* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.
Tema 1.370
O Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, definiu a natureza jurídica do pagamento realizado à mulher vítima de violência doméstica e familiar em decorrência de seu afastamento do trabalho.
O entendimento consolidou-se no TEMA 1.370 da Suprema Corte (RE 1.520.468).
Entenda o caso
O caso teve origem em um mandado de segurança impetrado pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) contra um ato do Juízo de Direito da 2ª Vara Criminal de Toledo/PR.
Esse juízo havia proferido uma ordem judicial em autos de Medidas Protetivas de Urgência, determinando que o INSS garantisse o afastamento remunerado da empregada, vítima de violência doméstica e familiar, por um período mínimo de 3 meses.

O juízo de origem estabeleceu que a empregadora deveria arcar com o pagamento dos primeiros 15 dias de afastamento, e o INSS custearia o período subsequente, garantindo à vítima remuneração equânime ao seu salário.
O INSS poderia, contudo, exigir a submissão da empregada a uma perícia para atestar a incapacidade laborativa. O INSS questionou essa decisão judicial de custeio, e o caso acabou chegando à Suprema Corte.
O recurso extraordinário da autarquia previdenciária foi conhecido e teve provimento negado pelo STF, mantendo a determinação de que o INSS garanta o afastamento remunerado por meio da concessão de benefício análogo ao auxílio por incapacidade temporária.
Competência jurisdicional
O STF confirmou o entendimento adotado na origem quanto à competência jurisdicional, definindo duas regras principais:
- Competência para fixação da medida protetiva: Compete ao juízo estadual (da Vara Criminal ou especializada em violência doméstica e familiar), que aplica a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), fixar a medida protetiva de manutenção do vínculo trabalhista prevista no art. 9º, § 2º, II. Essa competência abrange a requisição de pagamento da prestação pecuniária em favor da vítima afastada, mesmo que o cumprimento material da decisão caiba ao INSS e ao empregador. O juízo estadual é competente para apreciar casos concretos nos quais se deve aplicar a Lei Maria da Penha.
- Competência para ação regressiva: Compete à Justiça Federal processar e julgar as ações regressivas que a Autarquia Previdenciária Federal (INSS) deve ajuizar contra os responsáveis pela violência doméstica, com fundamento no art. 120, II, da Lei nº 8.213/1991. A Previdência Social está obrigada a ajuizar esta ação regressiva.
Natureza jurídica do pagamento e custeio
A medida protetiva de urgência (art. 9º, § 2º, II, da Lei nº 11.340/2006) permite à mulher se afastar do local de trabalho por até seis meses, preservando seu vínculo trabalhista e seus direitos.
Lei nº 11.340/2006 Art. 9º A assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar será prestada em caráter prioritário no Sistema Único de Saúde (SUS) e no Sistema Único de Segurança Pública (Susp), de forma articulada e conforme os princípios e as diretrizes previstos na Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993 (Lei Orgânica da Assistência Social), e em outras normas e políticas públicas de proteção, e emergencialmente, quando for o caso. ... § 2º O juiz assegurará à mulher em situação de violência doméstica e familiar, para preservar sua integridade física e psicológica: I - acesso prioritário à remoção quando servidora pública, integrante da administração direta ou indireta; II - manutenção do vínculo trabalhista, quando necessário o afastamento do local de trabalho, por até seis meses. III - encaminhamento à assistência judiciária, quando for o caso, inclusive para eventual ajuizamento da ação de separação judicial, de divórcio, de anulação de casamento ou de dissolução de união estável perante o juízo competente.
O afastamento laboral da vítima é considerado uma interrupção do contrato de trabalho, contado como tempo de serviço e sem prejuízo da remuneração percebida. Deve-se interpretar a expressão “vínculo trabalhista” de forma ampla, abrangendo a proteção da fonte de renda da mulher, qualquer que seja ela.
Devido à ausência de legislação específica para custear esse afastamento, o Judiciário aplica regras por analogia, equiparando a situação de violência doméstica (que compromete a integridade física e psicológica) a uma enfermidade da segurada. Essa interpretação teleológica visa conferir a máxima eficácia ao texto constitucional e à norma protetiva.
