Como é cediço, a relação entre Estado e religião no Brasil é tema sensível na população, e obviamente, no poder judiciário também.
Isto porque, precisamos rememorar, há o princípio da laicidade estatal, previsto no art. 19, inciso I, da Constituição Federal, que estabelece a separação entre Estado e Igreja, impedindo a relação de dependência ou aliança entre ambos.
Entretanto, recentemente esse tema foi debatido no STF e parece que pode mudar, ou mudou. Enfim, a ideia desse artigo é refletir sobre isso justamente em um julgamento pendente no STF.
Ora, dessa maneira, entre as questões que suscitam amplos debates nesse âmbito está a obrigatoriedade, por força de lei estadual, da disponibilização da Bíblia Sagrada em bibliotecas públicas e escolas da rede pública de ensino.
Isto porque, em 2021, o STF declarou inconstitucional leis estaduais do Amazonas e Mato Grosso do Sul que impunham essa obrigatoriedade das bíblias em escolas e bibliotecas. O entendimento fixado parecia consolidar a jurisprudência sobre o tema:
A imposição legal de manutenção de exemplares de Bíblias em escolas e bibliotecas públicas estaduais configura contrariedade à laicidade estatal e à liberdade religiosa consagrada pela Constituição da República de 1988.
STF. Plenário. ADI 5258/AM, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgado em 12/4/2021 (Informativo 1012).
ADI 5255 do Rio Grande do Norte e o precedente de 2021
Diante disso, surge a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5255, proposta pelo Procurador-Geral da República contra a Lei 8.415/2003 do Rio Grande do Norte. A ADI questiona dispositivo normativo que determina a inclusão no acervo de todas as bibliotecas públicas do estado de, pelo menos, dez exemplares da Bíblia Sagrada, sendo quatro em linguagem braile.
Atualmente, o Ministro Nunes Marques, relator da ação, já proferiu seu voto pela procedência do pedido, alinhando-se ao entendimento anteriormente firmado pela Corte.
Nessa linha, em seu voto, destacou que “aos entes políticos da Federação não cabe conceder, mediante atos legislativos, administrativos ou judiciais, tratamento privilegiado a determinada confissão religiosa”, e que “o acesso facilitado a determinado livro religioso em bibliotecas públicas […] caracterizam incentivo estatal injustificável a valores religiosos específicos, em desconformidade com o princípio da laicidade”.
Dessa maneira, o precedente que orienta esse posicionamento é a ADI 5256, julgada em 2021, relatada pela Ministra Rosa Weber. Na ocasião, o STF, por unanimidade, entendeu que leis estaduais que determinam a obrigatoriedade da presença da Bíblia em escolas e bibliotecas públicas violam os princípios da laicidade estatal e da isonomia.
Conforme destacou a Ministra: "a laicidade estatal impõe ao Estado a observância da imparcialidade relativamente à pluralidade de crenças e orientações religiosas e não religiosas que constituem o tecido social, o imaginário e o espírito cultural brasileiros".
Decisão sobre símbolos religiosos em espaços públicos
No entanto, em novembro de 2024, contudo, o STF fixou tese em sentido aparentemente diverso ao julgar o ARE 1.249.095/SP, no qual se discutia a constitucionalidade da presença de símbolos religiosos, como crucifixos, em espaços públicos.
Na ocasião, sob a relatoria do Ministro Cristiano Zanin, a Corte firmou a seguinte tese de repercussão geral (Tema 1.086):
A presença de símbolos religiosos em prédios públicos, pertencentes a qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, desde que tenha o objetivo de manifestar a tradição cultural da sociedade brasileira, não viola os princípios da não discriminação, da laicidade estatal e da impessoalidade.
STF. Plenário. ARE 1.249.095/SP, Rel. Min. Cristiano Zanin, julgado em 27/11/2024 (Repercussão geral – Tema 1.086) (Informativo 1160).
Veja, o julgamento, aprovado por unanimidade, fundamentou-se na compreensão de que tais símbolos manifestam a tradição cultural brasileira, representando mais que meros elementos religiosos.
Dessa maneira, o STF reconheceu que o Cristianismo esteve presente na formação histórica do Brasil, desde os jesuítas na colonização até a nomenclatura de logradouros públicos, estados brasileiros e feriados.
É compatível com a Constituição Federal de 1988 — e não ofende a proibição de discriminação (arts. 3º, IV, e 5º, caput, CF/88), o postulado da laicidade estatal (art. 19, I, CF/88) e o princípio da impessoalidade na Administração Pública (art. 37, caput, CF/88) — a presença de símbolos religiosos em espaços públicos, pertencentes ao Estado, nas hipóteses em que se busca representar tradição cultural da sociedade brasileira.
STF. Plenário. ARE 1.249.095/SP, Rel. Min. Cristiano Zanin, julgado em 27/11/2024 (Repercussão geral – Tema 1.086) (Informativo 1160).
O Cristianismo — até então liderado pela Igreja Católica — esteve presente na formação da sociedade brasileira, registrando a presença jesuítica desde o episódio do descobrimento e, a partir daí, atuando na formação educacional e moral do povo que surgia.
