Decisão do TJ-SP autoriza a continuidade da venda do livro “Pablo Marçal: a trajetória de um criminoso”, destacando a prevalência da liberdade de expressão sobre a honra em sede de tutela de urgência.

Como é cediço, a colisão entre direitos fundamentais constitui tema de grande complexidade no ordenamento jurídico brasileiro, notadamente quando envolve, de um lado, a liberdade de expressão e de informação e, de outro, os direitos da personalidade, como a honra, a imagem e a privacidade.
Recentemente, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo enfrentou esta controvérsia ao apreciar o Agravo de Instrumento nº 2093656-06.2025.8.26.0000, que discutia a possibilidade de retirada do mercado, tanto em plataformas físicas quanto digitais, de obra literária com conteúdo alegadamente ofensivo à honra de figura pública.
Dessa maneira, o presente artigo busca analisar os fundamentos jurídicos que embasaram a decisão proferida pela 8ª Câmara de Direito Privado daquele Tribunal, à luz dos precedentes do Supremo Tribunal Federal sobre o tema.

O caso concreto e suas peculiaridades
O empresário e ex-candidato à Prefeitura de São Paulo, Pablo Henrique Costa Marçal, ajuizou ação de obrigação de não fazer cumulada com indenização por danos morais em face de Cristiano Livramento da Silva e da editora Geração Editorial Ltda., pleiteando, em sede de tutela de urgência, a imediata retirada de circulação do livro intitulado “Pablo Marçal: a trajetória de um criminoso“.
Em suas razões, o autor sustentou que a obra não apresentava caráter informativo legítimo, mas continha narrativas sensacionalistas e imputações criminais falsas, destituídas de qualquer comprovação, configurando verdadeiro abuso do direito de expressão.
Argumentou ainda que o título do livro era “extremamente difamatório e sensacionalista”, buscando não apenas macular sua imagem, mas também promover o jornalista-réu, atraindo a atenção pública por meio de conteúdo ofensivo e desprovido de embasamento factual.
O pedido liminar foi indeferido pelo juízo de primeiro grau, que destacou importantes circunstâncias fáticas:
- a obra havia sido publicada em outubro de 2024, mas o autor somente ingressou com a ação em março de 2025, cinco meses depois;
- o livro, por se reportar à vida de um político, que inclusive obteve expressiva votação nas eleições municipais de 2024, teria, em princípio, caráter jornalístico;
- a questão havia sido objeto de discussão por “meios de comunicação e jornalistas de renome”, reforçando, a priori, o cunho jornalístico da obra.
E o que decidiu o TJ-SP? – Livro pablo marçal
Em verdade, inconformado com a decisão que indeferiu a tutela antecipada, o autor interpôs agravo de instrumento, reiterando seus argumentos iniciais e acrescentando que “inexiste interesse público legítimo, uma vez que a notoriedade do agravante como empresário e figura pública não autoriza a publicação de acusações infundadas, construídas com base em alegações anônimas e sem qualquer comprovação documental”.
Ao apreciar o recurso, a Relatora, Desembargadora Clara Maria Araújo Xavier, inicialmente salientou que, em sede de cognição sumária própria do agravo de instrumento, o tribunal deveria limitar-se a analisar a presença ou ausência dos pressupostos autorizadores da concessão da tutela de urgência, evitando-se a antecipação do julgamento do mérito, ainda pendente da observância do devido processo legal.
Em seguida, a Relatora destacou a ausência dos requisitos previstos no art. 300 do Código de Processo Civil, quais sejam:
- a probabilidade do direito e;
- o perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo.
Quanto ao primeiro requisito, entendeu que “o livro em questão, ao menos a princípio, possui caráter jornalístico investigativo sobre famoso empresário, figura pública que, inclusive, concorreu à prefeitura de São Paulo no ano de 2024”.
No tocante ao segundo, considerou relevante o fato de a obra ter sido publicada cinco meses antes do ajuizamento da ação, descaracterizando a urgência alegada.
Ademais, a Desembargadora pontuou ainda que eventual dano à reputação do agravante, decorrente de excesso ou abuso na livre manifestação do pensamento, estaria “condicionado ao exame mais aprofundado da questão pelo julgador a quo, após a instrução do feito, o que poderá ser resolvido, inclusive, por meio de reparação proporcional ao agravo, como perdas e danos”.
Por fim, a Relatora concluiu que o caso demandava a devida ponderação entre o direito à liberdade de manifestação do pensamento e da informação e a inviolabilidade da honra e da imagem (artigos 5º, IV, IX, X, XIV e 220, § 1º, da CF).
Porém, na ausência dos requisitos necessários à concessão da tutela de urgência, entendeu que deveria preponderar, naquele momento, o interesse público à informação sobre o direito à honra e imagem do suposto ofendido.
O voto da Relatora foi acompanhado pelos demais integrantes da 8ª Câmara de Direito Privado do TJSP, negando-se provimento ao recurso, por unanimidade.
Precedente do STF: Biografias não autorizadas
No íntimo, a decisão do TJSP alinha-se com o entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 4815/DF, que discutiu a constitucionalidade dos arts. 20 e 21 do Código Civil, no que tange à exigência de prévia autorização para publicação de biografias.
Na ocasião, o STF, sob a relatoria da Ministra Cármen Lúcia, conferiu interpretação conforme a Constituição aos dispositivos impugnados, declarando:
“inexigível o consentimento de pessoa biografada relativamente a obras biográficas literárias ou audiovisuais, sendo por igual desnecessária a autorização de pessoas retratadas como coadjuvantes ou de familiares, em caso de pessoas falecidas ou ausentes”.
O julgamento baseou-se em cinco premissas fundamentais:
- a Constituição assegura como direitos fundamentais a liberdade de pensamento e de sua expressão, a liberdade de atividade intelectual, artística, literária, científica e cultural;
- a Constituição garante o direito de acesso à informação e de pesquisa acadêmica;
- a Constituição proíbe a censura de qualquer natureza;
- a Constituição garante a inviolabilidade da intimidade, da privacidade, da honra e da imagem da pessoa; e
- a legislação infraconstitucional não pode restringir direitos fundamentais constitucionais.
Não obstante, o STF ressalvou que os direitos do biografado permanecem protegidos, podendo este, em caso de abuso da liberdade de expressão, pleitear:
- a reparação dos danos morais e materiais;
- a retificação de informações;
- o direito de resposta; e
- até mesmo a responsabilização penal do autor da obra, nas hipóteses legais.
Traduzindo a decisão do TJSP – Livro Pablo Marçal
A decisão proferida no Agravo de Instrumento nº 2093656-06.2025.8.26.0000 revela-se tecnicamente adequada e juridicamente coerente com os ditames constitucionais e o entendimento consolidado pelo STF.
De fato, a concessão de tutela de urgência para retirada prévia de obra literária do mercado configuraria verdadeira censura judicial, prática vedada pelo texto constitucional, que assegura, no art. 220, § 2º, que “é vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”.
Ademais, o art. 5º, IX, da Constituição estabelece que:
"é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença".
No tocante ao princípio da proporcionalidade, a decisão colegiada ponderou adequadamente os interesses em conflito.
Nesse sentido, é pertinente invocar a lição do ilustre constitucionalista Ingo Wolfgang Sarlet, para quem “no caso específico da liberdade de expressão, a tendência é de se atribuir a esta uma posição preferencial (preferred position), quando da resolução de conflitos com outros direitos fundamentais“.
Ademais, não se pode olvidar que o caso envolve figura pública que concorreu a cargo eletivo, circunstância que, segundo a jurisprudência dos Tribunais Superiores, justifica um escrutínio mais rigoroso por parte da imprensa e da sociedade.
Como bem assinala o Ministro Luís Roberto Barroso:
“quanto mais pública for a pessoa, maior a redução de sua esfera de privacidade”.
Outrossim, a demora do autor em buscar a tutela jurisdicional – cinco meses após a publicação da obra – constitui elemento objetivo que descaracteriza o periculum in mora, evidenciando a ausência do requisito da urgência, indispensável à concessão da medida antecipatória.
Por fim, cumpre ressaltar que a decisão não prejudica a posterior análise do mérito da causa, quando, após a devida instrução probatória, poderá ser verificada a ocorrência ou não de abuso no exercício da liberdade de expressão, ensejando, se for o caso, a devida reparação civil e até mesmo a responsabilização criminal do autor.
Para que seja publicada uma biografia NÃO é necessária autorização prévia do indivíduo biografado, das demais pessoas retratadas, nem de seus familiares. Essa autorização prévia seria uma forma de censura, não sendo compatível com a liberdade de expressão consagrada pela CF/88. As exatas palavras do STF foram as seguintes:
“É inexigível o consentimento de pessoa biografada relativamente a obras biográficas literárias ou audiovisuais, sendo por igual desnecessária a autorização de pessoas retratadas como coadjuvantes ou de familiares, em caso de pessoas falecidas ou ausentes”.
Caso o biografado ou qualquer outra pessoa retratada na biografia entenda que seus direitos foram violados pela publicação, terá direito à reparação, que poderá ser feita não apenas por meio de indenização pecuniária, como também por outras formas, tais como a publicação de ressalva, de nova edição com correção, de direito de resposta etc.
STF. Plenário. ADI 4815/DF, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgado em 10/6/2015 (Info 789).

