STJ autoriza o registro de duas mães em certidão de nascimento de criança gerada por inseminação caseira no REsp 2137415 – Análise Jurídica
Entenda o Caso – inseminação caseira
No dia 16/10/2024, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgou um caso que impactou o direito de família no Brasil. Isto porque, o REsp nº 2.137.415 – SP, relatado pela Ministra Nancy Andrighi, tratava da situação de Sheila Donio e Simone Mello, um casal em união estável desde 2018, formalizada por escritura pública.
Nessa linha, o casal buscava o reconhecimento legal da dupla maternidade de sua filha, Júlia, nascida em 25 de julho de 2022. Júlia foi concebida através de inseminação artificial caseira, utilizando material genético de um doador anônimo.
Sheila Donio foi a mãe gestante (registrada), enquanto Simone Mello, embora não tivesse vínculo biológico com a criança, participou ativamente do planejamento familiar e desejava ser reconhecida legalmente como mãe.
Nesse sentido, o pedido de reconhecimento da dupla maternidade (duas mães na certidão) foi negado nas instâncias inferiores por fundamentação de não existir regulamentação no direito, levando o casal a recorrer ao STJ.
Assim, o STJ respondeu a alguns questionamentos abaixo:
- Como aplicar o artigo 1.597, V do Código Civil, que trata da presunção de filiação em casos de inseminação artificial heteróloga, a um casal homoafetivo?
Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.
- Qual o status legal da inseminação artificial caseira no ordenamento jurídico brasileiro?
- De que forma o princípio do melhor interesse da criança se aplica em casos de famílias formadas por métodos não convencionais de concepção?
Vejamos, portanto, como a Ministra Nancy Andrighi abordou estas questões em seu voto.
Aplicação analógica do art. 1.597, V do Código Civil
Em breve síntese, a Ministra Nancy Andrighi, em seu voto, recorreu a uma interpretação analógica e extensiva do art. 1.597, V do Código Civil, dispositivo que trata da presunção de filiação em casos de inseminação artificial heteróloga.
Nessa linha, essa abordagem demonstra a flexibilidade necessária do Judiciário frente às novas configurações familiares, algo cada vez mais comum em uma sociedade em constante evolução.
Para fundamentar sua decisão, a ministra estabeleceu três requisitos essenciais, adaptando o texto legal à realidade do caso em questão:
- Concepção na constância do casamento ou união estável;
- Utilização de técnica de inseminação artificial heteróloga;
- Prévia autorização do cônjuge ou companheiro(a).
Perceba, é importante notar que essa interpretação vai além da literalidade do texto legal.
Isto porque, o artigo originalmente faz menção a “casamento” e “marido”, termos que, se interpretados restritivamente, excluiriam não apenas casais homoafetivos, mas também aqueles em união estável.
A ministra, contudo, optou por uma leitura mais abrangente, alinhada com a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI 4277 e ADPF 132, que reconheceu a união homoafetiva como entidade familiar.
Ou seja, essa abordagem reflete uma tendência crescente no direito de família brasileiro: a de priorizar a realidade fática e afetiva das relações familiares sobre formalidades legais que possam ser excludentes.
Dessa forma, ao fazê-lo, a ministra não apenas resolveu o caso concreto, mas também estabeleceu um precedente importante para casos futuros envolvendo famílias não-tradicionais.
Ademais, é crucial observar que essa interpretação analógica não se limita apenas à extensão do conceito de “casamento” para incluir uniões estáveis. Pois, ela também abrange a própria noção de filiação, tradicionalmente vinculada à ideia de paternidade.
Assim, ao aplicar o dispositivo a um caso de dupla maternidade, a decisão reconhece que a presunção de filiação não está atrelada ao gênero dos pais, mas sim ao vínculo afetivo e ao projeto parental conjunto.
Reconhecimento da inseminação caseira
Talvez, um dos aspectos mais inovadores e potencialmente controversos da decisão foi o reconhecimento da validade jurídica da inseminação artificial caseira.
Nessa linha, esse ponto merece uma análise mais detalhada, dada sua relevância e possíveis implicações futuras.
Veja, a ministra Nancy Andrighi reconheceu em seu voto que, embora o acompanhamento médico seja altamente recomendável em procedimentos de reprodução assistida, não existe no ordenamento jurídico brasileiro uma proibição expressa à prática da inseminação caseira.
Logo, esse silêncio legislativo abriu espaço para uma interpretação judicial que privilegiasse o direito ao planejamento familiar e à constituição de família.
Isto é, do ponto de vista jurídico, ao se validar juridicamente a inseminação caseira, o STJ efetivamente reconheceu que o Estado não pode impor “barreiras excessivas ao exercício do direito constitucional ao planejamento familiar”.
Obviamente, contudo, é importante ressaltar que esse reconhecimento não equivale a uma recomendação ou incentivo à prática (pelo contrário).
Inclusive, a ministra foi cuidadosa ao enfatizar que o acompanhamento médico é preferível, mas reconheceu que os altos custos dos procedimentos convencionais podem torná-los inacessíveis para muitos casais.
Nesse sentido, a decisão pode ser vista como uma forma de equilibrar o ideal (procedimentos médicos supervisionados) com a realidade socioeconômica de muitos brasileiros.
Princípios norteadores
A decisão da Ministra Nancy Andrighi foi fortemente ancorada em dois princípios constitucionais fundamentais: o livre planejamento familiar e o melhor interesse da criança.
- O princípio do livre planejamento familiar, consagrado no art. 226, §7º da Constituição Federal, foi invocado pela ministra como um pilar central de sua decisão.
Isto é, há um reconhecimento da autonomia dos indivíduos e casais para decidir sobre a formação de suas famílias, impedindo, de certo modo, a intervenção estatal na esfera da vida privada. - Paralelamente, o princípio do melhor interesse da criança, derivado do art. 227 da Constituição Federal e do Estatuto da Criança e do Adolescente, foi utilizado para justificar o reconhecimento da dupla maternidade.
Assim, a ministra argumentou que garantir à criança dois vínculos maternos legalmente reconhecidos é essencial para assegurar seus direitos fundamentais, incluindo filiação, herança e convivência familiar.
Dispensa de documentação médica
Ademais, a decisão do STJ acabou por dispensar a necessidade de apresentação do documento exigido pelo art. 513, II, do Provimento 149/2023 do CNJ (declaração do diretor técnico de clínica de reprodução assistida).
Do ponto de vista jurídico, a dispensa dessa documentação pode ser vista como uma aplicação prática do princípio da proporcionalidade.
Nessa linha, a ministra Nancy Andrighi, ao tomar essa decisão, efetivamente ponderou entre o interesse público de regulamentar e documentar procedimentos de reprodução assistida e o direito fundamental das partes envolvidas de terem sua situação familiar reconhecida.
No caso em questão, exigir um documento impossível de ser obtido (já que o procedimento foi realizado de forma caseira) equivaleria a negar o reconhecimento legal da família constituída.
Conclusão – inseminação caseira
Sem sombra de dúvidas, esse é um tema excelente, em especial para provas discursivas de Magistratura, Cartórios, Ministério Público e Defensorias. Olhe, eu vejo isso em provas, viu?
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