Introdução
Primeiramente, imagine a seguinte situação:
João, um motorista experiente, está viajando pela rodovia BR-101, administrada pela concessionária Rota do Sol S.A., quando se depara subitamente com uma vaca na pista. Apesar de seus esforços para desviar, João não consegue evitar a colisão.
O acidente resulta em danos significativos ao seu veículo e ferimentos leves em João. Ao buscar reparação, João se vê diante de uma questão jurídica complexa: quem deve ser responsabilizado pelo acidente? A concessionária da rodovia ou o proprietário do animal?
Assim, este cenário hipotético ilustra perfeitamente o tipo de situação abordada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) em seu recente julgamento sob o rito dos recursos repetitivos (Tema 1.122).
Nesse sentido, a decisão, proferida pela Corte Especial em 21/08/2024, estabelece critérios claros para a responsabilização das concessionárias de rodovias em casos de acidentes causados pela presença de animais nas pistas de rolamento.
Contexto legal
Antes de analisarmos a decisão, é importante relembrar o contexto legal relevante:
Constituição Federal
Art. 1º, III: Dignidade da pessoa humana como fundamento da República. Art. 5º, III: Proibição de tratamento desumano ou degradante. Art. 5º, XLIX: Respeito à integridade física e moral dos presos (por analogia, aplicável à integridade dos usuários de serviços públicos). Art. 37, § 6º: Responsabilidade objetiva das pessoas jurídicas de direito público e privado prestadoras de serviços públicos.
Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/1990)
Art. 6º, VI: Direito básico do consumidor à efetiva prevenção e reparação de danos. Art. 14: Responsabilidade objetiva do fornecedor de serviços. Art. 22: Obrigação dos órgãos públicos e suas concessionárias de fornecer serviços adequados, eficientes e seguros.
Lei de Concessões (Lei 8.987/1995)
Art. 6º, § 1º: Definição de serviço adequado. Art. 25: Responsabilidade da concessionária por todos os prejuízos causados ao poder concedente, aos usuários ou a terceiros.
A tese fixada pelo STJ
Desse modo, o STJ fixou a seguinte tese no julgamento do Tema 1.122:
“As concessionárias de rodovias respondem, independentemente da existência de culpa, pelos danos oriundos de acidentes causados pela presença de animais domésticos nas pistas de rolamento, aplicando-se as regras do Código de Defesa do Consumidor e da Lei das Concessões”.
Análise da decisão
Responsabilidade objetiva
O STJ reafirmou a aplicação da teoria do risco administrativo, prevista no art. 37, § 6º da Constituição Federal, às concessionárias de serviços públicos.
Ou seja, a responsabilidade das concessionárias independe da comprovação de culpa, bastando a demonstração do dano e do nexo causal.
Esta responsabilidade objetiva se justifica pela natureza da atividade exercida pelas concessionárias, que assumem os riscos inerentes à exploração do serviço público. Então, no caso das rodovias, isso inclui o risco de acidentes causados por animais na pista.
Exemplo: se um motorista colide com uma vaca na pista, a concessionária será responsabilizada pelos danos, mesmo que comprove ter realizado rondas regulares e manutenção adequada das cercas.
Aplicação do CDC
A decisão enfatiza a aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor às relações entre concessionárias e usuários de rodovias. Isso decorre diretamente do art. 22 do CDC, que submete as concessionárias às regras de proteção ao consumidor.
Além disso, a aplicação do CDC traz importantes consequências, como a inversão do ônus da prova em favor do consumidor e a responsabilidade solidária entre os fornecedores de serviços.
Exemplo: em caso de acidente com animal na pista, o usuário da rodovia (consumidor) não precisa provar a falha da concessionária. Cabe à empresa demonstrar que o acidente ocorreu por caso fortuito, força maior ou culpa exclusiva da vítima.
Dever de segurança
O STJ ressaltou o dever das concessionárias de garantir a segurança dos usuários, o que inclui a prevenção de acidentes causados por animais nas pistas. Este entendimento baseia-se no conceito de serviço adequado previsto no art. 6º, § 1º da Lei de Concessões.
O dever de segurança impõe às concessionárias a obrigação de adotar medidas preventivas eficazes, como:
- Instalação e manutenção de cercas ao longo da rodovia;
- Realização de rondas periódicas para identificar e remover animais;
- Instalação de sinalização adequada em áreas de maior risco;
- Manutenção de equipes de resgate e remoção de animais.
Exemplo: a concessionária deve manter equipes prontas para atender rapidamente chamados sobre animais na pista, removendo-os antes que causem acidentes.
Princípio da prevenção
A decisão aplica o princípio da prevenção, fundamental no direito ambiental e do consumidor.
Dessa forma, as concessionárias devem adotar medidas preventivas para evitar acidentes, como rondas periódicas, instalação de cercas e manutenção de bases operacionais equipadas para a apreensão de animais.
