Responsabilidade objetiva em atividades bancárias de risco

Responsabilidade objetiva em atividades bancárias de risco

Era uma manhã de terça-feira, 16 de novembro de 2004, quando Débora Borim da Silva, então com 22 anos, aguardava o transporte público no ponto de ônibus localizado no bairro Jardim das Américas, nas proximidades do Centro Politécnico da Universidade Federal do Paraná.

A jovem estudante de Engenharia Civil, prestes a concluir o último período do curso, tinha pela frente um futuro promissor.

Naquele momento fatídico, um veículo blindado da empresa Proforte estacionara em frente à agência do Banco Bradesco para efetuar o recolhimento rotineiro de malotes contendo numerários, cheques e documentos. Subitamente, meliantes armados deflagraram o assalto, iniciando intensa troca de tiros com os vigilantes da transportadora.

No meio do fogo cruzado, um projétil atingiu a coluna vertebral de Débora, transpassando rim e fígado, condenando-a à paraplegia irreversível.

Após duas décadas de tramitação judicial, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do AgInt no REsp 1.565.331-PR, sob a relatoria do Ministro Raul Araújo, em maio de 2025, consolidou tese fundamental sobre responsabilidade civil objetiva em atividades bancárias de risco, majorando a indenização para R$ 600 mil por danos morais e estéticos.

Fundamentação jurídica da responsabilidade objetiva: fortuito interno versus externo

A ratio decidendi da decisão está sedimentada na teoria do risco da atividade, conforme disposto no art. 14 do Código de Defesa do Consumidor.

Destarte, o tribunal rejeitou peremptoriamente a alegação defensiva de caso fortuito externo. Estabeleceu que “a responsabilidade da instituição financeira e da transportadora de valores por assaltos ocorridos no âmbito de suas atividades, em regra, constitui risco inerente às atividades econômicas exploradas, constituindo fortuito interno”.

Nessa linha de intelecção, o acórdão enfatizou que "a tentativa de roubo a carro-forte estacionado em via pública, em frente à agência de instituição financeira, para efetivar a transferência de dinheiro não pode ser considerada como evento de força maior, pois extremamente previsível e mitigável ou evitável".

Com efeito, o colegiado considerou determinante o modus operandi adotado pelas recorridas, que “ao optarem por realizar a transferência de expressivas quantias de dinheiro em ambiente externo e aberto, totalmente vulnerável e exposto a eventuais atividades criminosas, durante a movimentação e agitação do expediente normal de trabalho e de comércio, com amplo fluxo de pessoas, atraíram para si a obrigação de reparação de eventuais danos causados a terceiros”.

Outrossim, o relator sustentou que “há hipóteses em que se deve reconhecer a obrigação de indenizar, notadamente naquelas em que se verifica, pela natureza da atividade econômica explorada, risco à segurança de terceiros, tratando-se de evento previsível e evitável, relacionado diretamente à atividade”.

À vista disso, a decisão afastou qualquer pretensão atinente ao rompimento do nexo de causalidade, consolidando entendimento de que o fortuito deve qualificar-se como interno quando decorrente de riscos inerentes ao negócio jurídico explorado.

Por conseguinte, o tribunal aplicou integralmente os preceitos consumeristas, equiparando a vítima transeunte ao conceito de “consumidor bystander” previsto no art. 17 do CDC, estabelecendo que a responsabilidade objetiva alcança não apenas o consumidor direto, mas todas as vítimas de acidentes de consumo decorrentes de fato do serviço.

Contexto jurisprudencial: evolução da responsabilidade objetiva em atividades de transporte de valores

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem evoluído consistentemente no sentido de reconhecer a responsabilidade objetiva das instituições financeiras e transportadoras de valores por danos causados a terceiros durante operações de risco.

Nesse diapasão, precedente paradigmático da Terceira Turma (REsp 1.372.889/SP, Relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 13/10/2015) já havia estabelecido que atenta contra a segurança do consumidor “a opção pelo uso de armas de fogo pelos prepostos da ré em confronto com meliantes, em local de intenso trânsito de pessoas, priorizando a recuperação do dinheiro roubado à integridade física dos consumidores que lá se encontravam”.

Ademais, a Quarta Turma, no REsp 1.327.778/SP (Relator Ministro Luis Felipe Salomão, julgado em 2/8/2016), confirmou a responsabilidade solidária de toda a cadeia de prestação do serviço, incluindo supermercados instalados em shopping centers quando do assalto a transportadoras que retiravam malotes do estabelecimento.

Não obstante, em casos anteriores como o AgRg no AREsp 25.280/SP (Relator Ministro Raul Araújo, julgado em 7/5/2013), a Corte já havia sedimentado o entendimento de que "a instituição bancária possui o dever de segurança em relação ao público em geral (Lei n. 7.102/1983), o qual não pode ser afastado por fato doloso de terceiro (roubo e assalto)".

Em que pese alguns julgados isolados terem admitido excludentes em situações específicas, a linha jurisprudencial dominante consolidou-se no sentido de que assaltos a carros-fortes constituem risco da atividade, especialmente quando ocorrem durante operações rotineiras em locais de grande circulação de pessoas.

Sob essa ótica, o AgRg nos EDcl no REsp 844.186/RS (Relator Ministro Antônio Carlos Ferreira, julgado em 19/6/2012) reforçou que “não sendo admitida a alegação de força maior ou caso fortuito, mercê da previsibilidade de ocorrência de tais eventos na atividade bancária”.

