Caros alunos, hoje vamos entender uma decisão recente do STJ que traz implicações significativas para o direito à saúde, especialmente no que tange aos pacientes com Síndrome de Down.
Assim, foi o destaque no info 826 do STJ de uma decisão de 26/08/2024 pela 3ª Turma:
É interessante porque esta decisão não apenas reafirma a obrigatoriedade de cobertura ilimitada de tratamentos para esses pacientes, mas também nos oferece uma oportunidade de aprender os interesses dos mais vulneráveis.
Isto porque, ela também se baseia numa decisão anterior da Min. Nancy em que vamos usá-la para comentar, já que é uma decisão pública, diferentemente da divulgada no informativo 826 do STJ:
PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. PLANO DE SAÚDE. BENEFICIÁRIO PORTADOR DE SÍNDROME DE DOWN. PRESCRIÇÃO DE TRATAMENTO COM TERAPIAS MULTIDISCIPLINARES. COBERTURA OBRIGATÓRIA. 1. Ação de obrigação de fazer. 2. Embora fixando a tese quanto à taxatividade, em regra, do rol de procedimentos e eventos em saúde da ANS, a Segunda Seção negou provimento ao EREsp 1.889.704/SP da operadora do plano de saúde, para manter acórdão da Terceira Turma que concluiu ser abusiva a recusa de cobertura de sessões de terapias especializadas prescritas para o tratamento de transtorno do espectro autista (TEA). 3. Ao julgamento realizado pela Segunda Seção, sobrevieram diversas manifestações da ANS, no sentido de reafirmar a importância das terapias multidisciplinares para os portadores de transtornos globais do desenvolvimento, e de favorecer, por conseguinte, o seu tratamento integral e ilimitado. 4. Segundo a diretriz da ANS, o fato de a síndrome de Down não estar enquadrada na CID F84 (transtornos globais do desenvolvimento) não afasta a obrigação de a operadora cobrir o tratamento multidisciplinar e ilimitado prescrito ao beneficiário com essa condição que apresente quaisquer dos transtornos globais do desenvolvimento. 5. A Corte Especial do STJ orienta que o julgador se vincula apenas aos precedentes existentes no momento em que presta sua jurisdição. 6. Agravo interno desprovido. (AgInt no AREsp n. 2.543.020/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 24/6/2024, DJe de 26/6/2024.)
O caso – Síndrome de Down
O caso em questão envolve um paciente menor de idade, portador de Síndrome de Down, que moveu uma ação contra uma operadora de plano de saúde buscando cobertura ilimitada para terapias multidisciplinares prescritas por seu médico.
- Autor: Diagnosticado com síndrome de Down e com transtorno do déficit de atenção e de hiperatividade TDAH.
- Precrição de tratamento: Sessões de terapia ocupacional, psicoterapia, fonoaudiologia e fisioterapia com o uso do método Bobath.
O que o plano de saúde disse?
Negativa de cobertura sob o fundamento de não haver tipificação no rol de procedimentos e eventos de saúde da ANS.
Veja, o cerne da questão reside na interpretação do alcance das obrigações das operadoras de planos de saúde frente às necessidades específicas de pacientes com condições crônicas e complexas.
Ora, mas o rol dos exames e tratamentos da ANS é exemplificativo ou taxativo?
Em junho de 2022, o STJ decidiu que o rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar é, em regra, taxativo (STJ. 2ª Seção EREsp 1886929-SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 08/06/2022).
Ocorre que, depois de uma grande mobilização popular, o Congresso Nacional editou a Lei nº 14.454/2022, que buscou superar o entendimento firmado pelo STJ.
A Lei nº 14.454/2022 alterou o art. 10 da Lei dos Planos de Saúde (Lei nº 9.656/98), incluindo o § 12, que prevê o caráter exemplificativo do rol da ANS:
Art. 10 (...) § 12. O rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar, atualizado pela ANS a cada nova incorporação, constitui a referência básica para os planos privados de assistência à saúde contratados a partir de 1º de janeiro de 1999 e para os contratos adaptados a esta Lei e fixa as diretrizes de atenção à saúde.
Contudo, vale ressaltar que, para o plano de saúde ser compelido a custear, é necessário que esteja comprovada a eficácia do tratamento ou procedimento, nos termos do § 13, também inserido:
§ 13. Em caso de tratamento ou procedimento prescrito por médico ou odontólogo assistente que não estejam previstos no rol referido no § 12 deste artigo, a cobertura deverá ser autorizada pela operadora de planos de assistência à saúde, desde que: I - exista comprovação da eficácia, à luz das ciências da saúde, baseada em evidências científicas e plano terapêutico; ou II - existam recomendações pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), ou exista recomendação de, no mínimo, 1 (um) órgão de avaliação de tecnologias em saúde que tenha renome internacional, desde que sejam aprovadas também para seus nacionais.
