140 - Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:

Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.

§ 1º - O juiz pode deixar de aplicar a pena:

I - quando o ofendido, de forma reprovável, provocou diretamente a injúria;

II - no caso de retorsão imediata, que consista em outra injúria.

§ 2º - Se a injúria consiste em violência ou vias de fato, que, por sua natureza ou pelo meio empregado, se considerem aviltantes:

Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa, além da pena correspondente à violência.

§ 3º Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a religião ou à condição de pessoa idosa ou com deficiência:

Pena - reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.

A Lei nº 7.716/89 é conhecida como a Lei do Crime Racial, pois ela define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor.

Já a Lei nº 14.532/2023 equiparou a injúria racial ao crime de racismo, alterando a Lei do Crime Racial e o Código Penal para tipificar como racismo a injúria racial. A mudança aprofunda a ação de combate ao racismo, criando elementos para interpretação dos contextos e evidenciando algumas modalidades de racismo que não eram evidentes.

Racismo estrutural

O Brasil sofre desde a sua fundação com o racismo, em especial no período de vigência da escravidão, que foi abolida oficialmente em 13 de maio de 1888, quando a princesa Isabel assinou a Lei Áurea.

Mas os efeitos nefastos da discriminação racial em nosso país se arrastam até hoje, o que motiva e reforça a necessidade da luta contra essa prática que insiste em nos envergonhar, e que acaba se consolidando como um racismo estrutural.

O que é o racismo estrutural? Vejamos então:

O racismo estrutural consiste em uma cultura enraizada de discriminação racial por toda a sociedade, relegando os negros a uma situação de inferioridade social, econômica, política. Ou seja, é o racismo que está impregnado em todas as estruturas da sociedade, tais como instituições, consciente coletivo, arte, academia, esporte. O racismo estrutural não se manifesta, necessariamente, através de atos isolados de discriminação ou de preconceito, mas decorre de um processo histórico discriminatório que é alimentado pela falta de políticas públicas voltadas a inclusão de pessoas negras no protagonismo social.

Essa luta contra o racismo se intensificou após a Constituição Federal de 1988, quando foi incluído o crime de racismo como inafiançável e imprescritível.

CF/88

Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:

...

VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo;

...

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

...

XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;

No caso concreto o xingamento voltado ao cabelo da vítima teve, segundo a magistrada, nítido caráter racial, já que relacionado ao cabelo típico ou comum da raça negra, o que atraiu a aplicação do artigo 2º-A, da Lei nº 7.716/89, ao invés do artigo 140, do código penal.

Atitudes racistas já são, por si só, detestáveis. Mas quando praticadas por agentes públicos é ainda pior, haja vista que o Poder Público tem o poder-dever de liderar esse processo de conscientização pública e de combate ao racismo.

Que o episódio nos sirva de lição para não tolerarmos mais gestos, piadas, olhares, condutas, que, mesmo sem percebermos de forma consciente, sejam discriminatórios, vexatórios ou humilhantes contra quem quer que seja.

O tema não poderia ser mais atual, e é uma ótima pedida para provas discursivas de direito constitucional, direitos humanos e direito penal. Fiquem atentos!


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