Plano de matar Lula e Alexandre de Moraes por general: atos preparatórios ou início da execução? O “iter criminis” do crime de homicídio doloso

Plano de matar Lula e Alexandre de Moraes por general: atos preparatórios ou início da execução? O “iter criminis” do crime de homicídio doloso

Prof. Gustavo Cordeiro

Em 24 de julho de 2025, durante interrogatório no Supremo Tribunal Federal, o general da reserva Mario Fernandes fez uma confissão que ecoou pelos corredores da Justiça brasileira. O ex-secretário executivo da Secretaria-Geral da Presidência no governo Bolsonaro admitiu ser o autor intelectual do plano “Punhal Verde e Amarelo”, que detalhava o assassinato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do vice-presidente Geraldo Alckmin e do ministro Alexandre de Moraes.

Contudo, a defesa apresentou uma tese curiosa: o documento não passaria de um “pensamento digitalizado”, uma mera cogitação sem qualquer intenção executória. Nas palavras do próprio Mario Fernandes:

"Esse arquivo digital nada mais retrata do que um pensamento meu que foi digitalizado. Um compilado de dados, um estudo de situação meu, uma análise de riscos que eu fiz e por costume próprio resolvi digitalizar. Hoje, me arrependo de ter digitalizado isso."

Este caso oferece oportunidade única para analisar o iter criminis – o “caminho do crime” – e determinar em que etapa exatamente se encontravam as condutas do general. A questão central é: houve apenas cogitação e atos preparatórios, ou o general avançou para a fase de execução do crime de homicídio doloso?

O plano “Punhal Verde e Amarelo”

De acordo com as investigações da Polícia Federal, o plano era meticulosamente detalhado e estava marcado para execução em 15 de dezembro de 2022, apenas três dias após a diplomação de Lula no Tribunal Superior Eleitoral. O documento previa múltiplos métodos de execução: envenenamento das vítimas e utilização de arsenal de guerra, incluindo pistolas, fuzis, metralhadora e até mesmo um lança-granada.

Especialmente relevante é que o plano incluía o monitoramento constante de Alexandre de Moraes. Um grupo de militares das Forças Especiais, os “kids pretos”, utilizava codinomes de países em conversas pelo aplicativo Signal, criando um grupo denominado “Copa 2022” para coordenar esta vigilância. O general chegou a imprimir o documento no Palácio do Planalto em 9 de novembro de 2022, utilizando a infraestrutura oficial da Presidência.

Compreendendo o iter criminis

O iter criminis representa o caminho percorrido pelo criminoso desde o momento em que concebe a ideia delitiva até sua efetiva consumação. Este conceito é fundamental no Direito Penal porque permite determinar exatamente em que momento uma pessoa pode ser responsabilizada criminalmente. Aplica-se exclusivamente aos crimes dolosos, uma vez que nos delitos culposos não há deliberação consciente.

A doutrina divide o iter criminis em quatro etapas: cogitação (fase mental), atos preparatórios (condutas externas para viabilizar o crime), execução (início da prática do crime) e consumação (reunião de todos os elementos do tipo penal).

A cogitação e a tese defensiva

A cogitação caracteriza-se pela elaboração mental do crime, permanecendo restrita ao psiquismo do agente. Por ser absolutamente interna, é impunível em virtude do princípio da lesividade. No caso do general, indubitavelmente houve cogitação, admitida pelo próprio acusado ao falar em “pensamento digitalizado”.

A defesa tenta limitar toda a conduta a esta fase impunível. Contudo, quando o general digitalizou seus pensamentos, criando um arquivo específico, já houve exteriorização da conduta mental. O “pensamento digitalizado” deixa de ser mera cogitação para se tornar ato externo, objetivamente verificável.

Os atos preparatórios evidentes

Os atos preparatórios constituem condutas externas destinadas a criar condições para a execução futura do crime. Como regra geral, são impuníveis, salvo quando constituírem crime autônomo. Aqui reside o primeiro problema da tese defensiva.

Iter criminis

O general claramente não se limitou à cogitação interna. Externalizou seus “pensamentos” através de múltiplas condutas: elaborou detalhadamente o plano com metodologia e cronograma específicos; digitalizou e renomeou o arquivo de “Fox_2017.docx” para “Punhal Verde e Amarelo”; utilizou infraestrutura oficial do Palácio do Planalto para imprimir o documento; estabeleceu data específica para execução; e detalhou aspectos operacionais como armamentos e logística.

Estas condutas caracterizam inequívocos atos preparatórios externos, superando definitivamente a fase de mera cogitação. Embora geralmente impuníveis como tentativa de homicídio, podem configurar crimes autônomos como organização criminosa.

A questão crucial: início de execução?

A distinção entre atos preparatórios e executórios é fundamental para determinar a responsabilidade penal. O elemento mais problemático para a defesa é o monitoramento sistemático de Alexandre de Moraes. Militares do grupo acompanhavam detalhadamente os deslocamentos do ministro, repassando informações através do coronel Marcelo Costa Câmara.

