* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.
Entenda o caso
Uma médica conseguiu na Justiça do Trabalho o direito à licença-maternidade pelo nascimento de sua filha. Ela é lésbica e vive em união estável com sua companheira, que é enfermeira. Ambas trabalham para a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH).
A enfermeira gerou o bebê, enquanto a médica fez tratamento para também amamentá-lo. A empregadora (EBSERH) havia negado à médica o direito à licença-maternidade. No entanto, o Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região (BA) manteve a decisão da 37ª Vara do Trabalho de Salvador, concedendo o benefício à mãe.
A empresa alegou que não havia previsão legal para o caso e que o direito seria concedido apenas à mulher que gestou a criança. Segundo a EBSERH, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) prevê o direito à licença-maternidade apenas para a mãe gestante, ou para quem adotar ou tiver a guarda judicial de uma criança. Inclusive, em caso de adoção conjunta apenas uma das mães teria direito à licença.
Não satisfeita com a negativa, a médica ingressou com uma reclamação trabalhista, a fim de ver garantido o direito à licença-maternidade.
Decisão
A magistrada da vara do trabalho entendeu que o nascimento de uma criança em uma família formada por um casal do mesmo sexo garante os mesmos direitos e deveres de qualquer outro casal.
Isso inclui o reconhecimento de ambos como pais ou mães, com todas as responsabilidades legais, como o de cuidado, educação e proteção. E, como a união estável e o casamento homoafetivos são legalmente reconhecidos, não há porque negar o direito a licença-maternidade de ambas.
Houve recurso da empresa para o Tribunal Regional do Trabalho, que confirmou o entendimento da magistrada de 1º grau.
O TRT informou que considerou a não concessão da licença à mãe não gestante como discriminatória, já que negar o direito significa considerá-la “menos mãe” ou “mãe desnecessária”.
Ao final, tanto a médica quanto a enfermeira tiveram garantida, judicialmente, a licença-maternidade decorrente do nascimento do bebê.
Análise jurídica
A fruição da licença-maternidade não se limita à recuperação do parto, mas visa ao fortalecimento do vínculo afetivo com a criança. Protege, portanto, a própria família. A ausência de uma norma específica não pode ser impeditiva para o exercício da maternidade e dos direitos dela decorrentes.
A Constituição Federal garante, em seus artigos 6º e 7º, XVIII, a proteção à maternidade e à infância como direitos sociais.
CF/88 Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. ... Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: XVIII - licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de cento e vinte dias;
A Carta Magna continua indicando que a previdência social e a assistência social devem atender a proteção à maternidade e à família.
CF/88 Art. 201. A previdência social será organizada sob a forma do Regime Geral de Previdência Social, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, na forma da lei, a: II - proteção à maternidade, especialmente à gestante; ... Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos: I - a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice;
O Judiciário tem entendido que o tratamento desigual dado à mãe não gestante acaba por resultar em uma conclusão perpetuadora das desigualdades, o que deve ser corrigido pelo sistema de justiça.
A desembargadora que julgou o recurso no TRT disparou:
“As particularidades devem ser examinadas caso a caso, e não com um padrão preconceituoso de que todas as relações homossexuais são iguais”.
Deve ser considerada inaceitável uma interpretação normativa limitada dos direitos de casais homoafetivos. Conceder licença-maternidade apenas à mãe que gestou, quando ambas podem amamentar, cria uma distinção de direitos baseada em questões biológicas. Isso gera uma desigualdade jurídica e desconsidera a proteção à maternidade da outra mãe.
Tema no CNJ
A Resolução CNJ nº 492/2023 tornou obrigatórias as diretrizes do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero pelo Poder Judiciário, instituindo obrigatoriedade de capacitação de magistrados e magistradas, relacionada a direitos humanos, gênero, raça e etnia.
Esse Protocolo tem influenciado magistrados e magistradas de todo o país a implementarem os direitos das mulheres, o que inclui a concessão da licença-maternidade a mães não gestantes.
Entendimento do STF
A Suprema Corte se se pronunciou, no TEMA 1.072, sobre a possibilidade de concessão de licença-maternidade à mãe não gestante, em união estável homoafetiva, cuja companheira engravidou após procedimento de inseminação artificial.
A tese aprovada foi a seguinte:
Conforme ficou registrado na ementa, a licença-maternidade constitui benefício previdenciário destinado, em conjunto com outras previsões, a concretizar o direito fundamental social de proteção à maternidade e à infância.
A temática relaciona-se à inserção da mulher no mercado de trabalho, que conduziu os Estados a promoverem políticas públicas que conciliassem a vida familiar e o melhor interesse dos filhos com a atividade laboral, para o desenvolvimento pessoal e profissional da mulher.
A proteção à maternidade constitui medida de discriminação positiva, que reconhece a especial condição ou papel da mulher no que concerne à geração de filhos e aos cuidados da primeira infância, tendo como ratio essendi primordial o bem estar da criança recém-nascida ou recém-incorporada à unidade familiar.
O convívio próximo com a genitora na primeira infância é de fundamental importância para o desenvolvimento psíquico saudável da criança.
As normas constitucionais relativas ao direito à licença-maternidade à mãe não gestante em união homoafetiva não podem ser interpretadas fora do contexto social em que o ordenamento jurídico brasileiro se insere, impondo-se opção por interpretação que confira máxima efetividade às finalidades perseguidas pelo Texto Constitucional.
À luz da isonomia, não há que se falar exclusão da licença-maternidade às mães não gestantes em união homoafetiva. A Constituição Federal de 1988 concede à universalidade das mulheres a proteção constitucional à maternidade, independentemente do prévio estado de gravidez.
O reconhecimento da condição de mãe à mulher não gestante, em união homoafetiva, no que concerne à concessão da licença-maternidade, tem o condão de fortalecer o direito à igualdade material e, simbolicamente, de exteriorizar o respeito estatal às diversas escolhas de vida e configuração familiares existentes.
Conclusão
Podemos concluir, portanto, que o ordenamento jurídico relacionado a concessão da licença-maternidade deve ser interpretado dentro de um contexto voltado à necessidade de garantir aos casais homoafetivos a proteção à infância, à maternidade e à família. Isso inclui o direito da mãe não gestante de usufruir do benefício previdenciário em questão.
Tal conclusão encontra amparo, como vimos, em entendimento vinculante do Supremo Tribunal Federal (TEMA 1.072), o que obriga os demais juízes e tribunais a seguir essa normativa.
Tema instigante e atual, com boas chances de cair em prova da magistratura, ministério público ou defensoria. Portanto, muita atenção!
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