Proibição de animais em testes de cosméticos

Proibição de animais em testes de cosméticos

* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.

Projeto aprovado

A Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei que proíbe o uso de animais vertebrados vivos em testes de ingredientes ou produtos de higiene pessoal, cosméticos e perfumes, inclusive para verificar sua periculosidade, eficácia ou segurança.

Testes

Trata-se do PL 3.062/22, de autoria do ex-deputado Ricardo Izar. O texto segue para sanção presidencial.

O relator da matéria, deputado Ruy Carneiro, comemorou a iniciativa. Para ele, manter a experimentação animal como prática dominante “representaria não apenas uma falha ética, mas um retrocesso científico, em descompasso com os avanços da bioética e com os compromissos assumidos na promoção do bem-estar animal… No Brasil, isso é uma página virada. Usar animais em testes da indústria nunca mais”.

A deputada Duda Salabert descreveu, de forma contundente, algumas das ações da indústria de cosméticos contra animais:

“A indústria, antes de lançar uma nova linha de xampu, pega coelhos, amarra-os e goteja xampu em seus olhos até eles ficarem cegos”.

O PL altera a Lei 11.794/08, definindo de forma extensa os produtos de higiene pessoal, cosméticos e perfumes, classificados como de uso externo ou nas mucosas da cavidade oral, seja com finalidade de limpeza ou alteração de aparência, para perfumar ou proteger pele, cabelos, unhas, lábios e outras partes do corpo.

A partir da nova lei, dados obtidos com testes em animais não poderão ser utilizados para autorizar a comercialização de produtos de higiene pessoal, cosméticos ou perfumes ou seus ingredientes.

A exceção será para os casos em que forem obtidos para cumprir regulamentação não cosmética nacional ou estrangeira. Para fazer uso dessa exceção, as empresas interessadas deverão fornecer, quando solicitado pelas autoridades competentes, evidências documentais do propósito não cosmético do teste.

Nesse sentido, o fabricante que tiver permissão para utilizar novos dados de testes com animais não poderá incluir no rótulo ou invólucro do produto frases como “não testado em animais”, “livre de crueldade” ou outras expressões similares.

Será permitida a venda desses produtos quando o teste envolvendo animais tenha ocorrido antes da data da entrada em vigor da mudança.

Excepcionalidades

O projeto permite, ainda, que as proibições de uso sejam afastadas pelo Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (Concea) em circunstâncias excepcionais nas quais surjam graves preocupações quanto à segurança de um ingrediente cosmético, e desde que certas condições sejam simultaneamente cumpridas:

  • Se for ingrediente amplamente utilizado no mercado e que não possa ser substituído por outro capaz de desempenhar função semelhante;
  • Quando se detectar problema específico de saúde humana relacionado ao ingrediente; e
  • Não houver método alternativo hábil para satisfazer as exigências de testagem.

Segundo o texto, no prazo de dois anos a partir da publicação da futura lei, as autoridades sanitárias competentes deverão adotar medidas para implementar as novas regras, especialmente para:

  • Assegurar o rápido reconhecimento dos métodos alternativos e adotar um plano estratégico para garantir a disseminação desses métodos no território nacional;
  • Estabelecer medidas de fiscalização da utilização de dados obtidos de testes em animais realizados após a entrada em vigor da lei para avaliar a segurança e para o registro de cosméticos;
  • Publicar relatórios bienais detalhando o número de vezes que evidências documentais foram solicitadas às empresas e o número de vezes que as empresas usaram esses dados para cumprir regulamentação de produto considerado não cosmético;
  • Garantir que as expressões “não testado em animais”, “livre de crueldade” ou similares sejam regulamentadas e respeitem as novas regras.

Para obter o registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária, os cosméticos, os produtos de higiene pessoal, os perfumes e demais de finalidade semelhante deverão cumprir as regras sobre testagem em animais.

Análise jurídica

Proteção aos animais

A Constituição Federal, em seu artigo 225, §1º, VII, impõe ao poder público o dever de proteger os animais contra atos de maus-tratos. Vejamos:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:

...

VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.

Com base nessa norma protetiva (art. 225, §1º, VII, CF/88) o STF proibiu manifestações culturais que imponham sofrimento e maus-tratos aos animais. Exemplos disso são a briga de galo, a farra do boi e a vaquejada (ADI  1856, ADI 2514 e ADI 4983).

Para garantir essa proteção aos nossos bichinhos o legislador tipifica uma série de condutas cruéis como crimes, a exemplo do crime do artigo 32 (maus-tratos).

Compõem a nossa fauna:

  • Animais silvestres: são aqueles pertencentes às espécies nativas, migratórias e quaisquer outras, aquáticas ou terrestres, que tenham a sua vida ou parte dela ocorrendo naturalmente dentro dos limites do Território Brasileiro e suas águas jurisdicionais;
  • Animais exóticos: são aqueles cuja distribuição geográfica não inclui o Território Brasileiro. As espécies ou subespécies introduzidas pelo homem, inclusive domésticas, em estado selvagem, também são consideradas exóticas. Outras espécies consideradas exóticas são aquelas que tenham sido introduzidas fora das fronteiras brasileiras e suas águas jurisdicionais e que tenham entrado espontaneamente em Território Brasileiro; e
  • Animais domésticos: são aqueles animais que através de processos tradicionais e sistematizados de manejo e melhoramento zootécnico tornaram-se domésticas, possuindo características biológicas e comportamentais em estreita dependência do homem, podendo inclusive apresentar aparência diferente da espécie silvestre que os originou.