A questão jurídica é se esta vigilância constitui ato preparatório ou início de execução. O contexto temporal é crucial: o monitoramento intensificou-se próximo à data marcada (15 de dezembro de 2022), utilizando aplicativo criptografado e coordenação entre militares especializados.

Precedentes jurisprudenciais do STJ: a teoria objetivo-formal

O Superior Tribunal de Justiça adota a teoria objetivo-formal para determinar o início da execução criminal. Conforme decidido no AREsp 974.254/TO, a Corte exige “o início da prática do verbo correspondente ao núcleo do tipo penal para a configuração da tentativa”.

Segundo a jurisprudência, “os atos de execução são todos os atos idôneos e inequívocos para a consumação do delito”. Como exemplo, cita:

"Um bom exemplo é o disparo de arma de fogo direcionado à vítima. Ainda que não a atinja... o agente já deixara a fase de preparação e passara ao ato executório, já que inequivocamente o tiro em direção a vítima se destinaria a matá-la".

Casos concretos de início de execução

No REsp 1.779.570 (6ª Turma), reconheceu-se tentativa quando o réu “teria abordado a vítima em via pública e realizado disparos de arma de fogo contra ela”. Similarmente, no HC 678.195 (5ª Turma), caracterizou-se tentativa quando o réu “durante uma briga de trânsito, pegou uma faca no carro e acertou vários golpes na vítima”.

O que NÃO constitui início de execução

Crucialmente, o STJ não reconheceu tentativa no caso de “duas pessoas que foram presas, armadas, em frente a uma agência dos Correios e confessaram a intenção de cometer um assalto, depois de terem observado o ponto por alguns dias” (AREsp 974.254). Esta observação prolongada, mesmo com confissão de intenção criminosa e porte de armas, foi considerada apenas ato preparatório.

Implicações para o caso do general

Esta jurisprudência revela aspecto fundamental: não foram encontrados julgados do STJ estabelecendo que “vigilância sistemática” constitui início de execução em homicídio. Os precedentes referem-se sempre a condutas próximas do núcleo do tipo penal: disparos, golpes ou atos que demonstrem iminência da consumação.

O precedente do AREsp 974.254/TO é especialmente relevante. Se duas pessoas armadas observando agência por dias não configuraram tentativa, o monitoramento de Alexandre de Moraes, por mais sistemático, seguiria a mesma classificação. A teoria objetivo-formal exige proximidade muito maior com o verbo nuclear “matar” do que a vigilância, mesmo coordenada entre militares especializados.

Subsunção do caso às normas do iter criminis

Aplicando a jurisprudência consolidada do STJ ao caso, chegamos a conclusões definidas. A cogitação está presente, admitida pelo próprio acusado. Os atos preparatórios são múltiplos e evidentes, ultrapassando a fase de cogitação mas permanecendo impuníveis como tentativa de homicídio.

Quanto ao início de execução, seguindo os precedentes do STJ que adotam a teoria objetivo-formal, o monitoramento sistemático tende a se classificar como ato preparatório. Faltaram elementos que a jurisprudência considera essenciais: disparos direcionados, golpes físicos ou condutas que demonstrem iminência inequívoca da consumação.

A consumação está ausente, pois não houve lesão às vítimas. O plano foi frustrado antes da fase executória, conforme critérios do STJ.

Institutos defensivos aplicáveis

Crime impossível

A defesa poderia sustentar crime impossível por ineficácia absoluta do meio, argumentando que a proteção das autoridades tornaria o plano inexequível. Contudo, o planejamento detalhado, envolvendo militares treinados e métodos eficazes, torna este argumento frágil.

Desistência voluntária

Se comprovado abandono voluntário do plano, aplicar-se-ia a desistência voluntária. Porém, evidências sugerem frustração involuntária pela falta de apoio militar e descoberta pela Polícia Federal, afastando este instituto.

Consequências jurídicas prováveis

Considerando a jurisprudência do STJ, as condutas permaneceriam na fase preparatória, resultando em impunibilidade específica pela tentativa de homicídio. Persiste, contudo, possibilidade de condenação por crimes autônomos como organização criminosa armada e tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito.

A diferença é significativa: enquanto tentativa de homicídio qualificado resultaria em doze a trinta anos de reclusão, os crimes conexos preveem penas menores, embora ainda substanciais.

Como o tema pode ser cobrado em concursos

O iter criminis é tema recorrente em concursos, especialmente após casos de repercussão. Assim, uma questão típica poderia apresentar:

"João elabora plano detalhado para matar seu desafeto, imprime o documento, adquire armamento e monitora a vítima por uma semana. É preso antes de se aproximar fisicamente. As condutas configuram tentativa de homicídio?"

Considerando a jurisprudência real do STJ, a resposta seria que as condutas configuram atos preparatórios, não tentativa. O monitoramento sistemático, por mais organizado, não alcança o início de execução exigido pela Corte, que requer proximidade com o verbo nuclear através de disparos, golpes ou agressões diretas.

Portanto, o entendimento aplica-se ao caso do general, onde o monitoramento de Alexandre de Moraes seria classificado como ato preparatório, fortalecendo a tese defensiva de “pensamento digitalizado” para o crime de homicídio, sem eliminar responsabilização por outros delitos graves.


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