Assim, ao analisar este caso, o STJ foi categórico em sua decisão, afirmando que “o plano de saúde é obrigado a cobrir, de forma ilimitada, as terapias prescritas ao paciente com Síndrome de Down”.
Veja, a Lei 9.656/98, que regulamenta os planos de saúde, estabelece em seu artigo 10 que:
"É instituído o plano-referência de assistência à saúde, com cobertura assistencial médico-ambulatorial e hospitalar, compreendendo partos e tratamentos, realizados exclusivamente no Brasil, com padrão de enfermaria, centro de terapia intensiva, ou similar, quando necessária a internação hospitalar, das doenças listadas na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, da Organização Mundial de Saúde..."
Este artigo, à primeira vista, poderia sugerir uma limitação às coberturas obrigatórias.
No entanto, o STJ não se limitou a uma interpretação restritiva desta lei.
Pelo contrário, buscou uma interpretação sistemática, considerando também o Código de Defesa do Consumidor e a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência.
Dessa forma, o Código de Defesa do Consumidor, Lei 8.078/90, traz em seu artigo 47 o seguinte:
"As cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor."
Este princípio, quando aplicado aos contratos de planos de saúde, sugere que, em caso de dúvida, a interpretação deve favorecer a cobertura mais ampla para o beneficiário.
Interpretação com Base na Lei Brasileira de Inclusão – síndrome de down
Ademais, a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015) reforça a necessidade de proteção integral à saúde das pessoas com deficiência. Dessa forma, o artigo 18 desta lei é particularmente relevante:
"É assegurada atenção integral à saúde da pessoa com deficiência em todos os níveis de complexidade, por intermédio do Sistema Único de Saúde (SUS), garantido acesso universal e igualitário."
Embora este artigo se refira especificamente ao SUS, o STJ parece ter estendido esse princípio de atenção integral também aos planos de saúde privados, reconhecendo a importância fundamental do direito à saúde.
Resolução Normativa ANS 539/2022
Um ponto crucial da decisão do STJ foi a consideração das manifestações recentes da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). O STJ fez referência específica à Resolução Normativa ANS 539/2022, que tornou obrigatória a cobertura de qualquer método ou técnica indicado pelo médico assistente para o tratamento de transtornos globais do desenvolvimento.
De forma interessante, o STJ foi além, afirmando que:
“o fato de a síndrome de Down não estar enquadrada na CID F84 (transtornos globais do desenvolvimento) não afasta a obrigação de a operadora cobrir o tratamento multidisciplinar e ilimitado prescrito ao beneficiário com essa condição”.
Por fim, um destaque no voto da Min. Nancy:
Em outras palavras, compete ao médico do assistente dizer qual o melhor tratamento (caso haja eficácia comprovada) para sanear a saúde do autor, e não o plano de saúde ditar o que pode ou não ser feito a título de recuperação plena da saúde.
Além disso, há outro julgado interessante do STJ recente:
A natureza taxativa ou exemplificativa do rol da ANS não importa para fins de análise do dever de cobertura de medicamentos para o tratamento de câncer. STJ. 4ª Turma. AgInt no REsp 2.017.851-SP, Rel. Min. Marco Buzzi, julgado em 26/2/2024 (Info 808).
Como o tema já caiu em concursos:
CESPE / CEBRASPE – 2021 – MPE-SC – Promotor de Justiça Substituto – Prova 2
Ainda com relação ao CDC e aos direitos do consumidor, julgue o item que se segue.
É lícito aos planos de saúde negar a cobertura de tratamento prescrito por médico para o restabelecimento do usuário, mas não previsto no rol de procedimentos da Agência Nacional de Saúde (ANS).
Gabarito oficial à época: Certo
Comentário: Vejo que a questão seria anulável hoje. Se generalizarmos o plano de saúde até pode negar em circunstâncias excepcionais (ex: ausência de eficácia do tratamento). Mas hoje, não podemos dizer que o simples fato de não estar no rol, seria um motivo da negativa.
CESPE – 2019 – TJ-BA – Juiz de Direito Substituto
A respeito de cláusulas abusivas, prescrição, proteção contratual e relação entre consumidor e planos de saúde, assinale a opção correta, de acordo com o entendimento jurisprudencial do STJ:
a) A operadora de plano de saúde pode estabelecer, no contrato, as doenças que terão cobertura, mas não pode limitar o tipo de tratamento a ser utilizado pelo paciente, exceto se tal tratamento não constar na lista de procedimentos da ANS.(errado)
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