Natureza jurídica dos pets

Corrente clássica

Nas últimas décadas havia prevalecido a corrente clássica de que os animais de estimação possuíam natureza jurídica de coisa, sendo um bem móvel (semovente) e, portanto, seriam simplesmente objetos de direitos, e não sujeitos de direito.

Neste sentido, os bichos seriam apenas um item do patrimônio de seu titular. Não teriam direitos, de forma que suas garantias estariam relacionadas aos direitos de seus donos, e as discussões sobre eles estariam mais próximas de institutos como a posse e a propriedade.

Teria aplicação, portanto, do artigo 82 do código civil:

Art. 82. São móveis os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico-social.

Ocorre que a realidade é extremamente mutável, e o Direito precisa se adaptar para acompanhar a evolução social.

Presenciamos, nos últimos anos, novos fenômenos relacionados à relação entre as pessoas, chamados de “pais de pets”, e seus bichinhos de estimação: criação de planos de saúde para pets, buffets especializados em organizar festas para os bichinhos, creches e hotéis para cães e gatos, surgimento de profissões voltadas a esses animais e muito mais.

Diante dessa inovação fática os operadores do direito tiveram que se adaptar na interpretação e aplicação do ordenamento jurídico, pois a definição como simples coisas não resolve mais as controvérsias sobre os pets.

Correntes moderna e intermediária

Existe uma corrente moderna, na qual os animais são considerados sujeitos de direito. Algumas decisões judiciais já adotam essa visão, apesar de não serem majoritárias.

Mas o Superior Tribunal de Justiça tem caminhado para adotar uma corrente intermediária, pela qual os animais de estimação seriam um “terceiro gênero“. Para o ministro Luís Felipe Salomão, não se trata de humanizar o animal, tampouco de equiparar a posse dos bichos com a guarda de filhos, mas de considerar que o direito de propriedade sobre eles não pode ser exercido de maneira idêntica àquele relativo às coisas inanimadas ou que não são dotadas de sensibilidade. Portanto, os animais seriam seres dotados de sensibilidade. Conferir o REsp 1.944.228.

“2. A solução de questões que envolvem a ruptura da entidade familiar e o seu animal de estimação não pode, de modo algum, desconsiderar o ordenamento jurídico posto – o qual, sem prejuízo de vindouro e oportuno aperfeiçoamento legislativo, não apresenta lacuna e dá respostas aceitáveis a tais demandas –, devendo, todavia, o julgador, ao aplicá-lo, tomar como indispensável balizamento o aspecto afetivo que envolve a relação das pessoas com o seu animal de estimação, bem como a proteção à incolumidade física e à segurança do pet, concebido como ser dotado de sensibilidade e protegido de qualquer forma de crueldade.

2.1 A relação entre o dono e o seu animal de estimação encontra-se inserida no direito de propriedade e no direito das coisas, com o correspondente reflexo nas normas que definem o regime de bens (no caso, o da união estável). A aplicação de tais regramentos, contudo, submete-se a um filtro de compatibilidade de seus termos com a natureza particular dos animais de estimação, seres que são dotados de sensibilidade, com ênfase na proteção do afeto humano para com os animais.”

Por essa visão, adotada pelo STJ, os animais são reconhecidos como seres sencientes. Mas o que são esses seres sencientes? Simples:

Seres sencientes são seres que possuem a capacidade de sentir e perceber o mundo ao seu redor. Isso inclui a habilidade de experimentar emoções como dor, prazer, alegria e sofrimento.

O Ministro do Supremo Tribunal Federal, Flávio Dino, em decisão cautelar na ADI 7.704, arrematou:

Ao se preocupar com outras formas de vida não humanas, a Constituição incorporou uma visão mitigada do antropocentrismo, de modo a reconhecer que seres não humanos podem ter valor e dignidade[1]. À luz do texto constitucional, a dignidade não é um atributo exclusivo do ser humano.

Portanto, será cada vez mais comum nos depararmos com questões envolvendo visita e guarda de pets, busca e apreensão de animais, proibição ou não de castração dos bichinhos e até mesmo animais sendo autores de ações judiciais.

Em resumo, quanto a visão acerca da natureza jurídica dos pets, temos:

1) A corrente clássica ou tradicional, que entende que o animal é um bem semovente, com fundamento antes mesmo do Código Civil;

2) A corrente moderna, que entende que se deve considerar o animal como um ser sujeito de direito;

3) A corrente intermediária, adotada pelo STJ, pela qual o animal de estimação seria um “terceiro gênero”, dotado de sensibilidade, ou seja, um ser senciente.

Conclusão

O tema vem sendo cobrado constantemente em provas de direito ambiental, em especial quanto à proteção da fauna, e em relação à competência legislativa, portanto, muita atenção.

A novidade legislativa é muito bem-vinda, já que concretiza os princípios do desenvolvimento sustentável e da proteção integral do meio ambiente. Além disso, reafirma-se o compromisso do Brasil em proteger seus animais.


[1] DIAS, Jefferson Aparecido; NELSON, Rocco Antônio Rangel Rosso. Do Direito dos animais não humanos – em busca de uma personalidade esquecida, Revista Brasileira de Direito Animal. UFBA. P. 35.


Quer saber quais serão os próximos concursos?

Confira nossos artigos para Carreiras Jurídicas!
0 Shares:
Você pode gostar também