A prestação pecuniária decorrente dessa medida pode ter natureza previdenciária ou assistencial, dependendo da relação da mulher com a seguridade social:
a) Natureza previdenciária
Aplica-se quando a mulher é segurada do Regime Geral de Previdência Social (empregada, contribuinte individual, facultativa ou segurada especial).
• Regra de custeio: análoga ao auxílio por incapacidade temporária/auxílio-doença:
◦ O empregador é responsável pela remuneração dos primeiros 15 dias consecutivos de afastamento (quando houver vínculo de emprego).
◦ O INSS deve custear o período subsequente, garantindo a remuneração.
• Período de carência: o benefício será devido independentemente do cumprimento de período de carência. Isso porque o afastamento decorre de violência doméstica, equiparando-se a um “acidente de qualquer natureza” para fins de proteção previdenciária.
• Casos sem emprego formal: para seguradas do RGPS sem relação de emprego (como contribuintes individuais ou facultativas), o INSS arcará com o benefício integralmente.
b) Natureza assistencial
Aplica-se quando a mulher não é segurada da previdência social, como no caso de trabalhadoras autônomas informais.
Nessa hipótese, a prestação assume a natureza de benefício eventual decorrente de vulnerabilidade temporária. O Estado, através do Sistema Único de Assistência Social – SUAS, Lei nº 8.742/1993 – LOAS, deve prover a assistência financeira necessária.
O juízo competente deverá atestar que, em razão do afastamento, a mulher não terá meios de prover a própria manutenção. Além disso, há o compartilhamento da responsabilidade pelo custeio dos benefícios eventuais entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios, conforme critérios definidos pelos Conselhos de Assistência Social.
Tese firmada
Ao final, aprovou-se a seguinte tese de repercussão geral:
TEMA 1.370 do STF “1) Compete ao juízo estadual, no exercício da jurisdição criminal, especialmente aquele responsável pela aplicação da Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), fixar a medida protetiva prevista no art. 9º, § 2º, II, da referida lei, inclusive quanto à requisição de pagamento de prestação pecuniária em favor da vítima afastada do local de trabalho, ainda que o cumprimento material da decisão fique sob o encargo do INSS e do empregador; 2) Nos termos do que dispõe o art. 109, I, da Constituição Federal, compete à Justiça Federal processar e julgar as ações regressivas que, com fundamento no art. 120, II, da Lei nº 8.213/1991, deverão ser ajuizadas pela Autarquia Previdenciária Federal contra os responsáveis nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher; 3) A expressão constante da Lei (“vínculo trabalhista”) deve abranger a proteção da mulher visando à manutenção de sua fonte de renda, qualquer que seja ela, da qual tenha que se afastar em face da violência sofrida, conforme apreciação do Poder Judiciário. A prestação pecuniária decorrente da efetivação da medida protetiva prevista no art. 9º, § 2º, II, da Lei nº 11.340/2006 possui natureza previdenciária ou assistencial, conforme o vínculo jurídico da mulher com a seguridade social: (i) previdenciária, quando a mulher for segurada do Regime Geral de Previdência Social, como empregada, contribuinte individual, facultativa ou segurada especial, hipótese em que a remuneração dos primeiros 15 dias será de responsabilidade do empregador (quando houver), e o período subsequente será custeado pelo INSS, independentemente de cumprimento de período de carência. No caso de inexistência de relação de emprego de segurada do Regime Geral de Previdência Social, o benefício será arcado integralmente pelo INSS; (ii) assistencial, quando a mulher não for segurada da previdência social, hipótese em que a prestação assume natureza de benefício eventual decorrente de vulnerabilidade temporária, cabendo ao Estado, na forma da Lei nº 8.742/1993 (LOAS), prover a assistência financeira necessária. Nesse caso, o juízo competente deverá atestar que a mulher destinatária da medida de afastamento do local de trabalho não possuirá, em razão de sua implementação, quaisquer meios de prover a própria manutenção.
Quer saber quais serão os próximos concursos?
Confira nossos artigos para Carreiras Jurídicas!