Olá, corujas! Em 01 de agosto de 2023, o Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento da ADPF n. 779, decidindo por unanimidade pela inconstitucionalidade do uso da tese da legítima defesa da honra em casos de feminicídio, abrangendo as fases processual e pré-processual, inclusive perante o Tribunal do Júri, sob pena de nulidade do ato e do julgamento. Vejamos as teses firmadas:
- firmar o entendimento de que a tese da legítima defesa da honra é inconstitucional, por contrariar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero;
- (ii) conferir interpretação conforme à Constituição aos arts. 23, inciso II, e 25, caput e parágrafo único, do Código Penal e ao art. 65 do Código de Processo Penal, de modo a excluir a legítima defesa da honra do âmbito do instituto da legítima defesa e, por consequência,
- (iii) obstar à defesa, à acusação, à autoridade policial e ao juízo que utilizem, direta ou indiretamente, a tese de legítima defesa da honra (ou qualquer argumento que induza à tese) nas fases pré-processual ou processual penais, bem como durante o julgamento perante o tribunal do júri, sob pena de nulidade do ato e do julgamento;
- (iv) diante da impossibilidade de o acusado beneficiar-se da própria torpeza, fica vedado o reconhecimento da nulidade, na hipótese de a defesa ter-se utilizado da tese com esta finalidade.
- (v) conferir interpretação conforme à Constituição ao art. 483, III, § 2º, do Código de Processo Penal, para entender que não fere a soberania dos vereditos do Tribunal do Júri o provimento de apelação que anule a absolvição fundada em quesito genérico, quando, de algum modo, possa implicar a repristinação da odiosa tese da legítima defesa da honra.
Em determinadas situações, o Direito reproduz, reafirma, corrobora as dinâmicas de opressão social existentes. Atualmente, não podemos prescindir de uma análise jurídica por meio de lentes diferenciadas, permitindo-se a superação de fatores de discriminação e comportamentos culturalmente enraizados em nossa tradição jurídica.
Algumas práticas discriminatórias não são nem mesmo percebidas. Na interpretação do Direito, em virtude de uma “cegueira de gênero” ainda presente em nossa sociedade, culmina-se em seletiva indicação de padrões morais. Felizmente, inúmeros doutrinadores e nossos Tribunais vêm desafiando paradigmas tradicionais discriminatórios, alcançando soluções libertadoras para grupos vulneráveis historicamente subalternizados.
Essa evolução no pensamento doutrinário pode ser relacionada com o avanço doutrinário envolvendo o princípio da igualdade. Com o advento do Estado Liberal, surge uma feição puramente formal de igualdade (igualdade formal). Na ideia de igualdade formal, nota-se uma perspectiva negativa, com os indivíduos sendo submetidos ao império da lei geral e abstrata, desconsiderando assim as desigualdades existentes no plano fático. Muitas vezes, esse tratamento objetivo, formal, abstrato acaba sendo seletivo de indicação de padrões morais e hierarquias raciais e de gênero.
Com o passar do tempo, notou-se a existência de uma grave crise econômica, concentração de renda e forte desigualdade social no Estado liberal. Tais fatores deram ensejo a criação do denominado Estado Social, que pregava maior intervenção do Estado na sociedade, na econômica, etc. O conceito de igualdade, no Estado Social, sofre alterações substanciais surgindo a ideia de igualdade material. Assim, contempla-se a ideia de que a igualdade substancial não se restringe apenas ao plano jurídico-formal, mas busca uma atuação estatal positiva, almejando promover políticas públicas em prol de um tratamento efetivamente igualitário. Trata-se de importante avanço para a promoção dos direitos humanos dos grupos vulneráveis.
Entrementes, atualmente, devemos ir além. Como se sabe, as barbáries do nazifascimo, onde destacamos o holocausto dos judeus, fez com que a comunidade jurídica e internacional não ficasse anestesiada diante dos nefastos acontecimentos, que muitas vezes possuíam amparo na legislação – viés positivista. Nesse sentido, apontamos a passagem de um Estado Social para um Estado Democrático Constitucional de Direito, no qual a democracia é vista não só como o direito da maioria, como também o respeito aos direitos fundamentais da minoria, sempre pautando-se na ideia de dignidade da pessoa humana como um valor supremo. Seguindo essa linha de raciocínio, destaca-se mais um avanço no conceito de igualdade, a qual passa a ser formal, material e também como reconhecimento. O referido conceito é verificado no voto do Ministro Luíz Roberto Barroso, na ADC n. 41: “Igualdade como reconhecimento, significando o respeito devido às minorias, sua identidade e suas diferenças, sejam raciais, religiosas, sexuais ou quaisquer outras”.
