Multiparentalidade: quando a mãe biológica vítima de violência não perde o poder familiar

Multiparentalidade: quando a mãe biológica vítima de violência não perde o poder familiar

Prof. Gustavo Cordeiro

Em agosto de 2025, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) surpreendeu o mundo jurídico com uma decisão paradigmática que redefiniu os contornos da multiparentalidade no Brasil.

O julgamento, realizado pela Quarta Turma em 12/8/2025, sob a relatoria do Ministro Raul Araújo, foi publicado no Informativo nº 858 de 19 de agosto de 2025. O caso envolvia uma adolescente de 14 anos, vítima de violência sexual doméstica, que se tornou mãe em condições extremamente vulneráveis. A decisão trouxe uma abordagem revolucionária: mesmo quando a criança vive há mais de uma década com família substituta, a destituição do poder familiar da mãe biológica vítima de violência pode não ser a melhor solução.

Multiparentalidade

Esta mudança de paradigma representa um marco na aplicação prática da multiparentalidade, tema que já havia sido consolidado pelo Supremo Tribunal Federal no RE 898.060/SC (Tema 622), mas que agora ganha contornos ainda mais sofisticados e humanizados.

O contexto fático que mudou tudo

O drama humano por trás da decisão

O caso concreto apresenta uma complexidade emocional e jurídica impressionante. Uma adolescente de 14 anos, vítima de violência sexual praticada pelo padrasto no ambiente doméstico, tornou-se mãe em condições de extrema vulnerabilidade. Sua própria mãe foi diagnosticada com esquizofrenia, configurando um cenário de total ausência de apoio familiar e estatal.

Elementos cruciais do caso:

  • Mãe biológica adolescente (14 anos) vítima de violência sexual
  • Ausência de apoio familiar e estatal durante a gravidez
  • Criança sob guarda de família substituta desde os primeiros dias de vida
  • Consolidação de vínculos afetivos ao longo de mais de 10 anos
  • Ausência dos requisitos legais para destituição do poder familiar

A inovação jurisprudencial do STJ

O STJ, no julgamento por unanimidade da Quarta Turma (Informativo nº 858/2025), inovou ao reconhecer que o contexto de violência e vulnerabilidade da mãe biológica impede a caracterização das hipóteses de perda do poder familiar previstas no art. 1.638 do Código Civil. A Corte entendeu que não houve abandono espontâneo da criança, nem descumprimento voluntário dos deveres inerentes ao poder familiar.

Trecho do acórdão (Rel. Min. Raul Araújo):

"Não se mostra razoável enquadrar a mãe biológica em nenhuma das hipóteses de perda do poder familiar previstas no art. 1.638 do Código Civil, por ter sido vítima de violência sexual no ambiente doméstico aos quatorze anos de idade e não lhe ter sido oportunizado apoio estatal para ter a criança consigo enquanto permaneceu acolhida institucionalmente."

Fundamentos jurídicos da multiparentalidade

A tese do STF (RE 898.060/SC – tema 622)

O Supremo Tribunal Federal, em 2016, fixou a seguinte tese de repercussão geral:

"A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios".

Esta decisão superou definitivamente o paradigma da hierarquização entre vínculos parentais, reconhecendo que:

Princípios fundamentais:

  • Dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF/88)
  • Direito à busca da felicidade (princípio implícito)
  • Paternidade responsável (art. 226, § 7º, CF/88)
  • Melhor interesse da criança e do adolescente

Critérios de parentalidade reconhecidos

A evolução jurisprudencial reconhece três critérios legítimos de parentalidade:

  1. Parentalidade presuntiva: Decorrente do casamento ou outras hipóteses legais
  2. Parentalidade biológica: Baseada na ascendência genética
  3. Parentalidade afetiva: Fundamentada nos vínculos de convivência e afeto

A aplicação prática nos casos de violência

Quando a destituição NÃO é cabível

O STJ estabeleceu parâmetros importantes para casos envolvendo mães vítimas de violência:

Critérios de análise:

  • Voluntariedade da conduta: A situação de risco deve ser voluntariamente criada pelos pais
  • Capacidade de discernimento: Adolescentes vítimas de violência podem não ter plena capacidade de compreender as consequências de suas decisões
  • Apoio estatal: A ausência de políticas públicas adequadas influencia na análise da responsabilidade parental

