Juiz inquisidor: STJ anula audiência por protagonismo excessivo do magistrado na inquirição

Juiz inquisidor: STJ anula audiência por protagonismo excessivo do magistrado na inquirição

Prof. Gustavo Cordeiro

Sexta Turma reafirma limites do sistema acusatório e declara nulidade por violação à imparcialidade e ao contraditório

Introdução

A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, em novembro de 2025, proferiu decisão de grande relevância para a compreensão dos limites da atuação judicial na produção da prova oral. O REsp 2.214.638-SC, de relatoria do Ministro Sebastião Reis Júnior, declarou a nulidade da audiência de instrução em razão da postura inquisitorial adotada pela magistrada durante a inquirição de testemunhas e o interrogatório do réu.

O julgado reafirma um pilar do processo penal brasileiro pós-reforma de 2008: o juiz não é protagonista na produção da prova. Sua atuação deve ser residual e complementar, sob pena de comprometer a imparcialidade — “viga mestra da jurisdição”, nas palavras do próprio STJ — e violar o contraditório e a paridade de armas.

Para candidatos de concursos jurídicos, o tema é recorrente e de alta incidência: envolve sistema acusatório, cross-examination, arts. 188 e 212 do CPP, princípios constitucionais do processo penal e causa de nulidade. Vamos ao estudo detalhado.

O caso concreto

No caso analisado pelo STJ, a defesa alegou que a magistrada de primeiro grau havia assumido postura excessivamente ativa durante a audiência de instrução. Segundo os autos, a juíza não se limitou a complementar a inquirição realizada pelas partes, mas protagonizou a produção da prova, muitas vezes induzindo respostas das testemunhas e adotando conduta investigativa durante o interrogatório do réu.

O Tribunal de origem havia rejeitado a alegação de nulidade, sob o fundamento de ausência de prejuízo. O STJ, contudo, reformou a decisão: o prejuízo é evidente quando a condenação se baseia em provas produzidas sem o crivo de um contraditório equilibrado.

Desenvolvimento técnico: o sistema acusatório e os limites do juiz

A reforma de 2008 e o modelo de inquirição direta

A Lei 11.690/2008 promoveu alteração substancial no art. 212 do Código de Processo Penal, consagrando o modelo de inquirição direta, também conhecido como cross-examination. Antes da reforma, as perguntas às testemunhas eram formuladas pelo juiz, e as partes apenas requeriam esclarecimentos. O sistema era presidencialista.

Com a nova redação, as perguntas passaram a ser formuladas prioritariamente pelas partes, diretamente às testemunhas, cabendo ao juiz apenas complementar a inquirição sobre pontos não esclarecidos:

Art. 212, CPP: "As perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida."

Parágrafo único: "Sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição."

O objetivo da norma é claro: fortalecer o contraditório, garantir a paridade de armas e resguardar a imparcialidade do julgador.

O interrogatório do réu e o art. 188 do CPP

juiz

Quanto ao interrogatório, o art. 188 do CPP estabelece que, após proceder ao interrogatório, o juiz indagará das partes se restou algum fato para ser esclarecido, formulando as perguntas correspondentes se o entender pertinente e relevante.

Embora o juiz conduza o ato, sua finalidade primordial é ser meio de defesa, oportunidade para o acusado apresentar sua versão dos fatos. O interrogatório não pode ser desvirtuado em instrumento de busca inquisitorial de prova contra o réu.

Os limites da iniciativa probatória do juiz

O STJ, no julgado em análise, sistematizou com precisão os contornos da atuação judicial:

ATUAÇÃO PERMITIDAATUAÇÃO VEDADA
Complementar a inquirição das partesProtagonizar a produção da prova
Esclarecer pontos obscuros ou duvidososSubstituir as partes na formulação de perguntas
Indeferir perguntas que induzam respostaFormular perguntas que induzam resposta
Manter a ordem e conduzir a audiênciaAssumir postura investigativa ou acusatória
Buscar a verdade real de forma residualSuprir a inércia do Ministério Público na produção de prova

O ponto central é: a iniciativa probatória do juiz não está eliminada, mas deve ser residual, complementar e sempre voltada à preservação da imparcialidade. Quando o magistrado assume as funções do órgão acusador, a estrutura acusatória do processo é violada.

Fundamentos da nulidade reconhecida

O STJ fundamentou a declaração de nulidade em três pilares:

Primeiro: violação da imparcialidade. A imparcialidade é a “viga mestra da jurisdição”. Quando o juiz assume protagonismo na produção da prova, especialmente com postura investigativa, compromete-se irremediavelmente a equidistância que deve manter em relação às partes.

Segundo: violação do contraditório e da paridade de armas. O sistema acusatório pressupõe equilíbrio entre acusação e defesa. Se o juiz atua como “segundo acusador”, a defesa enfrenta desvantagem estrutural que compromete a própria formatação do processo.

Terceiro: prejuízo manifesto. Ao contrário do que entendeu o Tribunal de origem, o prejuízo não precisa ser demonstrado casuisticamente quando a condenação se baseia em provas produzidas sem contraditório equilibrado. A prova que embasou o édito condenatório foi coligida em ato processual viciado — o prejuízo é inerente.