Com base na dignidade da pessoa humana e no princípio da igualdade, o Supremo Tribunal Federal, na ADPF n. 779, julgou inconstitucional a utilização da tese da legítima defesa da honra. Inicialmente, vejamos as teses firmadas no referendo da medida cautelar conferida na referida ação:
Teses firmadas:
(I) firmar o entendimento de que a tese da legítima defesa da honra é inconstitucional, por contrariar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF), da proteção à vida e da igualdade de gênero (art. 5º, caput, da CF);
(II) conferir interpretação conforme à Constituição aos arts. 23, inciso II, e 25, caput e parágrafo único, do Código Penal e ao art. 65 do Código de Processo Penal, de modo a excluir a legítima defesa da honra do âmbito do instituto da legítima defesa e, por consequência,
(III) obstar à defesa que sustente, direta ou indiretamente, a legítima defesa da honra (ou qualquer argumento que induza à tese) nas fases pré-processual ou processual penais, bem como no julgamento perante o tribunal do júri, sob pena de nulidade do ato e do julgamento.
Posteriormente, em 01 de agosto de 2023, o Supremo Tribunal Federal concluiu o referido julgamento, decidindo por unanimidade pela inconstitucionalidade do uso da tese da legítima defesa da honra em casos de feminicídio, abrangendo as fases processual e pré-processual, inclusive perante o Tribunal do Júri, sob pena de nulidade do ato e do julgamento.
Importante consignar que, confirmando o entendimento em sede cautelar, acrescentou-se que não há que se falar em violação da soberania dos vereditos, uma vez que não fere a soberania dos vereditos do Tribunal do Júri o provimento de apelação que anule a absolvição fundada em quesito genérico, quando, de algum modo, possa implicar a repristinação da odiosa tese da legítima defesa da honra. Por fim, destacou a Suprema Corte, instrumentalizando o princípio da boa-fé objetiva – subprincípio do non venire contra factum proprium – que diante da impossibilidade de o acusado beneficiar-se da própria torpeza, fica vedado o reconhecimento da nulidade, na hipótese de a defesa ter-se utilizado da tese com esta finalidade. Sublinhe-se a decisão final:
O Tribunal, por unanimidade, julgou integralmente procedente o pedido formulado na presente arguição de descumprimento de preceito fundamental para: (i) firmar o entendimento de que a tese da legítima defesa da honra é inconstitucional, por contrariar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF), da proteção à vida e da igualdade de gênero (art. 5º, caput, da CF); (ii) conferir interpretação conforme à Constituição aos arts. 23, inciso II, e 25, caput e parágrafo único, do Código Penal e ao art. 65 do Código de Processo Penal, de modo a excluir a legítima defesa da honra do âmbito do instituto da legítima defesa e, por consequência, (iii) obstar à defesa, à acusação, à autoridade policial e ao juízo que utilizem, direta ou indiretamente, a tese de legítima defesa da honra (ou qualquer argumento que induza à tese) nas fases pré-processual ou processual penais, bem como durante o julgamento perante o tribunal do júri, sob pena de nulidade do ato e do julgamento; (iv) diante da impossibilidade de o acusado beneficiar-se da própria torpeza, fica vedado o reconhecimento da nulidade, na hipótese de a defesa ter-se utilizado da tese com esta finalidade. Por fim, julgou procedente também o pedido sucessivo apresentado pelo requerente, de forma a conferir interpretação conforme à Constituição ao art. 483, III, § 2º, do Código de Processo Penal, para entender que não fere a soberania dos vereditos do Tribunal do Júri o provimento de apelação que anule a absolvição fundada em quesito genérico, quando, de algum modo, possa implicar a repristinação da odiosa tese da legítima defesa da honra.
Indubitavelmente, portanto, trata-se de importante avanço jurisprudencial que garante o direito a dignidade e a igualdade de gênero, retirando-se a mulher de uma situação de inferioridade. Não podemos coadunar com qualquer tese que possa desconstruir a mulher ou violar sua dignidade. Por fim, destaca-se a importância de uma lente privilegiada relacionada ao Direito Processual Feminista e a Criminologia Feminista para que se possa alcançar uma compreensão efetiva da realidade das mulheres, evitando-se que traduções errôneas da realidade sejam sobrepostas no Direito.
Confira mais detalhes, no vídeo abaixo:
Por: Marcos Vinícius Manso Lopes Gomes. Defensor Público do estado de São Paulo. Professor de Direito Constitucional do Estratégia Carreiras Jurídicas.
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