* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.
Entenda o caso
O humorista Léo Lins foi condenado a 8 anos e 3 meses de prisão por piadas preconceituosas feitas em um vídeo postado no canal dele no Youtube. A decisão é da 3ª Vara Criminal Federal de São Paulo.
O vídeo, intitulado “Perturbador”, contém comentários que zombavam de diversas minorias, e chegou a marca de três milhões de visualizações, segundo o Ministério Público Federal.
Em maio de 2023, o Tribunal de Justiça de São Paulo já havia determinado a retirada do especial de comédia “Perturbador”, da plataforma YouTube.
À época, Léo se pronunciou: “O show está fora do ar. Este processo tem consequências absurdas. Há muito mais em jogo. A justificativa usada para remover meu especial pode ser aplicada a 95% dos shows de stand-up. Estão igualando uma expressão artística a um ato criminoso”.
A condenação de Léo Lins acarretou:
- Pena de reclusão de 8 anos, 3 meses e 9 dias, inicialmente em regime fechado;
- Multa de 1.170 salários-mínimos de 2022, equivalente a cerca de R$ 1,4 milhão; e
- Indenização de R$ 303,6 mil por danos morais coletivos.
No famigerado vídeo, o humorista faz piadas violadoras dos direitos de minorias, tais como:

Um dos agravantes indicados pelo juiz foi o fato de as declarações terem sido feitas em um contexto de descontração, diversão ou recreação.
“Ao longo do show, o réu admitiu o caráter preconceituoso de suas anedotas, demonstrou descaso com a possível reação das vítimas e afirmou estar ciente de que poderia enfrentar problemas judiciais devido ao teor das falas”.
Para o magistrado, o humor não é um “passe-livre” para o cometimento e disseminação de crimes de ódio, preconceito ou discriminação.
Logo, o julgador considerou que o humorista Léo Lins cometeu crimes previstos no artigo 20, §2º, da lei 7.716/89 e no artigo 88, da lei 13.146/15, com agravantes por ter veiculado o conteúdo em redes sociais e no contexto artístico e cultural.
Crime do artigo 20, §2º, da lei 7.716/89
Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
Se o crime for cometido por intermédio dos meios de comunicação social, de publicação em redes sociais, da rede mundial de computadores ou de publicação de qualquer natureza: pena de reclusão, de dois a cinco anos, e multa.
Se o crime for cometido no contexto de atividades esportivas, religiosas, artísticas ou culturais destinadas ao público: pena de reclusão, de 2 a 5 anos, e proibição de frequência, por 3 anos, a locais destinados a práticas esportivas, artísticas ou culturais destinadas ao público, conforme o caso.
Crime do artigo 88, da lei 13.146/15
Praticar, induzir ou incitar discriminação de pessoa em razão de sua deficiência. Se o crime é cometido por intermédio de meios de comunicação social ou de publicação de qualquer natureza: pena de reclusão, de 2 a 5 anos, e multa.
Os crimes acima indicados foram instituídos como mecanismos de combate estatal ao racismo, discriminação e preconceito, cuja ELIMINAÇÃO consiste em um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, disposto no inciso IV do art. 3º da Carta Magna:
Art. 3º - Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
(...)
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
A Lei nº 7.716/89 é conhecida como a Lei do Crime Racial, pois ela define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor.
Já a Lei nº 14.532/2023 equiparou a injúria racial ao crime de racismo, alterando a Lei do Crime Racial e o Código Penal para tipificar como racismo a injúria racial. A mudança aprofunda a ação de combate ao racismo, criando elementos para interpretação dos contextos e evidenciando algumas modalidades de racismo que não eram evidentes.
O Brasil sofre desde a sua fundação com o racismo, em especial no período de vigência da escravidão, abolida oficialmente em 13 de maio de 1888, quando a princesa Isabel assinou a Lei Áurea.
Mas os efeitos nefastos da discriminação racial em nosso país se arrastam até hoje. Isso motiva e reforça a necessidade da luta contra essa prática que insiste em nos envergonhar, e que acaba se consolidando como um racismo estrutural.
Racismo estrutural
O que é o racismo estrutural? Vejamos:
O racismo estrutural consiste em uma cultura enraizada de discriminação racial por toda a sociedade, relegando os negros a uma situação de inferioridade social, econômica, política. Ou seja, é o racismo que está impregnado em todas as estruturas da sociedade, tais como instituições, consciente coletivo, arte, academia, esporte. O racismo estrutural não se manifesta, necessariamente, através de atos isolados de discriminação ou de preconceito, mas decorre de um processo histórico discriminatório que é alimentado pela falta de políticas públicas voltadas a inclusão de pessoas negras no protagonismo social.
Essa luta contra o racismo se intensificou após a Constituição Federal de 1988, quando houve a inclusão do crime de racismo como inafiançável e imprescritível.
CF/88
Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:
...
VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo;
...
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
...
XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;
Liberdade de expressão
O exercício da liberdade de expressão não é absoluto nem ilimitado, devendo se dar em um campo de tolerância e expondo-se às restrições que emergem da própria lei.
Assim, no caso de confronto entre o preceito fundamental de liberdade de expressão e os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica, devem prevalecer os últimos, destacou o magistrado na decisão.
Piada ou preconceito?
Em nota à imprensa, a defesa do comediante Léo destacou que recebeu a decisão condenatória com grande surpresa, tratando-se de um triste capítulo para a liberdade de expressão no Brasil, equiparando-se, a decisão, a um verdadeiro ato de censura.
O advogado comparou a pena do humorista à pena de condenados por tráfico de drogas, corrupção, homicídio. Ele termina a nota reforçando a confiança no Judiciário como guardião dos direitos e liberdades individuais, e indicando que apelará da decisão.
A defesa sustentou, ainda, que as piadas feitas durante o espetáculo foram no contexto do humor e sem intenção de ofender ou incitar preconceito.
Afirmou que se tratava de um personagem no palco e que muitas das pessoas citadas como vítimas inclusive acompanham seus shows e não se sentiram ofendidas. O humorista também argumentou que o humor tem como objetivo proporcionar risos e aliviar dores, e que não houve dolo na prática dos atos.
A grande discussão aqui é saber se a fala de Léo Lins se insere dentro da categoria jocosa, como mera piada ou brincadeira, ou se, de fato, o discurso consistiu em difamar a imagem e a honra de minorias vulneráveis.
Inclusive, é importante lembrar que a nossa Constituição garante o direito à liberdade de expressão:
CF/88
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes...
IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato...
Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição...
§ 2º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.
Mas não existem direitos absolutos. Qualquer direito deve observar as balizas instituídas pelo próprio ordenamento jurídico. A liberdade de expressão, integrante das liberdades públicas, é cláusula pétrea, mas não se pode exercê-la de maneira a caluniar, difamar, injuriar, humilhar o destinatário da mensagem, ou mesmo para incitar a coletividade ao cometimento de crimes.
Tema sempre instigante, polêmico, e adequado para se cobrar em provas de direito constitucional, direito penal e direitos humanos. Portanto, ficar atento.
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