Lei Geral do Licenciamento Ambiental: a mãe de todas as boiadas?

Lei Geral do Licenciamento Ambiental: a mãe de todas as boiadas?

* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.

O Senado aprovou um projeto de lei que cria a Lei Geral do Licenciamento Ambiental (PL 2.159/2021).

A proposta se arrasta no Congresso há mais de 20 anos. Agora ela segue de volta para a Câmara, já que os senadores fizeram modificações em relação à versão dos deputados. O placar foi de 54 votos a favor e 13 votos contrários.  

Defensores do texto comemoram a modernização e a simplificação do procedimento. Por outro lado, os ambientalistas tratam a medida como um duro golpe contra o meio ambiente, chamando o projeto de “Mãe de todas as boiadas”.

Uma das relatoras do projeto, a senadora Tereza Cristina, disparou:

“O marco legal a ser criado pela proposição harmonizará e simplificará o processo de licenciamento ambiental em todo o País. Isso é essencial para reduzir a burocracia e tornar mais ágil a autorização de empreendimentos, ao mesmo tempo em que garante a proteção do meio ambiente”.

Nota do Ministério do Meio Ambiente

O Ministério do Meio Ambiente, em nota à imprensa1, destacou que o Projeto de Lei (PL) 2.159/2021, que dispõe sobre o licenciamento ambiental, representa desestruturação significativa do regramento existente sobre o tema e representa risco à segurança ambiental e social no país.

Além disso, afronta diretamente a Constituição Federal, que no art. 225 garante aos cidadãos brasileiros o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, com exigência de estudo prévio de impacto ambiental para instalação de qualquer obra ou atividade que possa causar prejuízos ambientais.

O texto também violaria o princípio da proibição do retrocesso ambiental, que vem sendo consolidado na jurisprudência brasileira, segundo o qual o Estado não pode adotar medidas que enfraqueçam direitos. Contraria, ainda, decisões do Supremo Tribunal Federal que reconheceram a inconstitucionalidade da Licença por Adesão e Compromisso para atividades de médio impacto ambiental.

Ao permitir que a definição de atividades sujeitas ao licenciamento ambiental ocorra sem coordenação nacional e fora do âmbito de órgãos colegiados, como o Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) e os Conselhos Estaduais e Municipais, o projeto pode promover a ação descoordenada entre União, Estados e Municípios no processo de licenciamento ambiental e desarticular os mecanismos de participação social.

A proposta terá impacto negativo para a gestão socioambiental, além de provocar, possivelmente, altos índices de judicialização, o que tornará o processo de licenciamento ambiental mais moroso e oneroso para a sociedade e para o Estado brasileiro.

Alterações vistas como retrocesso pelos ambientalistas2

1º) Dispensa de licenciamento ambiental para atividades agropecuárias

A proposta admite que os empreendedores questionem o estabelecimento de condicionantes ambientais de impactos indiretos com base na ausência de “nexo causal comprovado” ou por não terem “poder de polícia” sobre as ações de terceiros.

A comprovação do nexo causal direto pode dificultar ou inviabilizar a imposição de medidas preventivas e compensatórias. Tem-se como exemplo o caso da barragem de Fundão, em Mariana (MG), em que a dificuldade em atribuir responsabilidade por impactos indiretos comprometeu a reparação de danos às comunidades afetadas e ao meio ambiente.

A possibilidade de que o empreendedor questione condicionantes sob o argumento de não ter ingerência sobre terceiros ou poder de polícia traz uma ampla gama de possibilidades de questionamentos com o potencial de gerar dúvidas, resultando em insegurança jurídica e maiores prazos para o processo.

O PL prevê, ainda, que atividades como agricultura e pecuária tenham a dispensa de licenciamento ambiental caso estejam inscritas no Cadastro Ambiental Rural (CAR) ou aderidas ao Programa de Regularização Ambiental (PRA).

Esses instrumentos não avaliam impactos como uso excessivo de água, poluição do solo e pressão sobre áreas de preservação, podendo legitimar danos significativos sem análise técnica.

2º) Licença por Adesão e Compromisso (LAC)

Um dos pontos mais críticos do PL é a aplicação da Licença por Adesão e Compromisso (LAC), modalidade simplificada de licenciamento baseada na autodeclaração do empreendedor.

