Em breve síntese, o STF declarou que uma Lei estadual que exigia prévia autorização dos municípios para transporte remunerado por motocicletas via aplicativos violou competência privativa da União e princípios da ordem econômica:

Vamos entender o caso concreto
Imagine a seguinte situação: o Estado de São Paulo edita a Lei 18.156/2025 estabelecendo que a utilização de motocicletas para prestação de serviço de transporte individual privado remunerado de passageiros (os famosos “mototáxis” e corridas de moto por aplicativos como Uber e 99) fica condicionada à prévia autorização e regulamentação pelos municípios.
Nessa linha, a Confederação Nacional de Serviços (CNS) ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 7.852) questionando a lei estadual.
Dessa maneira, o Ministro Alexandre de Moraes, relator do caso, deferiu medida cautelar suspendendo a norma em setembro de 2025.
Posteriormente, em sessão virtual concluída em 10 de novembro de 2025, o Plenário do STF formou maioria para declarar a inconstitucionalidade da lei paulista, tanto por vício formal quanto material.
O que decidiu o STF?
O Supremo, por ampla maioria, declarou a Lei 18.156/2025 do Estado de São Paulo inconstitucional.
Vamos entender os fundamentos dessa importante decisão.
Inconstitucionalidade formal: usurpação de competência da União
Ora, o primeiro e mais robusto fundamento para a declaração de inconstitucionalidade foi a violação das regras de repartição de competências legislativas previstas na Constituição Federal.
Como sabemos, o modelo federalista brasileiro distribui as competências entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios segundo o princípio da predominância do interesse.
Assim, a Constituição estabeleceu em seu art. 22, incisos IX e XI, que compete privativamente à União legislar sobre diretrizes da política nacional de transportes e sobre trânsito e transporte.
Perceba que não se trata de competência concorrente (art. 24, CF), na qual União, Estados e DF podem legislar conjuntamente, cabendo à União estabelecer normas gerais.
Trata-se de competência privativa, ou seja, exclusiva da União, salvo expressa autorização mediante lei complementar (art. 22, parágrafo único, CF).
Veja que o legislador federal, no exercício dessa competência privativa, editou a Lei 12.587/2012 (Política Nacional de Mobilidade Urbana), posteriormente alterada pela Lei 13.640/2018, que definiu expressamente o conceito de “transporte remunerado privado individual de passageiros” e estabeleceu que compete exclusivamente aos Municípios e ao Distrito Federal regulamentar e fiscalizar esse serviço (art. 11-A da Lei 12.587/2012).
Destarte, a lei federal já havia delimitado claramente o arranjo de competências: União estabelece as diretrizes gerais, e Municípios regulamentam e fiscalizam localmente, respeitando os parâmetros federais.
Logo, não havia espaço para o Estado-membro legislar sobre a matéria.
Com efeito, ao editar a Lei 18.156/2025 condicionando a prestação de serviço de mototáxi à autorização e regulamentação municipal, o Estado de São Paulo invadiu competência privativa da União e, ainda, usurpou a competência municipal já estabelecida pela legislação federal.
Nesse sentido, o Ministro Alexandre de Moraes destacou em seu voto que “a circunstância de se tratar de transporte por meio de motocicletas poderia, em tese, justificar a regulamentação de aspectos relacionados a esse tipo de veículo”, todavia “não há fator que distingua, sob o aspecto jurídico, o transporte por aplicativos, seja por automóveis (carros) ou por motocicletas, devendo-se aplicar o mesmo entendimento firmado pela corte”.
Jurisprudência do STF
Vale ressaltar que o STF já possui sólida jurisprudência reconhecendo a inconstitucionalidade de leis estaduais que invadem a competência da União para legislar sobre trânsito e transporte de passageiros por motocicletas.
Desde 2003, na ADI 2.606, a Corte declarou inconstitucional lei catarinense que autorizava o transporte remunerado de passageiros por motocicletas. Posteriormente, foram declaradas inconstitucionais leis similares do Pará (ADI 3.135/2006 e ADI 4.961/2019), Minas Gerais (ADI 3.136/2006), Distrito Federal (ADI 3.610/2011 e ADI 3.679/2007), além de leis do Rio Grande do Norte (ADI 4.530/2020) e Paraíba (ADI 4.293/2025).
Perceba como o STF vem sendo consistente ao longo de mais de duas décadas: Estados não podem legislar sobre transporte individual de passageiros por motocicletas, pois se trata de matéria afeta à competência privativa da União.