Como o tema já foi cobrado em concursos:
(CESPE / CEBRASPE – 2023 – MPE-SC – Promotor de Justiça Substituto)
À luz do disposto na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), no Código Civil bem como da jurisprudência do STF, julgue o próximo item, relativos a pessoas, domicílio e bens.
Conforme a jurisprudência do STF, a publicação de uma biografia prescinde de autorização prévia do indivíduo biografado, das demais pessoas retratadas ou de seus familiares.
Gabarito: Certo
(FGV – TJPE – JUIZ SUBSTITUTO – 2024)
Abolitio, famoso cinegrafista, resolveu contar a vida de Arresto, craque do futebol, em um documentário. Em determinada altura da narrativa, menciona-se Precatório, goleiro que teria tomado um vergonhoso drible de Arresto.
Ambos, Arresto e Precatório, processam Abolitio, demandando indenização por danos morais por violação a seus direitos autorais e de imagem. Nesse caso:
a) ambos os pedidos são improcedentes;
b) procede o pleito de Arresto, desde que provado o prejuízo, mas não o de Precatório;
c) ambos os pedidos são procedentes, desde que haja prova do prejuízo sofrido por cada qual;
d) procede o pleito de Arresto, independentemente de prova do prejuízo diante do intuito lucrativo, mas não o de Precatório;
e) ambos os pedidos são procedentes dispensada prova do prejuízo sofrido por cada qual, diante do intuito lucrativo do documentário.
Gabarito: Letra A
livro pablo marçal
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