A tese firmada pelo STJ

São nulos a inquirição de testemunhas e o interrogatório protagonizados por magistrado que adota postura inquisitorial, em lugar da atuação residual e complementar necessária para preservar a imparcialidade e o contraditório.

(REsp 2.214.638-SC, 6ª Turma, j. 4/11/2025)

A consequência prática: nulidade dos atos judiciais praticados a partir da audiência de instrução, com necessidade de renovação do ato perante outro juízo, em respeito ao princípio do juiz natural e à garantia de imparcialidade.

Como o tema pode aparecer em concursos

Este julgado tem potencial de cobrança em múltiplas frentes: (i) interpretação do art. 212 do CPP e do sistema de cross-examination; (ii) limites da iniciativa probatória do juiz no processo penal; (iii) nulidades processuais e prejuízo; (iv) princípios do sistema acusatório; (v) interrogatório como meio de defesa.

Bancas como CESPE/CEBRASPE, FCC, VUNESP e FGV frequentemente exploram a tensão entre busca da verdade real e imparcialidade judicial, especialmente em provas de Magistratura, Ministério Público e Defensoria Pública.

Questão simulada

(Simulado – Estilo CESPE/CEBRASPE) Durante audiência de instrução em ação penal por furto qualificado, o magistrado, após a inquirição das testemunhas pelas partes, formulou diversas perguntas complementares. Em seguida, no interrogatório do réu, o juiz conduziu o ato de forma incisiva, buscando esclarecer contradições entre a versão apresentada pelo acusado e os depoimentos testemunhais, tendo formulado mais de vinte perguntas que não haviam sido suscitadas pela acusação. O réu foi condenado com base, principalmente, nas contradições evidenciadas durante o interrogatório. A defesa apelou alegando nulidade da audiência por violação ao sistema acusatório. À luz da jurisprudência do STJ, assinale a alternativa correta:

A) Não há nulidade, pois o art. 188 do CPP autoriza o juiz a conduzir o interrogatório do réu, podendo formular as perguntas que entender necessárias à busca da verdade real.

B) Não há nulidade, pois a ordem de inquirição prevista no art. 212 do CPP foi observada, tendo as partes formulado suas perguntas antes do magistrado.

C) Há nulidade, pois o juiz não pode formular qualquer pergunta às testemunhas ou ao réu no sistema acusatório brasileiro, cabendo tal função exclusivamente às partes.

D) Há nulidade se demonstrado que a postura do magistrado foi inquisitorial e protagonista, substituindo o ônus probatório da acusação e comprometendo a imparcialidade.

E) Não há nulidade, pois eventual prejuízo à defesa deve ser comprovado concretamente, não bastando a alegação genérica de violação ao sistema acusatório.

GABARITO: D

Comentários às alternativas

Alternativa A – INCORRETA. Embora o art. 188 do CPP autorize o juiz a conduzir o interrogatório, sua atuação não pode assumir caráter inquisitorial ou acusatório. O interrogatório é primordialmente meio de defesa, e o juiz deve preservar sua imparcialidade.

Alternativa B – INCORRETA. A mera observância da ordem de inquirição (partes primeiro, juiz depois) não afasta a nulidade se a postura do magistrado, mesmo ao complementar, for protagonista e inquisitorial. O vício está na natureza da atuação, não apenas na sequência formal.

Alternativa C – INCORRETA. O sistema acusatório brasileiro não elimina a iniciativa probatória do juiz. O art. 212, parágrafo único, do CPP expressamente autoriza a complementação judicial. O que se veda é a atuação protagonista e substitutiva das partes.

Alternativa D – CORRETA. Conforme o REsp 2.214.638-SC, são nulos a inquirição e o interrogatório quando o magistrado adota postura inquisitorial, protagonizando a produção da prova em substituição às partes. A violação da imparcialidade e do contraditório gera nulidade.

Alternativa E – INCORRETA. O STJ entende que, quando a condenação se baseia em provas produzidas em ato processual viciado por protagonismo judicial, o prejuízo é manifesto e inerente, dispensando demonstração casuística adicional.

Fechamento estratégico: o que memorizar

PONTOS DE MEMORIZAÇÃO
▶ Art. 212 do CPP: modelo de inquirição direta (cross-examination) — partes perguntam primeiro
▶ Juiz pode complementar, mas atuação deve ser residual e subsidiária
▶ Vedado ao juiz: protagonizar, induzir respostas, substituir as partes, atuar como investigador
▶ Interrogatório: meio de defesa, não instrumento de busca de prova contra o réu
▶ Violação gera nulidade por comprometimento da imparcialidade e do contraditório
▶ Prejuízo é manifesto quando condenação se baseia em prova do ato viciado

A decisão do STJ reforça que o sistema acusatório não é mera formalidade, mas garantia estrutural do processo penal democrático. O juiz que assume funções acusatórias compromete não apenas o caso concreto, mas a própria legitimidade da jurisdição. Como sintetizou a Corte: “a imparcialidade é a viga mestra da jurisdição” — e vigas mestras, quando comprometidas, fazem ruir toda a estrutura.

Bons estudos e rumo à aprovação!


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