A solução da multiparentalidade

Estrutura da decisão:

  • Manutenção do poder familiar da mãe biológica
  • Reconhecimento da paternidade socioafetiva dos cuidadores
  • Preservação da guarda com a família substituta
  • Direito de visitas à mãe biológica
  • Efeitos jurídicos plenos para ambos os vínculos (o filho pode herdar dos pais biológicos e socioafetivos)

Impactos práticos para concursos públicos

Como o tema aparece nas provas

A multiparentalidade tornou-se tema recorrente em concursos de alto nível, especialmente nas carreiras do Ministério Público, Magistratura e Defensoria Pública. As bancas exploram tanto os aspectos doutrinários quanto as nuances jurisprudenciais.

Questão comentada

QUESTÃO INÉDITA - Estilo FCC/VUNESP

Uma adolescente de 14 anos, vítima de violência sexual doméstica, deu à luz uma criança que foi entregue a uma família substituta logo após o nascimento. Após 12 anos de convivência, durante os quais se consolidaram vínculos afetivos, a família substituta ingressou com ação de adoção cumulada com destituição do poder familiar. A mãe biológica, agora adulta e em condições de estabilidade, manifestou interesse em manter vínculos com a filha. Considerando a jurisprudência do STF e STJ sobre multiparentalidade, assinale a alternativa correta:

A) A destituição do poder familiar é obrigatória, pois houve abandono da criança por mais de seis meses.

B) A adoção deve ser deferida com a automática extinção do poder familiar da mãe biológica.

C) É possível o reconhecimento da multiparentalidade, mantendo-se o poder familiar da mãe biológica e reconhecendo-se a paternidade socioafetiva da família substituta.

D) A socioafetividade somente produz efeitos se houver registro público da adoção.

E) O melhor interesse da criança impede qualquer contato com a mãe biológica após a consolidação dos vínculos afetivos.

GABARITO: C.

Explicação:

  • Alternativa A – INCORRETA: O STJ entendeu que adolescentes vítimas de violência em situação de vulnerabilidade não praticam “abandono” no sentido jurídico do termo, especialmente quando não houve apoio estatal adequado.
  • Alternativa B – INCORRETA: A tese do STF (Tema 622) estabelece que a paternidade socioafetiva não impede o reconhecimento concomitante do vínculo biológico.
  • Alternativa C – CORRETA: Esta é exatamente a solução adotada pelo STJ no caso paradigmático, reconhecendo a multiparentalidade como forma de preservar todos os vínculos importantes para a criança.
  • Alternativa D – INCORRETA: A tese do STF é expressa ao afirmar que a socioafetividade produz efeitos “declarada ou não em registro público”.
  • Alternativa E – INCORRETA: O melhor interesse da criança, no caso concreto, foi considerado compatível com a manutenção de vínculos com a mãe biológica através do direito de visitas.

Esquema Mental

MULTIPARENTALIDADE = SOMA, NÃO SUBTRAÇÃO

Vínculo Biológico + Vínculo Socioafetivo = Multiparentalidade

(Não se excluem mutuamente)

Critérios para destituição:

❌ Violência/Vulnerabilidade da mãe ≠ Abandono voluntário

✅ Apoio estatal adequado é requisito para responsabilização

✅ Melhor interesse da criança pode incluir múltiplos vínculos

Palavras-Chave para Decorar

  • Concomitância (não exclusão entre vínculos)
  • Pluriparentalidade (múltiplos vínculos parentais)
  • Voluntariedade (requisito para destituição)
  • Dignidade humana (princípio norteador)
  • Melhor interesse (critério decisório)

Conclusão: o futuro da multiparentalidade

A decisão do STJ marca uma evolução na compreensão da multiparentalidade, especialmente em contextos de vulnerabilidade social. Para os concurseiros, a mensagem é clara: a jurisprudência está caminhando para soluções mais humanizadas e complexas, que exigem conhecimento aprofundado tanto da doutrina quanto da realidade social.

A tendência é que as provas futuras explorem cada vez mais esses casos limítrofes, onde a aplicação mecânica da lei não oferece a melhor solução. Quem dominar esses nuances estará à frente na corrida pelos melhores cargos públicos do país.


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