Pai é repreendido por defender o direito da filha de realizar o aborto humanitário

Pai é repreendido por defender o direito da filha de realizar o aborto humanitário

Um pai foi hostilizado após conseguir autorização judicial para realização de aborto para a sua filha, à época com 13 anos de idade. A adolescente havia engravidado de um homem de 24 anos de idade.

Vamos a uma análise do caso concreto.

Análise

O tema do aborto é algo que sempre despertou muitas discussões no meio social, acadêmico e jurídico. Sempre houve e sempre haverá vozes defendendo a possibilidade, e sempre haverá opiniões em sentido contrário, e ambas com argumentos bastante interessantes.

Vide, a propósito, a celeuma instaurada no STF no julgamento da ADPF 54. Na ocasião, pretendia-se a declaração de inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, do CP.

A ação foi julgada procedente, embora com votos vencidos. Não obstante, temos ainda a discussão atinente ao aborto econômico e eugenésico, que o ordenamento não admite.

Direito à vida

O direito à vida é um direito fundamental. Fundamental no sentido de que constitui pressuposto ao exercício de todos os demais direitos. E, justamente por isso, o nosso legislador trata com rigor a conduta daquele que, com vontade e consciência dirigida ao fim ilícito, pratica o ato de matar.

Aliás, o Código Penal tem um título inteiro dedicado a cuidar dos crimes contra a pessoa, e um capítulo em que se refere especificamente aos crimes contra a vida. São os crimes de homicídio; infanticídio; induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio; e o aborto.

Todas as condutas atentam contra a vida humana, com algumas particularidades que justificam a modulação da pena, que vai de 12 a 30 anos, no caso do homicídio qualificado (maior pena), e de 6 meses a 2 anos no caso de induzimento ou instigação ao suicídio (menor pena).

Aborto

O crime de aborto protege a vida humana intrauterina e o Código Penal pune a conduta praticada tanto pela gestante, quanto por terceiro.

Quando não se pune o aborto

O legislador, por outro lado, estabelece que não se pune o aborto praticado por médico, quando não há outro meio para salvar a vida da gestante (aborto necessário ou terapêutico).

Além disso, também não se pune se a gravidez resulta de estupro, havendo consentimento da gestante, ou sendo ela incapaz, de seu representante legal (aborto sentimental, humanitário ou ético).

No primeiro caso, a vida da mãe corre perigo. Levar a gestação adiante pode causar a morte da própria mãe. Esse seria o motivo pelo qual o ordenamento jurídico teria passado a tolerar a interrupção da gestação.

No segundo caso, temos uma gravidez resultante de estupro, que autoriza a mãe a interromper prematuramente a gestação.

Na gravidez resultante de estupro, a concepção da criança advém de um ato de violência sexual: o crime de estupro, que consiste em constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.

Aqui, constitui elementar do tipo o dissenso da vítima. O ato libidinoso, seja ele a cópula vaginal ou outro ato libidinoso diverso, ocorre sem o consentimento da ofendida e ainda mediante violência ou grave ameaça. Dali resulta a gravidez, cuja manutenção poderá causar intenso sofrimento psicológico e emocional à mãe. E aí está o motivo da tolerância legal.

Estupro de vulnerável

A Lei 12.015/09 alterou o Código Penal para tipificar o crime de estupro de vulnerável, conforme artigo 217-A. Assim, tal dispositivo estabelece que constitui crime ter conjunção carnal ou outro ato libidinoso com menor de 14 anos.

O §1º, do artigo 217-A diz também se tratar de crime de estupro de vulnerável a conduta de manter ato libidinoso com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para tanto, ou que não possa oferecer resistência.

estupro, câmara dos deputados

Recentemente, uma discussão ganhou corpo, por conta de uma proposta legislativa que pretendia estabelecer um marco para a realização do aborto. Esse marco seria até as 22 semanas de gestação, equiparando o aborto realizado após esse período ao crime de homicídio (PL 1904/2024). Referido projeto está em tramitação na Câmara dos Deputados, não se trabalhando com essa limitação temporal.

Voltando ao caso

É exatamente o caso da reportagem: uma garota com 13 anos de idade manteve relações com um homem de 24 anos e engravidou.

Nesses casos, a lei presume, de modo absoluto, que a vítima não tem a maturidade necessária para consentir validamente com o ato sexual. É nesse sentido o teor da súmula 593, do STJ:

“O crime de estupro de vulnerável se configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante eventual consentimento da vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente”.

O próprio STJ tem admitido o chamado distinguishing, deixando de aplicar a aludida súmula em casos excepcionais, conforme AgRg no REsp 2029697/MG (autor com 23 anos e vítima com 13 anos, em que existia um relacionamento amoroso).

Partindo da premissa de que a conjunção mantida pelo casal caracteriza o crime de estupro de vulnerável, o aborto é chamado de sentimental, humanitário ou ético e é tolerado pelo Código Penal. E mais, não se exige sequer autorização judicial para a sua realização, por inexistir previsão legal nesse sentido.

Desse modo, a conduta do pai (e da filha) está amparada pela ordem normativa, não havendo que se falar em crime. E sendo legítima a conduta, eventuais críticas deixam o campo do direito (trabalha com o binário legal/ilegal) e passam ao campo da moral (binário bom/ruim).

Conclusão

Críticas podem haver, desde que respeitosas. Os argumentos contra o aborto (mesmo que nessas situações) são absolutamente válidos e desejáveis num contexto democrático, com pluralidade de ideias, mas não devem cercear a liberdade de agir, tampouco afetar a honra de terceiros.

Dessa forma, o “ofender”, o “constranger” e o “ameaçar” dirigidos ao pai e à filha podem constituir crime de quem os praticou. E repito, não pela crítica, mas pela forma como ela é dita e veiculada, principalmente numa ambiência de proliferação do discurso de ódio.

Por fim, o que foi dito aqui não expressa uma opinião pessoal do autor, constituindo, isso sim, uma análise puramente jurídica do caso, mas traz uma reflexão sobre a importância de se tolerar e aceitar o diferente.


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