* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.
O Supremo Tribunal Federal acaba de decidir que é constitucional lei municipal que obrigue a transmissão, ao vivo e pela internet, das licitações do legislativo e do executivo (RE 1.498.771 e RE 1.473.941).
RE 1.498.771: a origem desse recurso é uma ação direta de inconstitucionalidade estadual, ajuizada pelo Prefeito de Itapecerica da Serra perante o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), em face da lei municipal nº 2.894/2021. Tal lei obriga a transmissão, ao vivo e via internet, das licitações do Poder Legislativo e Executivo, no Município.
O TJSP assentou que o diploma legal não padece de vício formal, haja vista dispor sobre matéria de iniciativa concorrente para apresentação do projeto. Todavia, sob o pretexto de violação ao princípio da separação de poderes e da reserva da administração, assentou que o ato normativo invade competência exclusiva do Poder Executivo. Consignou ainda a usurpação da competência da União para legislar sobre licitações e contratos.
RE 1.473.941: a origem desse recurso é uma ação direta de inconstitucionalidade estadual, ajuizada pelo Prefeito de Ilhabela perante o TJSP, em face da lei municipal nº 1.577/2023. Essa lei institui a transmissão ao vivo, via internet, das licitações dos Poderes Executivo e Legislativo do Município de Ilhabela e dá outras providências.
O Tribunal de Justiça de São Paulo assentou que o ato normativo municipal invade competência exclusiva do Poder Executivo. Consignou ainda a usurpação da competência da União para legislar sobre licitações e contratos
Ao final, o Supremo Tribunal Federal deu provimento aos recursos extraordinários, de modo a considerar tanto a lei municipal de Ilhabela quanto a de Itapecerica da Serra constitucionais, prestigiando os princípios da transparência e da publicidade.
Fundamentos utilizados pelo Tribunal de Justiça de São Paulo para declarar as leis municipais inconstitucionais
Violação ao princípio da separação dos Poderes
O Poder Legislativo, a pretexto de dispor sobre publicidade, não pode avançar sobre matéria que é de competência exclusiva do Poder Executivo, ou seja, matéria sujeita à reserva da administração.
Não se concebe que o legislativo, com base no princípio da transparência, interfira em atos de gestão administrativa, impondo ao Executivo a obrigatoriedade de transmissão ao vivo, por meio da internet, das sessões públicas de licitações no site oficial, bem como pela rede social e canal oficial de comunicação.
Essa exigência, por ser específica e sem qualquer margem de escolha para o administrador, acaba implicando em clara interferência em atos de gestão, ofendendo o princípio da separação dos poderes.
O princípio constitucional da reserva de administração impede a ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência administrativa do Poder Executivo.
Usurpação de competência da União para legislar sobre licitação e contratos
As leis impugnadas, embora tenham sido editadas com enfoque no princípio da publicidade, na verdade estabelecem regras sobre licitação.
Ao exigir transmissão ao vivo da sessão, sob responsabilidade dos membros da comissão (ou pregoeiro) e do poder licitante, as normas indicam como esse procedimento (público) deve ser conduzido no município.
Sem considerar que, nos termos do art. 22 da Constituição Federal, compete privativamente à União legislar sobre “normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios” (inciso XXVII).
CF/88
Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
...
XXVII - normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, § 1°, III;
As regras de competência legislativa traduzem verdadeiro instrumento de calibração do pacto federativo. Ou seja, trazem como normas centrais da Constituição Federal, reproduzidas, ou não na Estadual, incidirão sobre a ordem local por força do princípio da simetria.
O intuito é conservar o modelo federalista e os padrões estruturantes do Estado. Daí a possibilidade de utilização de dispositivos dessa natureza (centrais e estruturantes) no controle abstrato de normas municipais.
Além do mais, a União editou a Lei nº 14.133/2021, dispondo, no § 2º de seu art. 17, que nas licitações presenciais a sessão pública deve ser registrada em ata e gravada em áudio e vídeo, sem qualquer referência à necessidade de transmissão ao vivo.
Lei nº 14.1332021
Art. 17...
§ 2º As licitações serão realizadas preferencialmente sob a forma eletrônica, admitida a utilização da forma presencial, desde que motivada, devendo a sessão pública ser registrada em ata e gravada em áudio e vídeo.
Portanto, a matéria tratada na norma municipal (envolvendo transparência das licitações) já foi objeto de regramento (em âmbito nacional). Fixou-se a forma de condução do certame, nesse ponto sem lacunas ou espaços para complementações, exatamente para garantir o mínimo de unidade normativa almejado pela Constituição Federal.
Normas locais

Por se tratar de matéria de competência privativa da União (CF, art. 22), o entendimento é de que não há possibilidade de criação de norma local com conteúdo diverso daquele previsto pela legislação federal, o que significa que os dispositivos impugnados, no caso, não podem se afastar da diretriz do mencionado artigo 17, § 2º, da Lei nº 14.133/2021, estabelecendo no município seu próprio modelo de transparência, mediante transmissão ao vivo das sessões de licitação.
Decorre daí o reconhecimento de que as normas locais desbordaram dos limites da mera suplementação (CF, art. 30, II) e do interesse local (CF, art. 30, I), ao fixar critério (próprio e autônomo) de publicidade das licitações, criando obrigações que não constam da Lei nº 14.133/2021.
Fundamentos utilizados pelo SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL para declarar as leis municipais constitucionais
Aplicação dos princípios constitucionais da transparência e da publicidade
Os princípios da transparência e da publicidade possibilitam o conhecimento e o controle social dos atos administrativos. Trata-se, portanto, de mera regulamentação do formato de publicidade das licitações realizadas no âmbito municipal.
A transmissão de licitações por meio digital configura-se como mais um elemento a assegurar a transparência e o controle social sobre os atos administrativos. Prestigia-se, assim, os princípios constitucionais da administração pública, especialmente os da publicidade, da legalidade e da moralidade, previstos no art. 37 da Constituição Federal.
Ao estabelecer tal procedimento, não há apenas a facilitação do acesso da população às informações, promovendo um ambiente de fiscalização mais acessível e democrático, mas também o auxílio à prevenção de eventuais práticas ilícitas.
Reforça-se, com isso, o compromisso com a eficiência e com a impessoalidade, ao possibilitar um acompanhamento público e transparente de cada etapa do processo.
Inexistência de invasão de competência legislativa da União
A competência da União cinge-se à edição de normas gerais sobre a matéria. Assim, compete aos Estados e Municípios legislar de forma complementar, de modo a atender às particularidades locais.
Inexistência de violação à separação dos Poderes
Não há qualquer disposição tendente a alterar a estrutura ou a organização de órgãos da Administração municipal, muito menos de alterar os regime jurídico dos servidores do Executivo. Há, de fato, apenas a regulamentação da publicidade das licitações realizadas no âmbito municipal.
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