Inconstitucionalidade material: violação à livre iniciativa e à livre concorrência
Mas a inconstitucionalidade da lei paulista não se limitou ao aspecto formal.
Além disso, o STF também identificou violação material aos princípios constitucionais da ordem econômica.
Isto porque, a Constituição Federal estabelece que a ordem econômica brasileira funda-se na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa (artigo 170, caput), tendo como princípios a livre concorrência (art. 170, IV) e a busca do pleno emprego (art. 170, VIII).
Ora, o transporte individual remunerado de passageiros por aplicativos, seja por automóveis ou motocicletas, não é classificado como serviço público.
Trata-se de atividade econômica privada, exercida no âmbito da livre iniciativa, conforme já estabelecido pela Lei 12.587/2012 ao distinguir expressamente o “transporte remunerado privado individual” do “transporte público individual”.
Sendo atividade econômica privada lícita, ela está protegida pelo princípio da livre iniciativa, e a própria Constituição assegura a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei (art. 170, parágrafo único, CF).
Veja que a lei estadual paulista, ao condicionar o exercício da atividade de mototáxi à prévia autorização e regulamentação pelos municípios, criou uma verdadeira barreira de entrada desproporcional e desnecessária ao livre exercício profissional de centenas de milhares de trabalhadores.
Inclusive, no voto do Ministro disse que:
(...)segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua do IBGE, o Brasil possui aproximadamente 1,7 milhão de trabalhadores que têm as plataformas digitais como principal meio de trabalho.
Desse universo, cerca de 1,1 milhão de pessoas trabalham conduzindo motos no país, sendo que 351 mil (33,5%) utilizam aplicativos para exercer sua atividade remunerada.
Destarte, estamos falando de uma atividade econômica que sustenta centenas de milhares de famílias brasileiras. O rendimento médio de um motociclista que opera por aplicativos é de R$ 2.119,00, superior ao salário-mínimo e quase 30% acima do rendimento médio dos motociclistas que não utilizam plataformas digitais.
A região Sudeste, liderada pelo Estado de São Paulo, concentra 53,7% de todos os trabalhadores por aplicativos do país. Logo, a lei paulista atingiria o principal polo nacional dessa atividade econômica.
Relação com o Tema 967 da Repercussão Geral
A decisão na ADI 7.852 dialoga diretamente com o Tema 967 da Repercussão Geral (RE 1.054.110), julgado em 2019, no qual o STF fixou as seguintes teses:
"1. A proibição ou restrição da atividade de transporte privado individual por motorista cadastrado em aplicativo é inconstitucional, por violação aos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência; e • No exercício de sua competência para regulamentação e fiscalização do transporte privado individual de passageiros, os Municípios e o Distrito Federal não podem contrariar os parâmetros fixados pelo legislador federal (CF/1988, art. 22, XI)."
Perceba que o Ministro Alexandre de Moraes aplicou expressamente a ratio decidendi do Tema 967 ao caso das motocicletas.
Para o STF, não há distinção jurídica relevante entre o transporte por automóveis e o transporte por motocicletas quando se trata de aplicativos – ambos estão protegidos pelos mesmos princípios constitucionais da livre iniciativa e livre concorrência.
Questão hipotética
O Estado Beta editou lei condicionando a prestação de serviço de transporte individual remunerado de passageiros por motocicletas intermediado por aplicativos à prévia autorização dos municípios. A Confederação Nacional de Serviços ajuizou ADI questionando a constitucionalidade da norma. À luz da jurisprudência do STF, a lei estadual é:
a) Constitucional, pois Estados têm competência concorrente para legislar sobre proteção ao consumidor e trânsito.
b) Constitucional, desde que a regulamentação municipal observe os parâmetros estaduais de segurança viária.
c) Inconstitucional, por violar a competência privativa da União para legislar sobre transporte e os princípios da livre iniciativa e livre concorrência.
d) Inconstitucional apenas formalmente, pois invade competência municipal, mas constitucional materialmente por proteger consumidores.
e) Constitucional, pois a União pode delegar aos Estados, mediante lei complementar, a competência para regulamentar o transporte local.
Gabarito: letra C. A lei estadual é inconstitucional tanto formal quanto materialmente, por invadir competência privativa da União (CF, art. 22, XI) e violar princípios da ordem econômica (CF, art. 170).
STF. Plenário. ADI 7.852/SP, Rel. Min. Alexandre de Moraes, julgado em 10/11/2025.
Quer saber quais serão os próximos concursos?
Confira nossos artigos para Carreiras Jurídicas!