A prerrogativa de prazo em dobro da Defensoria Pública nos procedimentos do ECA: análise da decisão do STJ e seus impactos para a prática e para concursos jurídicos

A prerrogativa de prazo em dobro da Defensoria Pública nos procedimentos do ECA: análise da decisão do STJ e seus impactos para a prática e para concursos jurídicos

Olá, pessoal! Aqui é o professor Allan Joos e hoje vou comentar a recente decisão da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial nº 2.139.217/PR, que discutiu um tema de suma importância para a doutrina institucional: a Defensoria Pública possui, ou não, a prerrogativa de prazo em dobro nos procedimentos regulados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)?

No mencionado julgado, o STJ, reformou acórdão do Tribunal de Justiça do Paraná e afirmou de forma categórica que: a prerrogativa de prazo em dobro para a Defensoria Pública não apenas subsiste como se integra harmonicamente ao microssistema da infância e juventude.

O fato concreto envolveu a aplicação medida protetiva e a discussão sobre a tempestividade de um agravo de instrumento interposto pela Defensoria Pública, que, por ter utilizado o prazo em dobro, teve o recurso considerado intempestivo pelo Tribunal de Justiça do Estado do Paraná.

A decisão revisitou temas cruciais como isonomia material, estruturação das funções essenciais à Justiça e compatibilidade entre celeridade e contraditório substancial.

O que se verificou, de fato, foi que a decisão dialoga com o princípio da proteção integral, com a própria evolução institucional da Defensoria Pública e com a necessidade de assegurar, simultaneamente, eficiência e profundidade na tutela de direitos infantojuvenis.

Vale destacar, que, hoje, a Defensoria Pública atua muito além do antigo modelo meramente de representação processual dos mais pobres, já que o conceito constitucional de necessitados é, hoje, alargado e abrange o que a doutrina institucional denomina de “vulnerabilidade”, o que compreende também a atuação em prol da infância e da juventude, merecendo obediência às prerrogativas institucionais também no âmbito de ritos especiais, como aquele previsto no ECA.

O pano de fundo legislativo: a Constituição, o CPC e a LC 80/94

Para que se possa compreender a controvérsia, é fundamental retomar o histórico do quadro normativo. A prerrogativa de prazo em dobro atribuída à Defensoria Pública não é um benefício ocasional; ela se insere na lógica constitucional de fortalecimento da instituição e, mais do que uma prerrogativa, é uma garantia aos assistidos da instituição.

A Constituição Federal, especialmente após a EC n. 80/2014, elevou a Defensoria Pública ao patamar de instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, garantindo-lhe autonomia funcional, administrativa e prerrogativas indispensáveis ao cumprimento de sua missão. Além disso, a referida emenda constitucional determinou a universalização da instituição, impondo prazo para que todos os Estados contem com defensores em todas as unidades jurisdicionais, reconhecendo explicitamente a carência estrutural do serviço público de assistência jurídica e a necessidade de ampliação da instituição.

No plano infraconstitucional, a LC 80/94 (Lei Orgânica Nacional da Defensoria Pública), em seu art. 128, I, consagrou expressamente a prerrogativa de prazo em dobro à Defensoria Pública, reproduzida pelo CPC em seu art. 186. Ambos os diplomas partem de uma premissa simples, mas essencial: a Defensoria Pública possui carga de trabalho, limitações humanas e responsabilidades institucionais muito superiores àquelas enfrentadas por outras instituições, especialmente em razão do princípio da indeclinabilidade de suas funções e do acentuado número de vulnerabilizados em nosso país.

Assim, enquanto os Ministérios Públicos e Procuradorias possuem estrutura robusta, equipes multidisciplinares e capilaridade consolidada, defensoras e defensores enfrentam a realidade de atender milhares de assistidos e frequentemente acumulando mais de uma unidade jurisdicional. A prerrogativa processual, portanto, é expressão jurídica de um diagnóstico estrutural e de um reconhecido acúmulo de trabalho.

A reforma de 2017 no ECA e o nascimento da controvérsia

A grande controvérsia surgiu a partir da edição da Lei nº 13.509/2017 que incluiu no art. 152 do ECA o §2º, prevendo que os prazos processuais relativos aos procedimentos da Infância e da Juventude seriam contados em dias corridos e, mais relevante para o tema, veda o prazo em dobro para a Fazenda Pública e para o Ministério Público.

Prazo

A dúvida surgiu, tanto no meio acadêmico, quanto nos Tribunais Superiores, justamente porque o dispositivo não menciona a Defensoria Pública, apesar de citar expressamente a Fazenda Pública. A partir daí questionou-se: o silêncio legislativo deveria ser interpretado como omissão involuntária ou como exclusão deliberada?