A proposta permite que empreendimentos de médio porte e potencial poluidor utilizem esse mecanismo sem a exigência de estudos prévios de impacto e sem a definição de condicionantes ambientais específicas.

Na prática, o texto permitiria o uso da LAC para um percentual expressivo de empreendimentos que atualmente são licenciados. Além disso, o monitoramento desses empreendimentos ocorreria por amostragem, dispensando a necessidade de fiscalização, pelo órgão ambiental, de todos os empreendimentos licenciados por essa modalidade.

A proposta também prevê a aplicação da LAC a projetos como duplicação de rodovias e dragagens, inclusive em regiões sensíveis e habitadas por comunidades vulneráveis, que podem ser autorizados sem qualquer análise técnica prévia, aumentando o risco de danos ambientais e sociais.

Outra questão alarmante é a utilização da LAC como instrumento de regularização de empreendimentos em operação sem qualquer licença ambiental.

Para o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, a LAC deveria ser adotada somente para projetos de pequeno porte, baixo impacto e que não envolvam áreas sensíveis, sempre com verificação do Relatório de Caracterização do Empreendimento (RCE) por parte do órgão licenciador.

3º) Licença Ambiental Especial

O texto propõe a criação de um novo tipo de licenciamento, o Licenciamento Ambiental Especial — uma licença especial que seria liberada por decreto do governo. Funcionaria da seguinte forma:

  • Alguns empreendimentos poderão ser elegíveis para o Licenciamento Ambiental Especial;
  • O Conselho do Governo — um órgão político — definiria quais obras e projetos poderiam ser elegíveis para esse novo modelo de licenciamento;
  • O Conselho levaria em conta se os empreendimentos são estratégicos para o país; e
  • A licença tem que sair em 12 meses, mas rápido do que o trâmite para o licenciamento normal.

4º) Áreas protegidas

A proposta retira o status de área protegida a Terras Indígenas e Territórios Quilombolas ainda não oficializadas. Isso desprotegeria inúmeras áreas habitadas por povos originários que ainda estão em processo de demarcação.

Portanto, a proposta determina que a manifestação dos órgãos competentes pela proteção de Terras Indígenas ocorreria somente em relação a áreas homologadas e territórios quilombolas já titulados.

A não conclusão do processo de reconhecimento formal dos territórios indígenas ou quilombolas pelo Estado não significa que neles não existam comunidades que devem ser ouvidas, conforme determina a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário.

O descumprimento desse direito pode gerar questionamentos judiciais que provocarão atrasos e conflitos para o processo de licenciamento.

5º) Sítios arqueológicos

O texto aprovado prevê que o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) seja consultado apenas quando existirem bens identificados nas áreas a serem exploradas, o que prejudicaria os sítios arqueológicos, haja vista que vários deles encontram-se soterrados.

Além do mais, o órgão licenciador não precisará levar em consideração análises e conclusões de autoridades especializadas envolvidas no processo, como o Iphan. Isso tornaria sem validade possíveis apontamentos negativos sobre a exploração de áreas históricas.

Análise jurídica 

Direito fundamental

O Supremo Tribunal Federal reconhece o meio ambiental como direito fundamental. Isso porque o meio ambiente está intimamente relacionado com a ideia da dimensão ecológica da dignidade da pessoa humana.

Em decorrência dessa constatação, a atividade econômica não pode ser exercida em desarmonia com os princípios destinados a tornar efetiva a proteção ao meio ambiente, conforme artigo 170, da CF/88.

O art. 10, da Lei n. 6.938/1981, estabelece que todas as atividades e empreendimentos que sejam potencialmente poluidores ou capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental, dependerão de licenciamento ambiental.

A incolumidade do meio ambiente não pode ser comprometida por interesses empresariais nem ficar dependente de motivações de índole meramente econômica, ainda mais se tiver presente que a índole econômica, considerada a disciplina constitucional que a rege, está subordinada, dentre outros princípios gerais, àquele que privilegia a “defesa do meio ambiente” (CF, art. 170, VI), que traduz conceito amplo e abrangente das noções de meio ambiente natural, meio ambiente cultural, meio ambiente artificial (espaço urbano) e meio ambiente laboral.

