Família multiespécie: Justiça determina pensão alimentícia para cães

Família multiespécie: Justiça determina pensão alimentícia para cães

* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.

Entenda o que aconteceu

O Tribunal de Justiça do Mato Grosso determinou que um médico pague R$ 500 em pensão alimentícia para cinco cães, após o fim da união estável entre ele e sua ex-companheira. A desembargadora Maria Helena Póvoas assinou a decisão.

O valor deverá ser entregue a ex-companheira para custear os gastos com os cães. O valor corresponde a R$ 100 por cachorro, e sua definição visa garantir os cuidados básicos dos animais, incluindo alimentação, consultas veterinárias e medicamentos.

“...não é concebível que os pets do casal deixem de receber os cuidados necessários, o que inclui, basicamente, alimentação e eventuais consultas e medicamentos”.

A desembargadora também estabeleceu o pagamento de três salários-mínimos mensais para a mulher, que é estudante de medicina em tempo integral, pelo período de dois anos, além do pagamento de cinco mensalidades do curso de medicina, no valor de R$ 11 mil.

Tomou-se a decisão com base na jurisprudência recente do Superior Tribunal de Justiça, que reconhece a relação entre tutores e animais de estimação como parte do direito de propriedade e das normas que regem o regime de bens (tutela cautelar antecedente 499, de relatoria do ministro Marco Aurélio Bellizze).

Segundo o STJ, as despesas com a manutenção dos animais são obrigações inerentes à condição de proprietário, equiparando-se à responsabilidade por bens em geral, com ainda maior relevância em relação aos pets, cuja subsistência depende diretamente dos cuidados de seus donos.

Está pronto para começar a preparação para concursos de Carreiras Jurídicas? Os cursos do Estratégia Carreiras Jurídicas são o que você precisa para alcançar a aprovação!

Assinaturas Jurídicas

Faça a sua assinatura!

Escolha a sua área.

Natureza jurídica dos pets

Corrente clássica

Nas últimas décadas prevaleceu a corrente clássica de que os animais de estimação possuíam natureza jurídica de coisa, sendo um bem móvel (semovente) e, portanto, seriam simplesmente objetos de direitos, e não sujeitos de direito.

Neste sentido, os bichos seriam apenas um item do patrimônio de seu titular. Não teriam direitos, de forma que suas garantias estariam relacionadas aos direitos de seus donos, e as discussões sobre eles estariam mais próximas de institutos como a posse e a propriedade.

Teria aplicação, portanto, do artigo 82 do código civil:

Art. 82. São móveis os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico-social.

Ocorre que a realidade é extremamente mutável, e o Direito precisa se adaptar para acompanhar a evolução social.

Presenciamos, nos últimos anos, novos fenômenos relacionados à relação entre as pessoas, chamados de “pais de pets”, e seus bichinhos de estimação: criação de planos de saúde para pets, buffets especializados em organizar festas para os bichinhos, creches e hotéis para cães e gatos, surgimento de profissões voltadas a esses animais e muito mais.

Diante dessa inovação fática os operadores do direito tiveram que se adaptar na interpretação e aplicação do ordenamento jurídico, pois a definição como simples coisas não resolve mais as controvérsias sobre os pets.

Corrente moderna

Existe uma corrente moderna, na qual considera os animais como sujeitos de direito. Algumas decisões judiciais já adotam essa visão, apesar de não serem majoritárias.

“Em 2021, o Tribunal de Justiça do Paraná publicou a primeira decisão que reconheceu os animais como sujeitos de direito no país. Na ocasião, o Tribunal votou a favor dos cães Spike e Rambo – vítimas de maus tratos por parte de antigos donos – representados pela ONG Sou Amigo, da cidade de Cascavel. Na petição, relatou-se que os cães estavam sozinhos há 29 dias em um imóvel e que alguns vizinhos, preocupados com a situação, chamaram a ONG e a Polícia Militar para verificar o caso.

Os dois cachorros foram resgatados e levados a uma clínica veterinária, onde foi constatado que Spike apresentava lesões e feridas. Diante dos fatos, a ONG solicitou que os cães fossem reconhecidos como parte autora do processo. Pediram, também, o ressarcimento dos valores gastos, além da condenação dos réus ao pagamento de indenização por danos morais e uma pensão mensal aos animais até que eles passassem para a guarda definitiva da organização.

Waleska Mendes Cardoso, uma das advogadas do caso, explica a importância da ação: “Pela primeira vez no Brasil e provavelmente no mundo, os animais foram reconhecidos como autores da ação. Se reconheceu que o direito violado é subjetivo do animal, então o único que teria capacidade de buscar reparação do direito violado era o próprio titular”. A decisão se tornou um precedente para futuras ações que argumentam em prol de animais como autores das ações e sujeitos de direito.”

Corrente intermediária

Mas o Superior Tribunal de Justiça tem caminhado para adotar uma corrente intermediária, pela qual os animais de estimação seriam um “terceiro gênero“. Para o ministro Luís Felipe Salomão, não se trata de humanizar o animal, tampouco de equiparar a posse dos bichos com a guarda de filhos, mas de considerar que o direito de propriedade sobre eles não pode ser exercido de maneira idêntica àquele relativo às coisas inanimadas ou que não são dotados de sensibilidade. Portanto, os animais seriam seres dotados de sensibilidade. Conferir o REsp 1.944.228.