Não fossem apenas os crucifixos, não há como desconsiderar as dezenas de dias consagrados — diversos deles com decretação de feriado —, a nomenclatura de ruas, praças, avenidas e outros logradouros públicos, escolas públicas, estados brasileiros, que revelam a força de uma tradição que, antes de segregar, compõe a rica história brasileira.
A presença de símbolos religiosos nos espaços públicos, ao contrário do que sustenta o MPF:
• não deslegitima a ação do administrador ou a convicção imparcial do julgador (mesmo porque a fundamentação jurídica não se assenta em elementos divinos, ou seja, não impõe concepções filosóficas aos cidadãos);
• não constrange o crente a renunciar à sua fé;
• não retira a sua faculdade de autodeterminação e percepção mítico-simbólica; e
• não fere a sua liberdade de ter, não ter ou deixar de ter uma religião.
Possível mudança de entendimento?
Diante desse aparente contraste entre as decisões, emerge a questão: estaria o STF caminhando para uma revisão de seu entendimento acerca da obrigatoriedade da presença da Bíblia em bibliotecas públicas?
De início, apesar da proximidade temática, há diferenças substanciais entre os casos, mas abordaremos o assunto primeiro, literalmente.
Como visto, na decisão sobre símbolos religiosos, o STF considerou que crucifixos em repartições públicas representam uma tradição cultural enraizada na sociedade brasileira, sem impor concepções religiosas aos cidadãos.

Por outro lado, no caso da Bíblia em bibliotecas, a questão envolve a obrigatoriedade, por lei, da aquisição e disponibilização de exemplares específicos de livro religioso com recursos públicos.
Quem pensa que as decisões não se misturam diz que, no caso da ADI 5255, a lei determina quantidade mínima de exemplares (dez, sendo quatro em braile). Isso evidenciaria caráter impositivo e direcionamento de recursos públicos para promoção de determinada religião.
Nesse pensamento, o parecer da Procuradoria-Geral da República no caso é esclarecedor ao pontuar que “não se está a afirmar que seja vedado a escolas e bibliotecas públicas a aquisição da Bíblia”, mas sim que a “inconstitucionalidade há na imposição normativa de compra de apenas um desses livros tidos como sagrados, por parte da administração pública, com evidente privilégio a determinada manifestação religiosa”.
Elementos para reflexão
O caso evidencia a linha tênue entre a preservação cultural-religiosa e a violação do princípio da laicidade estatal. A distinção reside, possivelmente, no caráter impositivo da norma e na destinação compulsória de recursos públicos para promoção de literatura vinculada a determinada tradição religiosa, em detrimento de outras.
Enquanto um crucifixo em repartição pública pode ser interpretado como símbolo cultural-histórico, sem onerar os cofres públicos ou impor práticas religiosas, a aquisição obrigatória de exemplares da Bíblia representa destinação de recursos para promoção específica de literatura vinculada à tradição cristã, com exclusão das demais.
Prognóstico: manutenção ou revisão do entendimento?
Argumentos para manutenção do entendimento – inconstitucional | Argumentos para revisão do entendimento – constitucional |
Há diferença entre símbolos passivos (crucifixos) que não demandam recursos públicos e a aquisição obrigatória de livros religiosos com dinheiro do erário | A tradição cristã é reconhecida como elemento cultural formador da sociedade brasileira, assim como os símbolos religiosos |
A lei impõe quantidade específica de exemplares, evidenciando direcionamento injustificado de recursos | Se a presença de símbolos religiosos é constitucional por representar tradição cultural, o mesmo raciocínio poderia se aplicar à Bíblia |
A obrigatoriedade privilegia uma tradição religiosa específica, enquanto a presença de símbolos religiosos foi julgada constitucional por seu aspecto cultural, não confessional | Tanto a Bíblia quanto os crucifixos fazem parte da formação histórica e cultural do Brasil |
O STF tem precedentes consolidados sobre a questão específica, com julgamentos unânimes das ADIs 5256, 5257 e 5258 | A decisão sobre símbolos religiosos é mais recente (2024) e pode representar evolução na compreensão do princípio da laicidade |
A aquisição obrigatória demanda recursos públicos, enquanto a mera presença de símbolos não | A preservação da tradição cultural e histórica pode justificar a presença da Bíblia em bibliotecas públicas como elemento formador da cultura nacional |
E você, o que acha?
Como o tema já caiu em concurso?
(TJMA – Instituto Consuplan – 2023 – Cartórios) Direitos fundamentais são essenciais para que se possa falar em democracia dentro de uma perspectiva substancial. Trata-se de elemento estrutural primordial na maior parte dos textos constitucionais pós-Segunda Guerra Mundial, servindo como uma das âncoras contra abusos e autoritarismos estatais. Neste contexto, assinale a afirmativa correta sobre os direitos e garantias fundamentais.
a) É inconstitucional, por ofensa aos princípios da isonomia, liberdade religiosa e da laicidade do Estado, norma que obrigue a manutenção de exemplar da bíblia em unidades escolares e bibliotecas públicas estaduais. (Certo)
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