* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.
Entenda o que aconteceu
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A prefeita do Município de Zé Doca, no Maranhão, Flavinha Cunha (PL), anunciou uma mudança bem polêmica: trocou o tradicional carnaval por um festival gospel, intitulado de “1º Zé Doca com Cristo de 2025”.
“Vamos fazer uma inovação para agradar toda a população. Está chegando o período do carnaval e o curioso é que Zé Doca vai promover o primeiro festival gospel de toda região. […] Serão quatro das de muito louvor e adoração a Deus”, afirmou a prefeita.
Para não eliminar por completo o carnaval tradicional, a prefeita antecipou a folia para os dias 21 a 23 de fevereiro, a um custo total de R$ 850 mil.
No período do carnaval, dias 01 a 04 de março, a cidade contará com um grande festival gospel, com várias participações já confirmadas, e com cachês que variam entre R$20.000,00 e R$210.000,00.
O custo do “Carnaval gospel” ficou em R$ 475 mil.
De acordo com informações da Secretaria Municipal de Cultura, publicadas no Diário Oficial do Município, temos as seguintes atrações:
FESTIVAL GOSPEL
ARTISTA | CACHÊ |
Maria Marçal | R$ 210 mil |
Gerson Rufino | R$ 90 mil |
Banda Morada | R$ 170 mil |
Grupo infantil Palavrinhas | R$75 mil |
Kleber Nascimento | R$20 mil |
PRÉ-CARNAVAL
ARTISTA | CACHÊ |
Solange Almeida | R$ 250 mil |
Iguinho e Lulinha | R$ 300 mil |
Chiclete com Banana | R$ 300 mil |
Tanto os artistas do pré-carnaval quanto do festival gospel foram contratados com dispensa de licitação.
Segundo dados do IBGE, o Município de Zé Doca tem uma população em torno de 41 mil habitantes, e uma renda per capta de R$10.867,33 (2021).
Além disso, é importante pontuar que a prefeita fez publicação, nas redes sociais, divulgando tanto o pré-carnaval quanto o festival gospel:
“Adora Zé Doca, um projeto que nasceu com esse propósito: agradecer a Deus por todas as conquistas”.
“O melhor carnaval fora de época da região”.
Análise jurídica
Um cidadão não gostou dessa mudança, e ajuizou ação popular em face do Município, da prefeita e dos artistas gospel contratados.
O autor da ação classificou o evento como “segmentado e preconceituoso”, e acusou a prefeita de ter desrespeitado a Constituição Federal, ao criar distinções ilegítimas e ferir a laicidade do estado.
CF Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público; ... III - criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si.
O que é uma ação popular?
Primeiramente, vamos entender um pouco melhor a figura da ação popular.
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A ação popular está prevista no artigo 5º, LXXIII da Constituição Federal, e está regulada na Lei nº 4.717/65.
CF/88 “Art. 5º (...) LXXIII - qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência;”
Podemos então apontar como principais características da ação popular:
- Remédio constitucional;
- Direito decorrente da cidadania;
- Ação coletiva;
- Isenta de custas e ônus da sucumbência;
- Pode ter fins preventivos ou repressivos.
Legitimidade ativa: Pode ser ajuizada por qualquer cidadão, ou seja, qualquer brasileiro, nato ou naturalizado, no gozo dos seus direitos políticos.
Legitimidade passiva: Podemos ter, como réus de uma ação popular:
- Pessoas jurídicas: as pessoas jurídicas de direito público ou privado que participaram do ato;
- Autoridades: os funcionários ou administradores que autorizaram, aprovaram, ratificaram ou praticaram o ato, ou que, por omissão, deram oportunidade à lesão;
- Beneficiários: aqueles que levaram proveito com a prática do ato lesivo.
Súmula 365 do STF: “Pessoa jurídica não tem legitimidade para propor ação popular”.
O Supremo Tribunal Federal (STF) tem jurisprudência consolidada no sentido de não permitir o manejo da ação popular para declarar a inconstitucionalidade de lei em tese, pois ela não é sucedâneo de Ação Direta de Inconstitucionalidade (aplicação extensiva da súmula 266 do STF).
Assim, a ação popular é um instrumento jurídico para defender direitos transindividuais, e não para controlar a constitucionalidade de atos legais abstratos.
“1. A ação popular é uma ação constitucional posta à disposição de qualquer cidadão que visa a invalidar ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural (art. 5º, LXXIII, da CF, e Lei nº 4.717/65). 2. A ação popular não é meio adequado para pleitear a declaração de inconstitucionalidade de lei em tese, não podendo servir como sucedâneo de ações típicas do controle concentrado de constitucionalidade de normas, pois ampliaria, sem a devida autorização da Constituição Federal, o rol de legitimados inserto no seu art. 103. 2.1. Além disso, a lei em tese, como norma abstrata de conduta, não lesa direito individual, motivo pelo qual não é passível de impugnação por ação popular, faltando ao requerente interesse de agir." (TJDFT, Acórdão 1287214, 07126818820208070001, Relator: ALFEU MACHADO, Sexta Turma Cível, data de julgamento: 23/9/2020, publicado no DJE: 7/10/2020.
Ademais, as punições derivadas da ação popular podem ser:
- Nulidade do ato administrativo;
- Ressarcimento ao erário;
- Pagamento das custas processuais;
- Obrigação de não fazer.
Já quanto ao mérito da alegação da ação popular ajuizada contra a prefeita de Zé Doca, temos que a Constituição, de fato, indica a República Federativa do Brasil como um país laico, ou seja, existe uma separação entre Estado e Religião, permitindo uma ampla liberdade religiosa.
Laicidade
A laicidade ganha força a partir do Iluminismo, que reforçou a necessidade da separação entre o Poder Público e a Igreja. Essa mistura entre fé e estado foi muito comum no absolutismo, e não trouxe bons frutos para a humanidade.
Benefícios trazidos pela laicidade:
- Assegura liberdade religiosa;
- Assegura tratamento igualitário entre as pessoas;
- Assegura autonomia individual;
- Assegura a pluralidade de pensamento e crença.
Mas a laicidade não significa que o Estado não possa dialogar ou firmar parcerias com a igreja. O que é vedado pela Constituição é a adoção de uma religião oficial, o favorecimento a uma igreja específica, a dependência e a vinculação a uma religião.
Aliás, é importante não confundir laicidade com laicismo. Confira a diferença:
LAICIDADE | LAICISMO |
Não há uma relação de dependência ou favorecimento entre o Estado e uma religião específica, mas há garantia à liberdade religiosa, e há possibilidade de fomenta às diversas religiões. | Pensamento ideológico em que a religião é vista de forma negativa, pejorativa, devendo ser totalmente desconsiderada pelo Estado. É marcado pela intolerância religiosa e por medidas autoritárias. |
A atitude da prefeita de Zé Doca não representa, em um primeiro momento, uma quebra do princípio do estado laico, já que ela garantiu a realização tanto do carnaval quanto do festival gospel (inclusive o custo do carnaval foi maior que do evento religioso).
Entretanto, o feriado do carnaval é, tradicionalmente, voltado para a realização da festa carnavalesca, parecendo inconveniente a antecipação do carnaval em detrimento do festival gospel.
Vamos acompanhar o desenrolar desse imbróglio jurídico.