A partir dessa premissa consolidada, o presente julgado representa evolução natural da jurisprudência, que passou a considerar não apenas a previsibilidade dos assaltos, mas também a inadequação das medidas de segurança adotadas pelas empresas em locais públicos movimentados.

Aspectos processuais: iter complexo e argumentação das partes

O iter procedimental do caso apresenta significativa complexidade, tendo tramitado por mais de duas décadas desde o evento danoso ocorrido em 2004.

Na origem, o processo foi distribuído perante a Justiça Estadual do Paraná sob o número 00046428520068160001, onde obteve sentença de parcial procedência em primeira instância.

Responsabilidade objetiva

O juízo a quo deferiu liminar determinando que os requeridos custeassem serviço de enfermagem no valor de R$ 7.069,55 mensais, além de pensão correspondente a 2/3 dos rendimentos que a vítima auferiria como engenheira, fixada em R$ 2.362,50 mensais.

Cumpre observar que ambas as requeridas interpuseram recursos de apelação perante o Tribunal de Justiça do Paraná.

O Banco Bradesco sustentou preliminar de ilegitimidade passiva, argumentando que “não há qualquer relação entre o dano causado à Agravada Débora e a atividade bancária, na medida em que o dano foi decorrente de assalto ocorrido fora da agência bancária”.

Outrossim, a defesa alegou que “o roubo ao carro forte era inevitável e, embora houvesse previsibilidade da ocorrência de assaltos, não foi previsto pelos agentes de segurança que poderia ocorrer, perfazendo-se, assim, fato inevitável”.

Por sua vez, a Proforte defendeu tese de caso fortuito ou força maior, sustentando que “a imprevisibilidade mostra-se presente, não havendo culpa ou dolo de sua parte”.

Dessarte, ambas as empresas pugnaram pela aplicação de excludentes de responsabilidade civil, negando o nexo causal entre suas atividades e o dano experimentado pela vítima.

Não se pode olvidar que o Tribunal de Justiça paranaense, em acórdão detalhadamente fundamentado, rejeitou as preliminares e manteve a condenação, majorando inclusive os valores indenizatórios.

A instância ad quem reconheceu que “resta caracterizada a responsabilidade civil das ora apelantes, e consequentemente o dever de indenizar”, aplicando a teoria do risco criado em razão da atividade desenvolvida pelas rés.

Critério bifásico de valoração: metodologia consolidada para quantificação dos danos

É forçoso reconhecer que a quantificação dos danos morais e estéticos constitui uma das questões mais sensíveis do direito civil contemporâneo.

Nesse contexto, o STJ tem adotado sistematicamente o critério bifásico de arbitramento, conforme sedimentado no REsp 1.152.541/RS (Relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 13/9/2011) e reafirmado no REsp 1.473.393/SP (Relator Ministro Luis Felipe Salomão, julgado em 4/10/2016).

Dessa maneira, na primeira fase do arbitramento, valoriza-se o interesse jurídico lesado, considerando-se a gravidade da lesão e suas consequências para a vítima. In casu, o tribunal destacou que “a autora contava com 22 anos de idade quando foi vítima de disparo de arma de fogo, o que ensejou drásticas mudanças na sua condição de vida, assim como de toda a sua família, com impactos físicos e psicológicos imensuráveis”.

Com efeito, a jovem “até então saudável e ativa, prestes a se formar em Engenharia, viu-se, repentinamente, presa a uma cadeira de rodas após ser atingida por um tiro na coluna vertebral, que transpassou rim e fígado”.

Na segunda fase, analisam-se as circunstâncias específicas do caso concreto, incluindo as condições socioeconômicas das partes envolvidas e a gravidade da conduta dos ofensores.

Por conseguinte, o relator fundamentou a majoração da indenização considerando precedentes análogos envolvendo paraplegia, citando o REsp 1.958.437/SP (Relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 5/10/2021), onde se fixou indenização de R$ 600.000,00 em situação similar, e o AgInt no AREsp 2.152.793/TO (Relatora Ministra Assusete Magalhães, julgado em 17/10/2022), que considerou razoável o valor de R$ 520.000,00.

Ademais, o acórdão reconheceu o instituto dos danos morais reflexos em favor dos genitores da vítima, aplicando a teoria consolidada do dano ricochete.

Conforme precedente invocado (AgInt no REsp 2.026.618/MA, Relatora Ministra Maria Isabel Gallotti, julgado em 4/9/2023), "o dano moral indireto ou reflexo é aquele que, tendo se originado de um ato lesivo ao direito personalíssimo de determinada pessoa (dano direto), não se esgota na ofensa à própria vítima direta, atingindo, de forma mediata, direito personalíssimo de terceiro, em razão de seu vínculo afetivo estreito com aquele diretamente atingido".

Consolidação da responsabilidade objetiva no setor financeiro

À vista disso, a tese consolidada estabelece parâmetros objetivos para responsabilização dessas empresas, afastando definitivamente a possibilidade de invocação de excludentes tradicionais em operações rotineiras de risco.

Nesse diapasão, bancos e transportadoras deverão necessariamente rever seus protocolos operacionais, priorizando medidas de segurança que protejam terceiros em detrimento da mera preservação patrimonial.

Por sua vez, o precedente orienta que a escolha por procedimentos operacionais em vias públicas movimentadas transfere integralmente às empresas o ônus pelos riscos criados, independentemente da atuação de terceiros criminosos.

Outrossim, a aplicação do conceito de “consumidor bystander” amplia significativamente o espectro de proteção do CDC, alcançando qualquer pessoa que seja vitimada por acidentes de consumo, ainda que não mantenha relação contratual direta com o fornecedor.


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