Avança a automação e a utilização da inteligência artificial no sistema de justiça brasileiro.
*Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.
O sistema de justiça brasileiro tem experimentado um avanço sensível na utilização da tecnologia e da inteligência artificial. Tanto o judiciário quanto advogados e procuradores têm se utilizado cada vez mais de bots (robôs virtuais) no auxílio de suas atribuições.
A Advocacia Geral da União (AGU) adotou um novo software de inteligência artificial desenvolvido pela Microsoft, com o objetivo de aprimorar suas atividades jurídicas e de produção textual. Essa ferramenta é a mesma que fornece serviços para a OpenAI (criadora do ChatGPT). Foram destinados 25 milhões de reais para a aquisição (em créditos suplementares do Ministério do Planejamento).
Segundo informações do Governo Federal, a nova ferramenta atuará de forma integrada com o Sistema AGU de Inteligência Jurídica – Sapiens, sistema já utilizado pela AGU.
Mas o que essa inteligência artificial irá fazer? Existem três eixos básicos de atuação em que a Advocacia-Geral da União pretende focar:
- Triagem de processos: A ferramenta aprimora a capacidade de identificar rapidamente as características das peças jurídicas. Além de fornecer sugestões de modelos e teses para os servidores.
- Produção textual: A IA será utilizada para criar resumos e auxiliar na elaboração de manifestações, empregando a vasta base de dados já existente na AGU.
- Jurimetria: O software também realizará levantamentos estatísticos e análises de dados, contribuindo para uma gestão mais eficiente das informações.
A IA vai substituir profissionais do direito?
A AGU garante que não há riscos de substituição de procuradores ou servidores pela IA, haja vista que todo o processo será supervisionado e acompanhado por humanos. O órgão destacou que o uso da inteligência artificial permitirá uma abordagem de advocacia mais estratégica, melhorando a defesa e a proposição de acordos, especialmente em casos de grande impacto fiscal.
O mote principal dessa contratação, segundo o órgão federal, é o gerenciamento dos precatórios e requisições de pequeno valor – RPVs, ou seja, os pagamentos devidos pelo Poder Público em decorrência de decisões judiciais transitadas em julgado.
Em 2025, há uma projeção de mais de 100 bilhões de reais em precatórios e RPVs. O número é equivalente a cerca de 1% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro. Nesse contexto, a IA contribuiria para dar uma maior previsibilidade dessas despesas obrigatórias, mapeando tendências e possíveis frentes de atuação para a AGU nos processos que ainda não transitaram em julgado.
Uso de Robôs no Judiciário
Exemplos do Supremo Tribunal Federal
Essa utilização de bots para o auxílio de funções no sistema de justiça já é feita pelo Supremo Tribunal Federal. Lá, já existem 3 desses robôs: o Victor, a Rafa e a Victória.
Victor: Robô utilizado desde 2017 para análise de temas de repercussão geral na triagem de recursos recebidos de todo país;
Rafa: Robô desenvolvida para integrar a Agenda 2030 da ONU ao STF, por meio da classificação dos processos de acordo com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) definidos pelas Nações Unidas; e
Victória: Robô que amplia o conhecimento sobre o perfil dos processos recebidos no STF e permite o tratamento conjunto de temas repetidos ou similares. A ferramenta identifica, no acervo de processos do Tribunal, os que tratam do mesmo assunto e os agrupa automaticamente. Assim, é possível identificar, com mais agilidade e segurança, por exemplo, processos aptos a tratamento conjunto ou que podem resultar em novos temas de repercussão geral.
Muitos escritórios de advocacia já utilizam dessa ferramenta para peticionamento em massa (processos envolvendo o mesmo assunto, geralmente tratando de matéria unicamente de direito, sem necessidade de uma instrução mais complexa). A isso denominamos litigiosidade repetitiva.
A utilização desses robôs, em especial pelo poder judiciário, traz pontos positivos e pontos negativos e, por consequência, atrai críticos e defensores. Vejamos.
Defensores da Inteligência Artificial
Os que defendem a utilização da inteligência artificial destacam que a ferramenta é essencial para garantir celeridade (razoável duração do processo) e segurança jurídica. Os defensores chamam a atenção para os seguintes benefícios:
- Agilização da análise processual;
- Economia de tempo;
- Economia de recursos;
- Segurança jurídica através da uniformização dos julgados;
- Mapeamento mais eficaz dos processos existentes;
- Maior capacidade de planejamento.
