Olá, pessoal!
Sou Rodrigo Campos, professor de Direito Civil do Estratégia Carreira Jurídica, Defensor Público do Estado de São Paulo.
Trouxe abaixo uma análise para reflexão sobre o tema: Imóvel comprado com recursos de apenas um dos cônjuges deve ser partilhado.
Em recente caso julgado pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça restou decidido que a presunção de comunhão de esforços na aquisição de imóvel adquirido de forma onerosa no decorrer do matrimônio se aplica ainda que o imóvel tenha sido comprado com “recursos exclusivos de um dos cônjuges”[1].
Mas, para elucidarmos melhor o caso (e a polêmica), questiona-se: já não determina a lei que os bens adquiridos onerosamente na constância do matrimônio entram na comunhão? Ou prevaleceria a previsão de que os proventos do trabalho de cada cônjuge ficam excluídos da comunhão? A regra da manutenção da natureza jurídica dos bens sub-rogados em seu lugar, se aplica ao caso?
Foi justamente em caso dessa natureza que o STJ se debruçou sobre o tema, trazendo importantes considerações sobre a matéria e afastando interpretações “discriminatórias” que se reproduziam ao longo dos anos.
A norma legal e suas possíveis interpretações
Como já antecipado, são dos mandamentos insculpidos nos artigos 1.659, VI e 1.660, I ambos do Código Civil de 2002 que se origina toda a polêmica narrada.
Isso porque, enquanto o primeiro dispositivo mencionado determina, em seu inciso VI, que se excluem da comunhão os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge, o seguinte traz norma determinando a comunhão dos bens adquiridos na constância do casamento por título oneroso, ainda que só em nome de um dos cônjuges.
Mas e se esses bens forem adquiridos com recursos de apenas um dos cônjuges, aplicar-se-ia a regra prevista no inciso II do artigo 1.659 em que ficam excluídos da comunhão os bens adquiridos com valores exclusivamente pertencentes a um dos cônjuges em sub-rogação dos bens particulares?
Para o professor Alexandre Guedes Alcoforado Assunção, a resposta seria negativa, sob pena de se esvaziar a comunhão dos bens no regime legal: “a previsão da exclusão dos proventos do trabalho de cada cônjuge, indicada no inciso VI, produz situação que se antagoniza com a própria essência do regime. Ora, se os rendimentos do trabalho não se comunicam, os bens sub-rogados desses rendimentos também não se comunicam, conforme o inciso II, e, por conseguinte, praticamente nada se comunica nesse regime, no entendimento de que a grande maioria dos cônjuges vive dos rendimentos do seu trabalho. A comunhão parcial de bens tem em vista comunicar todos os bens adquiridos durante o casamento a título oneroso, sendo que aqueles adquiridos com frutos do trabalho contêm essa onerosidade aquisitiva” (Novo Código…, 2004, p. 1.519).
No mesmo contexto, buscando compatibilizar a norma ao ordenamento jurídico posto, há outros julgados do STJ que determinam uma interpretação restritiva do artigo 1.659, VI do CC/02 de modo que os proventos do trabalho recebidos, por um ou outro cônjuge, na vigência do casamento, compõem o patrimônio comum do casal, a ser partilhado na separação, tendo em vista a formação de sociedade de fato, configurada pelo esforço comum dos cônjuges, independentemente de ser financeira a contribuição de um dos consortes e do outro não”[2].
Importante ressaltar que o trecho final do último julgado citado traduz preocupação relevantíssima da Corte Cidadão a respeito do tema: interpretar a norma do inciso VI de maneira extensiva, para além de colocar em risco toda a lógica do regime da comunhão parcial de bens, ainda poria em risco os cônjuges que se dedicassem aos cuidados da casa.
Não é difícil visualizar tal cenário tão frequente nos lares brasileiros, em que diversas mulheres se dedicam exclusivamente aos cuidados dos filhos e da casa, abrindo (ou não) mão de eventuais carreiras. Seria justo que tal norma permitisse tratamento tão desigual aos cônjuges, garantindo que somente um deles ficasse com a totalidade dos bens em razão de terem sido adquiridos com “os proventos de seu trabalho”?
A meu ver a resposta é incontroversamente negativa e a Exma. Ministra Nancy Andrighi compartilha da mesma opinião já tendo decidido que em consideração à disparidade de proventos entre marido e mulher, comum a muitas famílias, ou, ainda, frente à opção do casal no sentido de que um deles permaneça em casa cuidando dos filhos, muito embora seja facultado a cada cônjuge guardar, como particulares, os proventos do seu trabalho pessoal, na forma do art. 1.659, inc. VI, do CC/2002, deve-se entender que, uma vez recebida a contraprestação do labor de cada um, ela se comunica[3].
