ADI 5911 – Seu corpo mas as regras do Estado? Entenda o que o STF está decidindo sobre a laqueadura/vasectomia

ADI 5911 – Seu corpo mas as regras do Estado? Entenda o que o STF está decidindo sobre a laqueadura/vasectomia

O Supremo Tribunal Federal (STF) enfrenta atualmente um dos debates mais sensíveis em matéria de direitos fundamentais: os limites da intervenção estatal no planejamento familiar.

A controvérsia centra-se especificamente no artigo 10, inciso I, da Lei 9.263/96 (Lei do Planejamento Familiar), que dispõe:

"Art. 10. Somente é permitida a esterilização voluntária nas seguintes situações: I – em homens e mulheres com capacidade civil plena e maiores de vinte e um anos de idade ou, pelo menos, com dois filhos vivos, desde que observado o prazo mínimo de sessenta dias entre a manifestação da vontade e o ato cirúrgico, período no qual será propiciado à pessoa interessada acesso a serviço de regulação da fecundidade, incluindo aconselhamento por equipe multidisciplinar, visando desencorajar a esterilização precoce;"

Em outras palavras, o artigo 10, inciso I, da Lei 9.263/96 estabelece os requisitos cumulativos e alternativos para a realização da esterilização voluntária, podendo ser decomposto em três elementos principais:

Requisitos pessoais (cumulativos):

  • Capacidade civil plena
  • E um dos seguintes requisitos alternativos:
    • Idade mínima de 21 anos
    • OU ter pelo menos dois filhos vivos

Requisito temporal:

  • Prazo mínimo de 60 dias entre:
    • A manifestação da vontade
    • E a realização do ato cirúrgico

Requisito procedimental:

  • Acesso a serviço de regulação da fecundidade
  • Aconselhamento por equipe multidisciplinar
  • Finalidade expressa de desencorajar a esterilização precoce

Assim, por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade 5911, proposta pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), discute-se a constitucionalidade das restrições impostas pela Lei 9.263/96 para a realização de procedimentos de esterilização voluntária.

O cerne da questão reside em determinar: pode o Estado impor requisitos etários superiores à maioridade civil para decisões sobre direitos reprodutivos?
Até que ponto a proteção estatal pode limitar a autonomia individual em escolhas tão íntimas e definitivas?

A jurisprudência sobre “planejamento familiar” até então do STF

A interpretação do conceito de planejamento familiar pelo STF, especialmente na ADI 3510, estabeleceu marcos hermenêuticos fundamentais para a presente análise.

Naquele julgamento, a Suprema Corte definiu o planejamento familiar como uma dimensão da dignidade da pessoa humana que se manifesta através da “liberdade decisório-familiar”.

Esta construção jurisprudencial, como bem destacado pelo Centro Acadêmico de Direito da UnB em seu memorial, enfatiza que o Estado Democrático de Direito, especialmente em sociedades abertas e inclusivas, não foi concebido para ingressar na esfera mais íntima das decisões pessoais.

Ou seja, o caráter laico do Estado impede sua interferência no “indevassável domínio da mais íntima das intimidades”.

Posições em confronto

Tese da Inconstitucionalidade

O PSB fundamenta sua argumentação em três pilares principais:

a) Violação à autonomia individual e ao livre planejamento familiar

b) Incompatibilidade com o sistema jurídico brasileiro

c) Violação a compromissos internacionais em matéria de direitos humanos

Em resumo o PSB argumenta que a Lei 9.263/96, ao estabelecer requisitos etários superiores à maioridade civil e exigir a existência de filhos como condição alternativa para a esterilização voluntária, interfere de maneira desproporcional em uma das decisões mais íntimas e personalíssimas do ser humano;

Ademais, seria particularmente notável o descompasso entre a exigência de 21 anos para a esterilização voluntária e o sistema civil brasileiro, que reconhece a plena capacidade aos 18 anos, inclusive para decisões igualmente ou mais impactantes, como a adoção de crianças.