Críticos da Inteligência Artificial
Já os que criticam a utilização dos robôs temem que estejamos criando uma ditadura dos algoritmos, causando injustiças ao não analisar, de forma detida, o caso específico em seus detalhes diferenciadores. Teríamos, portanto, os seguintes problemas a serem enfrentados:
- Perigo de inobservância do devido processo legal;
- Falta de análise detida sobre pontos que são suficientes para caracterizar o distinguish do caso com o paradigma, jogando o processo para a vala comum, mesmo não sendo esta a melhor solução;
- Risco de relativização do jus postulandi dos advogados (confecção de peças sem a necessidade de um advogado);
- Sucateamento da profissão de advogado;
- A justiça seria guiada por algoritmos, e não por pessoas;
- Falta de uma legislação processual totalmente adaptada à utilização dos bots;
- Dificuldade de saber o posicionamento jurídico de determinado juiz, desembargador, ministro ou órgão colegiado;
- Cometimento de injustiças pontuais;
- Criação de uma justiça mecanizada, no estilo linha de produção.
Desafios da Automação Judicial
Se, de um lado, a utilização dos bots no sistema de justiça é um caminho sem volta, especialmente em virtude do aumento da litigiosidade repetitiva, que abarrota os tribunais e eternizam o trâmite processual, do outro, a ferramenta precisa ser concebida, utilizada e fiscalizada de forma a evitar que fiquemos sujeitos a uma ditadura dos algoritmos, presos em um sistema mecanizado de justiça, sem levar em consideração os detalhes e circunstâncias específicas que distinguem os casos uns dos outros.
A Constituição Federal, em seu artigo 5º, LXXVIII, aduz que
“a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.”
Estamos diante, portanto, de um direito fundamental de todos a terem um iter processual célere, já que, como bem-dito pelo mestre Ruy Barbosa, em Orações aos Moços – 1921:
"Justiça atrasada não é Justiça, senão injustiça qualificada e manifesta".
Mas, do mesmo modo, a Constituição também garante como direito fundamental, em seu artigo 5º, LV, que
“aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”
A utilização descalibrada dos bots pelo sistema de justiça pode acabar gerando, sob o pretexto da agilidade e da celeridade, decisões judiciais injustas, impossibilitando os postulantes de indicarem as razões pelas quais o seu caso não se amolda ao paradigma indicado, erroneamente, pelo robô.
Da mesma forma que justiça tardia não é justiça, a resolução de litígios de forma atabalhoada, sem a devida análise dos pressupostos específicos do caso, em um curto espaço de tempo, também é injustiça, só que afligida pelo azorrague dos algoritmos, sem qualquer chance de apelação para o discernimento ético e jurídico próprio da mente humana.
Perspectivas Futuras para o Uso de IA no Judiciário
Podemos concluir, ao final, que a utilização dos bots no sistema de justiça é bem-vinda, mas desde que sejam respeitados os direitos fundamentais do contraditório, da ampla defesa, do devido processo legal, ou seja, deve ser garantido ao postulante, por exemplo, o direito de convencer o julgador humano (e não o robô) que o seu caso é diferente do paradigma apontado pela IA como referência para a improcedência dos seus argumentos.
É possível, sim, conciliar ferramentas tecnológicas que encurtem a duração do processo, facilitem o planejamento processual e ajudem na análise de dados e jurisprudência, sem retirar dos litigantes o direito a uma decisão justa e equânime e sem fragilizar a profissão do advogado, que é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, como prescreve o artigo 133 da nossa Carta Magna.
No entanto, para isso a sociedade deve se empenhar em criar e fortalecer mecanismos de correção dos vieses decorrentes da automação do sistema de justiça, o que passa por uma atualização legislativa a fim de compatibilizar o sistema normativo pátrio com essa nova realidade que ora se apresenta.
Vejamos como o assunto será tratado daqui para a frente pelos operadores do direito (doutrinadores, magistrados, advogados, procuradores, promotores, estudantes de direito).
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