Este princípio exige uma postura proativa das concessionárias, não bastando reagir aos acidentes após sua ocorrência.
Exemplo: a concessionária deve realizar estudos para identificar os trechos da rodovia com maior incidência de animais e implementar medidas específicas nesses locais, como passagens de fauna ou cercas reforçadas.
Primazia do interesse da vítima
O STJ enfatizou o princípio da primazia do interesse da vítima, derivado do princípio constitucional da solidariedade.
Isso implica que a reparação dos danos deve ocorrer independentemente da identificação do proprietário do animal, priorizando a proteção efetiva do consumidor.
Ademais, este princípio visa garantir que a vítima não fique desamparada em razão de dificuldades práticas na identificação do responsável direto pelo dano.
Nexo causal
A decisão esclarece que o nexo causal entre a omissão da concessionária e o dano sofrido pelo usuário é presumido nos casos de acidentes com animais na pista. Cabe à concessionária, se for o caso, comprovar alguma excludente de responsabilidade.
Assim, esta presunção facilita a busca por reparação por parte das vítimas, transferindo para a concessionária o ônus de provar que não houve falha na prestação do serviço.
Exemplo: em um acidente envolvendo um boi na pista, presume-se que houve falha da concessionária em manter a segurança da via. A empresa precisaria provar, por exemplo, que o animal foi colocado na pista por ação criminosa de terceiros para se eximir da responsabilidade.
Distinção entre animais domésticos e silvestres: não há responsabilização objetiva com animais silvestres
Um ponto crucial da decisão do STJ é a distinção feita entre acidentes causados por animais domésticos e silvestres.
A responsabilização objetiva das concessionárias aplica-se apenas aos casos envolvendo animais domésticos.
Animais domésticos são aqueles criados e mantidos em cativeiro pelo ser humano, para fins econômicos, de companhia ou outros. Exemplos incluem:
- Bovinos (vacas, bois);
- Equinos (cavalos, burros);
- Ovinos (ovelhas);
- Caprinos (cabras);
- Caninos (cães).
Por outro lado, animais silvestres são aqueles que vivem naturalmente em liberdade, sem depender diretamente do ser humano. Exemplos incluem:
- Capivaras;
- Onças;
- Antas;
- Tamanduás;
- Veados.
A justificativa para esta distinção reside no fato de que é mais factível para as concessionárias prevenir e controlar o acesso de animais domésticos às rodovias, através de cercas e fiscalização das propriedades lindeiras.
Já o controle de animais silvestres, todavia, é mais complexo e envolve questões ambientais mais amplas.
Exemplo de aplicação da distinção:
Se um motorista colide com uma vaca na pista, a concessionária será responsabilizada objetivamente pelos danos.
Se o mesmo motorista colide com uma capivara, a responsabilização da concessionária não será automática, dependendo da análise de outros fatores, como a previsibilidade do evento e as medidas preventivas adotadas em áreas conhecidas pela presença desses animais.
Nesse sentido, tal distinção busca equilibrar a proteção dos usuários das rodovias com as limitações práticas enfrentadas pelas concessionárias no controle da fauna silvestre.
Implicações práticas
- Aumento da responsabilidade das concessionárias, que deverão intensificar medidas preventivas.
- Provável incremento nos custos operacionais das concessionárias para adequação às exigências de segurança.
- Maior facilidade para os usuários obterem reparação de danos em casos de acidentes com animais.
- Possível aumento no número de ações judiciais contra concessionárias.
Como o tema já caiu em concursos
TJ-PR - 2019 - TJ-PR - Região Metropolitana de Curitiba - Juiz Leigo A responsabilidade das concessionárias de pedágio é objetiva, mesmo quando fundada em ato omissivo, razão pela qual os acidentes provocados por obstáculos ou animais na pista de rolagem acarretam o dever de indenizar os danos (morais e materiais) por parte da concessionária. (Certo)
Conclusão
Por fim, a decisão do STJ no Tema 1.122 representa um marco significativo na proteção dos direitos dos usuários de rodovias concedidas.
Ao estabelecer a responsabilidade objetiva das concessionárias e reafirmar a aplicabilidade do CDC, o STJ fortalece a posição dos consumidores e impõe um alto padrão de diligência às empresas concessionárias.
Por outro lado, é importante fazer a distinção de animais domésticos e animais silvestres. Ademais, um detalhe importante: cabe à concessionária indenizar o usuário pelos danos sofridos e, se lhe aprouver, exercer eventual direito de regresso, oportunamente, contra o dono do animal envolvido no acidente.
Esta interpretação alinha-se com os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da proteção ao consumidor, bem como com a moderna teoria da responsabilidade civil, que prioriza a reparação efetiva dos danos.
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