Parte da jurisprudência passou a defender que, por “paralelismo entre funções essenciais” ou por “isonomia”, esse silêncio deveria ser suprido, impedindo também a Defensoria de usufruir o prazo em dobro. Foi essa a linha que o TJPR adotou no caso analisado pelo STJ no julgado em comento.

Outra corrente, que agora prevalece, contudo, passou a sustentar que o silêncio legislativo tinha caráter eloquente — e não acidental — uma vez que, na tramitação legislativa, a Defensoria Pública chegou a ser mencionada como destinatária da vedação, mas foi deliberadamente excluída do texto final. A decisão do STJ confirma expressamente essa segunda leitura.

O caso julgado: entre celeridade e contraditório

No caso concreto, tratava-se de ação de medida protetiva em que se discutia a suspensão da convivência familiar entre uma criança e seus avós maternos. A Defensoria Pública do Paraná interpôs agravo de instrumento contra decisão que mantinha a suspensão, invocando a prerrogativa de prazo em dobro.

O Tribunal paranaense não conheceu o agravo por intempestividade, afirmando que permitir prazo em dobro apenas à Defensoria Pública geraria desigualdade entre as instituições estatais e comprometeria a celeridade própria da jurisdição da infância.

Essa visão, no entanto, foi firmemente rejeitada pelo STJ.

A fundamentação do STJ: o silêncio eloquente, a isonomia material e a proteção integral

O silêncio legislativo como escolha consciente

Ao analisar a tramitação legislativa, o ministro relator demonstrou que o projeto original previa vedação expressa do prazo em dobro para MP, Fazenda Pública e Defensoria Pública. No decorrer do debate parlamentar, após audiências e participação de especialistas, o Congresso retirou a Defensoria Pública desse rol. O texto final da Lei 13.509/2017, portanto, afastou a Defensoria Pública da vedação de forma intencional.

O acórdão observa, nesse ponto, que “o silêncio legislativo nem sempre representa omissão involuntária; muitas vezes, revela opção consciente do legislador”. Assim, por não constar na vedação, a Defensoria permanece regida pelas normas gerais do CPC.

A isonomia material: tratar desigualmente os desiguais

A decisão do STJ criticou a leitura meramente formal de isonomia adotada pelo Tribunal de origem. Para a Corte Superior, é inconsistente equiparar instituições que não partem das mesmas condições estruturais. A Defensoria Pública enfrenta sobrecarga desproporcional, e seus usuários vivem grave histórico de vulnerabilização. O tratamento diferente garante, na realidade, verdadeira igualdade material entre os atores do Sistema de Justiça.

O voto resgata precedente clássico do STF (HC 70.514/RS) que já havia reconhecido que o prazo em dobro é instrumento de compensação diante da desigualdade institucional entre Defensoria e Ministério Público no Processo Penal.

Celeridade e contraditório substancial podem e devem coexistir

O ECA, de fato, estabelece a celeridade como eixo central da tutela infantojuvenil. Todavia, o STJ destacou que conceder dez dias adicionais à Defensoria Pública não compromete a prioridade absoluta das crianças e adolescentes.

A firmeza do raciocínio está na articulação entre proteção integral e contraditório substantivo: a defesa qualificada não atrapalha a celeridade; ao contrário, contribui para decisões mais justas, estáveis e adequadas ao melhor interesse da criança.

Do ponto de vista doutrinário, o acórdão reforça a ideia de microssistemas processuais que dialogam entre si, afirmando que o ECA não opera em enclaves isolados. Isto é, deve-se interpretar o Estatuto a partir da Constituição, da proteção integral e das regras gerais do CPC quando compatíveis.

Nos concursos de carreiras jurídicas, o precedente é bastante importante: apresenta tema atual, com forte carga principiológica, histórico legislativo rico, divergência jurisprudencial anterior e impacto direto na atuação de instituições essenciais, em especial Defensoria Pública, magistratura e Ministério Público. Trata-se, sem dúvida, de assunto apto a aparecer em provas objetivas, discursivas, peças práticas e até em arguições orais, sobretudo nas provas dos concursos das Defensorias Públicas.

A decisão da Quarta Turma do STJ esclarece, com densidade argumentativa, que a prerrogativa de prazo em dobro da Defensoria Pública não apenas subsiste nos procedimentos do ECA, como é condição fundamental para a efetivação do contraditório, da ampla defesa e da própria proteção integral da criança e do adolescente.

O precedente analisa o tema em perspectiva histórica, legislativa e constitucional, reafirmando que a celeridade processual não pode se transformar em obstáculo para uma defesa adequada, especialmente quando exercida por instituição estruturalmente assimétrica em relação a outras funções essenciais à Justiça.

A compreensão desse julgado é indispensável tanto para quem atua no sistema de justiça quanto para quem se prepara para concursos jurídicos de alto nível — e representa, sobretudo, mais um capítulo na afirmação da Defensoria Pública como pilar democrático de acesso à justiça.


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