“2. A solução de questões que envolvem a ruptura da entidade familiar e o seu animal de estimação não pode, de modo algum, desconsiderar o ordenamento jurídico posto – o qual, sem prejuízo de vindouro e oportuno aperfeiçoamento legislativo, não apresenta lacuna e dá respostas aceitáveis a tais demandas –, devendo, todavia, o julgador, ao aplicá-lo, tomar como indispensável balizamento o aspecto afetivo que envolve a relação das pessoas com o seu animal de estimação, bem como a proteção à incolumidade física e à segurança do pet, concebido como ser dotado de sensibilidade e protegido de qualquer forma de crueldade.

2.1 A relação entre o dono e o seu animal de estimação encontra-se inserida no direito de propriedade e no direito das coisas, com o correspondente reflexo nas normas que definem o regime de bens (no caso, o da união estável). A aplicação de tais regramentos, contudo, submete-se a um filtro de compatibilidade de seus termos com a natureza particular dos animais de estimação, seres que são dotados de sensibilidade, com ênfase na proteção do afeto humano para com os animais.”

Por essa visão, adotada pelo STJ, reconhece-se os animais como seres sencientes. Mas o que são esses seres sencientes? Simples:

Seres sencientes são seres que possuem a capacidade de sentir e perceber o mundo ao seu redor. Isso inclui a habilidade de experimentar emoções como dor, prazer, alegria e sofrimento.

O professor José Fernando Simão arremata:

O que se coloca é saber se, por isso, animais não humanos e demais coisas devem receber tratamento idêntico pelo Código Civil. Em outros termos, é necessário definir se a propriedade de animais gera iguais efeitos à propriedade das coisas inanimadas, como um carro, uma cadeira, uma casa.

Evidentemente que a resposta é negativa. A propriedade de animais não humanos passa por um filtro óbvio: os animais não humanos são coisas especiais, pois são seres dotados de sensibilidade e passíveis de sofrimento e dor. É por isso que o direito de propriedade sobre os animais, segundo interpretação sistemática do Código Civil, não pode ser exercido de maneira idêntica àquele que se exerce sobre coisas inanimadas ou não dotadas de sensibilidade.

(Simão, José Fernando. Direito dos Animais: Natureza Jurídica. A Visão do Direito Civil. Revista Jurídica Luso-Brasileira, v. 4, ano 3, 2017, p. 899)

O Ministro do Supremo Tribunal Federal, Flávio Dino, em decisão cautelar na ADI 7.704, arrematou:

Ao se preocupar com outras formas de vida não humanas, a Constituição incorporou uma visão mitigada do antropocentrismo, de modo a reconhecer que seres não humanos podem ter valor e dignidade1. À luz do texto constitucional, a dignidade não é um atributo exclusivo do ser humano.

Portanto, será cada vez mais comum nos depararmos com questões envolvendo visita e guarda de pets, busca e apreensão de animais e proibição ou não de castração dos bichinhos.

Em resumo, quanto a visão acerca da natureza jurídica dos pets, temos:

1) A corrente clássica ou tradicional, que entende que o animal é um bem semovente, com fundamento antes mesmo do Código Civil;

2) A corrente moderna, que entende que o animal deve ser considerado como um ser sujeito de direito;

3) A corrente intermediária, adotada pelo STJ, pela qual o animal de estimação seria um “terceiro gênero”, dotado de sensibilidade, ou seja, um ser senciente.

Está pronto para começar a preparação para concursos de Carreiras Jurídicas? Os cursos do Estratégia Carreiras Jurídicas são o que você precisa para alcançar a aprovação!

Assinaturas Jurídicas

Faça a sua assinatura!

Escolha a sua área.

Conceito de família multiespécie

A concessão de pensão alimentícia também tem por consequência o reconhecimento da família multiespécie.

Mas o que vem a ser essa nova configuração de família? Vejamos.

Família multiespécie

No contexto da família multiespécie, os animais de estimação não são considerados como coisas, e sim como parte integrante da família, com emoções próprias (alegria, tristeza, ansiedade), e detentores de direitos básicos, como o de não sofrerem maus-tratos, o de poderem receber pensão alimentícia de seus tutores, o de terem acesso a tratamento médico, e até o direito de visitas (não serem abandonados).

A Constituição Federal, em seu artigo 225, §1º, VII, prevê que é dever do poder público proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.

Tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 179/23, que prevê uma série de direitos para os animais de estimação e regulamenta o conceito de família multiespécie como aquela formada pelo núcleo familiar humano em convivência compartilhada com seus animais.

O PL disciplina situações relacionadas aos pets e seus tutores, tais como o fim da união estável, o divórcio, os pedidos de guarda e a regulamentação de visitas, entre outras.

Ponto central do projeto é garantir aos animais de estimação o acesso à Justiça para defesa ou reparação de danos materiais, existenciais e morais aos seus direitos individuais e coletivos, cabendo ao tutor ou, na ausência ou impedimento deste, à Defensoria Pública e ao Ministério Público representá-lo em juízo.

Tema instigante e que cada vez mais é cobrado em provas de direito constitucional, direito civil e processual civil. Importante acompanhar a evolução do tema.


  1. DIAS, Jefferson Aparecido; NELSON, Rocco Antônio Rangel Rosso. Do Direito dos animais não humanos – em busca de uma personalidade esquecida. Revista Brasileira de Direito Animal. UFBA. P. 35. ↩︎

Quer saber quais serão os próximos concursos?

Está pronto para começar a preparação para concursos de Carreiras Jurídicas? Os cursos do Estratégia Carreiras Jurídicas são o que você precisa para alcançar a aprovação!

Assinaturas Jurídicas

Faça a sua assinatura!

Escolha a sua área.

0 Shares:
Você pode gostar também