Os professores Sílvio Rodrigues, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho comungam do mesmo entendimento, acrescentando que o artigo 1.660, I do CC/02, ao mencionar a comunhão dos bens adquiridos onerosamente não prevê a hipótese dos bens sub-rogados em seu lugar, do modo que as referidas “rendas” advindas do trabalho se transformam em patrimônio comum do casal ao serem utilizadas para a compra de outros bens.
No caso ora analisado, o ministro Marco Aurélio Bellizze observou que, no regime da comunhão parcial, os bens adquiridos onerosamente na constância do casamento se comunicam, pois a lei presume que a sua aquisição é resultado do esforço comum do casal, tanto que estabelece essa regra mesmo quando o bem estiver em nome de apenas um dos cônjuges.
Desse modo, seria irrelevante aferir eventual esforço “financeiro” de ambos os cônjuges para fazer incidir a regra da comunhão, já que o “esforço comum do casal”, presumido no regime da comunhão parcial de bens, extrapola a esfera patrimonial e pode se manifestar de formas distintas a depender da dinâmica familiar vivenciada pelo casal.
O caso julgado pelo superior tribunal de justiça e suas conclusões
A notícia trazida pelo site da referida Corte aponta que:
“Após se divorciar de seu marido, uma mulher ajuizou uma ação para requerer a abertura de inventário dos bens adquiridos na constância do casamento, com a respectiva divisão igualitária. Reconhecida a partilha pelo juízo de primeiro grau, o marido apelou ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), o qual excluiu um dos imóveis da partilha sob o fundamento de que a sua aquisição ocorreu com uso de recursos depositados na conta corrente do homem, provenientes exclusivamente do trabalho dele.[4]”
Diante desse cenário, notou a Terceira Turma do STJ que o E. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro não aplicou o entendimento amplamente majoritário na doutrina e que já vinha sendo acolhido nos julgados da Corte Cidadã, excluindo o bem da comunhão em evidente prejuízo à esposa.
Como bem destacado pelo relator, ministro Marco Aurélio Bellizze, “apesar de o inciso VI do artigo 1.659 do Código Civil (CC) estabelecer que devem ser excluídos da comunhão os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge, a incomunicabilidade prevista nesse dispositivo legal atinge apenas o direito ao recebimento dos proventos em si. Porém, os bens adquiridos mediante o recebimento desses proventos serão comunicáveis“.
Prevaleceu, portanto, a lógica esposada no capítulo anterior de que o esforço comum do casal é presumido quando há aquisição onerosa de bens durante o matrimônio (ou união estável), sendo irrelevante aferir a contribuição “financeira” de cada.
Importante registrar que o caso julgado pelo STJ ainda contava um elemento que, apesar de dispensável, reafirmava o direito da ex-esposa em partilhar o bem, qual seja, o imóvel havia sido registrado em nome de ambos os cônjuges.
Sendo assim, na matrícula do imóvel, constou marido e mulher como coproprietários, cada um fazendo jus a 50% do imóvel. Desse modo, em não tendo havido qualquer declaração de nulidade de tal matrícula do imóvel, resta cristalino que, naquele momento, ao comparecerem as partes em cartório, firmaram a escritura de compra e venda em nome dos dois, concordaram que o bem pertenceria a ambos.
No entanto, não confundam!
A regra da comunhão dos bens adquiridos onerosamente na constância do matrimônio DISPENSA que o registro se dê em nome de ambos, decorrendo, pura e simplesmente do momento em que tal aquisição é formalizada.
E, o principal, o fato da aquisição ter ocorrido com recursos de apenas um dos cônjuges não afasta aquele bem da partilha, já que o esforço comum do casal é presumido e a incomunicabilidade prevista aos proventos do trabalho pessoal atingem somente o direito de recebimento em si.
[1] https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2024/22022024-Na-comunhao-parcial–imovel-comprado-com-recursos-de-apenas-um-dos-conjuges-tambem-integra-partilha.aspx
[2] STJ, REsp 1.660.877/PB, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, j. 07.02.2018, DJe 14.02.2018, p. 3.996 e REsp 1.399.199/RS, 2.ª Seção, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, Rel. p/ Acórdão Min. Luis Felipe Salomão, j. 09.03.2016, DJe 22.04.2016
[3] STJ, REsp 1.024.169/RS, 3.ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 13.04.2010, DJe 28.04.2010
[4] https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2024/22022024-Na-comunhao-parcial–imovel-comprado-com-recursos-de-apenas-um-dos-conjuges-tambem-integra-partilha.aspx