Licenciamento ambiental

Nesse contexto, entra em cena o licenciamento ambiental como um dos instrumentos mais importantes e eficazes de tutela do meio ambiente.

Licenciamento Ambiental:
Como aponta Marcelo Abelha Rodrigues “A licença ambiental é o ato administrativo complexo que resulta de um procedimento administrativo com amplo contraditório (licenciamento), no qual são realizados estudos ambientais justamente para embasar a concessão ou a denegação do pedido”.

O licenciamento ambiental é um procedimento administrativo que deve ser público, fundamentado, imparcial, observando os princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal.

A licença ambiental, como licença que é, se constitui com um ato administrativo vinculado, unilateral e dotado de definitividade, estando o Poder Público atrelado a verificação ou não das exigências legais. Isso não afasta o poder da Administração de ponderar o equilíbrio entre desenvolvimento e defesa do meio ambiente.

No bojo do licenciamento podemos encontrar as licenças ambientais. A legislação federal prevê três tipos básicos de licenças ambientais. Vejamos:

Licença prévia: concedida na fase preliminar do planejamento do empreendimento ou atividade aprovando sua localização e concepção, atestando a viabilidade ambiental e estabelecendo os requisitos básicos e condicionantes a serem atendidos nas próximas fases de sua implementação (art. 8º, I, da Resolução CONAMA 237/97);

Licença de instalação: autoriza a instalação do empreendimento ou atividade de acordo com as especificações constantes dos planos, programas e projetos aprovados, incluindo as medidas de controle ambiental e demais condicionantes, da qual constituem motivo determinante (art. 8º, II, da Resolução CONAMA 237/97); e

Licença de operação: autoriza a operação da atividade ou empreendimento, após a verificação do efetivo cumprimento do que consta das licenças anteriores, com as medidas de controle ambiental e condicionantes determinados para a operação (art. 8º, III, da Resolução CONAMA 237/97).

Federalismo cooperativo

O Supremo Tribunal Federal tem ressaltado a importância de consolidar o equilíbrio federativo em matéria ambiental, com a intenção de fortalecer não apenas a autonomia dos entes da Federação, como atender às peculiaridades regionais e locais. Assim, se mais protetivas ao meio ambiente, prevalecem as normas estaduais e municipais. 

O federalismo cooperativo é particularmente efetivo em um país como o Brasil, uma vez que, detentor de um território amplo e de diferentes biomas de relevância substancial ao planeta, tem neste modelo a possibilidade de proteger e preservar o meio ambiente de maneira muito mais efetiva, pois os entes subnacionais, além de compartilharem competências, podem editar normas voltadas para as especificidades de cada região. Tal possibilidade, no entanto, limita-se pela moldura estabelecida pelas normas federais.

O STF decidiu, portanto, que o processo decisório para a concessão do licenciamento ambiental é complexo e demanda a análise de vários fatores. Por esse motivo, a simplificação de seu procedimento, ou ainda o estabelecimento de procedimentos específicos, é excepcional.

Ainda segundo jurisprudência do STF, a licença simplificada só é legítima em atividades e empreendimentos de pequeno potencial degradador, tendo em vista que o risco ao meio ambiente é diminuído.

Importante acompanhar a tramitação do PL que, se aprovado, com toda certeza será objeto de impugnação no Supremo Tribunal Federal.


  1. MINISTÉRIO do Meio Ambiente e Mudança do Clima. Projeto de Lei do Licenciamento Ambiental desestrutura regramento e viola Constituição Federal. Disponível em: <https://www.gov.br/mma/pt-br/noticias/projeto-de-lei-do-licenciamento-ambiental-desestrutura-regramento-e-viola-constituicao-federal>. ↩︎
  2. MINISTÉRIO do Meio Ambiente e Mudança do Clima. Projeto de Lei do Licenciamento Ambiental desestrutura regramento e viola Constituição Federal. Disponível em: <https://www.gov.br/mma/pt-br/noticias/projeto-de-lei-do-licenciamento-ambiental-desestrutura-regramento-e-viola-constituicao-federal>. ↩︎

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