Manifestações centrais dos Amici Curiae

Por conseguinte, as entidades admitidas como amici curiae trouxeram importantes contribuições:

  1. Centro Acadêmico de Direito da UnB:
  • Apontou o descompasso entre a lei e o ECA (que permite adoção aos 18 anos)
  • Trouxe dados técnicos através do parecer da Dra. Julia Harris Tafit sobre:
    • Segurança do procedimento laqueadura/vasecotima (taxa de insucesso de apenas 2% em 10 anos)
    • Alto índice de partos indesejados no Brasil (mais de 55%); impactos da gravidez indesejada
  1. Defensoria Pública de SP:
  • Impacto desproporcional sobre mulheres vulneráveis
  • Inadmissibilidade da ingerência estatal
  1. IBDFAM:
  • Impossibilidade de presunção de incapacidade de pessoas civilmente capazes

E o que até agora decidiu o STF?

Até o momento, dois ministros se manifestaram, construindo uma linha argumentativa que privilegia a proteção estatal em detrimento da autonomia individual absoluta.

Isto porque, o Ministro Nunes Marques, relator da ação, desenvolve em seu voto uma argumentação que parte da legitimidade do legislador para estabelecer critérios protetivos em procedimentos irreversíveis.

Explica-se: sua fundamentação se baseia na premissa de que o Estado tem não apenas o direito, mas o dever de proteger os cidadãos de decisões precipitadas em matéria de tamanha relevância para a vida pessoal.

Nesse sentido, a tese desenvolvida pelo relator e acompanhada pelo Ministro Flávio Dino estrutura-se sobre quatro pilares fundamentais.

1. Primeiramente, defendem a legitimidade da escolha legislativa como expressão do processo democrático, argumentando que a fixação de idade mínima e outros requisitos resulta de amplo debate no Congresso Nacional.

2. Em segundo lugar, enfatizam a necessidade de proteção contra decisões irreversíveis, considerando o caráter definitivo da esterilização e seus potenciais impactos psicológicos e sociais.

3. O terceiro elemento central é a disponibilidade de métodos contraceptivos alternativos no Sistema Único de Saúde, o que afastaria a alegação de violação ao núcleo essencial do direito ao planejamento familiar.

4. Por fim, destacam a proteção a populações vulneráveis, argumentando que a liberação irrestrita da esterilização poderia representar uma solução simplista para problemas sociais complexos.

A crítica acadêmica

planejamento familiar

No entanto, em contraponto à posição até agora majoritária no STF, o memorial apresentado pelo Centro Acadêmico de Direito da UnB desenvolve uma crítica contundente e bem estruturada aos critérios estabelecidos pela lei.

A análise se concentra em dois aspectos fundamentais que evidenciariam a inconstitucionalidade do dispositivo.

O primeiro refere-se à arbitrariedade do critério etário de 21 anos, demonstrando a ausência de fundamento racional para esta escolha, especialmente considerando que o ordenamento jurídico brasileiro reconhece a plena capacidade civil aos 18 anos.

Além disso, argumenta-se que esta restrição representa uma violação ao princípio da vedação ao retrocesso, uma vez que impõe limitações desproporcionais a direitos já reconhecidos.

O segundo aspecto criticado refere-se à irrazoabilidade do prazo de 60 dias estabelecido entre a manifestação da vontade e a realização do procedimento.

Isto porque, no pensamento do Amicus Curiae, este período de espera é visto como uma interferência injustificada no exercício de um direito fundamental, representando uma intromissão desproporcional no projeto de vida individual e uma clara violação à autonomia da vontade.

O que realmente está em jogo?

De um lado (favorável a inconstitucionalidade):

  • Direito à autonomia privada (art. 5º, CF)
  • Liberdade individual (art. 5º, caput, CF)
  • Direito ao livre planejamento familiar (art. 226, §7º, CF)
  • Dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF)
  • Direitos reprodutivos

De outro lado (favorável a constitucionalidade):

  • Dever estatal de proteção à saúde (art. 196, CF)
  • Poder regulamentar do Estado
  • Princípio da proteção integral
  • Dever de cautela em procedimentos irreversíveis

Por fim, fato é que a suspensão do julgamento pelo pedido de vista do Ministro Cristiano Zanin abre espaço para uma reflexão mais aprofundada sobre as questões em debate.

Perceba, o caso transcende a mera discussão sobre requisitos para esterilização voluntária, alcançando questões fundamentais sobre os limites da intervenção estatal em decisões individuais e a própria definição dos contornos da liberdade e da autonomia reprodutiva no Estado Democrático de Direito.

Portanto, não há dúvidas que esse tema cairá em provas!


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