A herança de Cid Moreira: deserdação vs indignidade, um tema de direito sucessório

A herança de Cid Moreira: deserdação vs indignidade, um tema de direito sucessório

A morte do lendário Cid Moreira, aos 97 anos, não apenas encerrou um capítulo da história da comunicação brasileira, mas também abriu as cortinas para um drama familiar que pretende dar outros capítulos.

Assim foi a notícia divulgada:

Patrimônio de Cid Moreira avaliado em R$ 60 milhões não será dividido entre os filhos.

Em resumo, temos de um lado, uma fortuna estimada em R$ 60 milhões.

Do outro, filhos acusados de tentar interditar o próprio pai e uma viúva determinada a fazer valer a última vontade do marido.

Mas afinal, pode um pai deserdar seus filhos no Brasil? É possível excluir alguém da herança? E o que diabos são “indignidade” e “deserdação” no mundo jurídico?

Indignidade e Deserdação

O direito sucessório brasileiro prevê duas formas principais de excluir alguém da herança: a indignidade e a deserdação. Ambas estão regulamentadas no Código Civil de 2002, mas funcionam de maneiras distintas.

A deserdação, prevista nos artigos 1.961 a 1.965, é um ato intencional do autor da herança. O art. 1.961 permite que os herdeiros necessários sejam privados de sua legítima em todos os casos em que podem ser excluídos da sucessão. Para isso, o art. 1.964 exige que o testamento ordene essa deserdação, com expressa declaração de causa.

Para a deserdação, além das causas de indignidade, o art. 1.962 prevê causas específicas para descendentes, como ofensa física, injúria grave, relações ilícitas com madrasta ou padrasto, e desamparo em alienação mental ou grave enfermidade. O art. 1.963 estabelece causas similares para a deserdação de ascendentes.

Já a indignidade, tratada nos artigos 1.814 a 1.818 do Código Civil, é uma sanção legal que não requer ação prévia do autor da herança. Conforme o art. 1.814, excluem-se da sucessão os herdeiros ou legatários que tenham cometido atos graves contra o autor da herança ou seus familiares próximos. O art. 1.815 estabelece que é por sentença judicial que se declara a exclusão por indignidade.

As causas de indignidade estão elencadas no art. 1.814 e incluem: tentativa de homicídio contra o autor da herança ou seus familiares próximos; acusação caluniosa ou crime contra a honra do autor da herança; e uso de violência ou fraude para impedir o testamento.

O art. 1.965 determina que cabe ao herdeiro instituído, ou àquele a quem aproveite a deserdação, provar a veracidade da causa alegada pelo testador. Já o art. 1.816 esclarece que os efeitos da exclusão são pessoais, não se estendendo aos descendentes do herdeiro excluído.

Como é feita a exclusão do indivíduo que praticou ato de indignidade

Para excluir um herdeiro ou legatário que praticou ato de indignidade, é necessária a propositura de ação judicial de indignidade.

Assim, a exclusão do herdeiro ou legatário deverá ser declarada por sentença (art. 1.815), que irá reconhecer que o indivíduo praticou o ato de indignidade.

Qual é o prazo para a ação de indignidade?

Prazo decadencial de 4 anos. O direito de demandar a exclusão do herdeiro ou legatário extingue-se em 4 anos, contados da abertura da sucessão (morte).

Quem tem legitimidade para ajuizar a ação de indignidade?

Qualquer interessado na sucessão pode propor a ação de declaração de indignidade.

E o Ministério Público, possui legitimidade para ajuizar ação de indignidade?

Em regra, não.

Exceção: o Ministério Público (MP) possui legitimidade no caso do inciso I do art. 1.814 do CC (homicídio doloso).

É o que prevê o § 2º do art. 1.815 do Código Civil (CC), incluído pela Lei nº 13.532/2017:

Art. 1.815 (...)

§ 2º Na hipótese do inciso I do art. 1.814, o Ministério Público tem legitimidade para demandar a exclusão do herdeiro ou legatário. (Incluído pela Lei nº 13.532, de 2017)

Assim, de acordo com a atual redação do Código Civil, o Ministério Público pode ajuizar ação pedindo a declaração de indignidade caso o herdeiro ou legatário tenha sido:

  • autor, coautor ou partícipe de homicídio doloso (consumado ou tentado)
  • praticado contra o autor da herança, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente.

Caso Suzane Richthofen

A presente alteração legislativa da indignidade inspirou-se no famoso caso Suzane Richthofen, que, em 2002, matou os pais, com a ajuda do seu namorado.

Os três receberam condenação e cumprem pena por isso. A garota recebeu 38 anos de reclusão.

A situação de Suzane poderia se enquadrar no inciso I do art. 1.814 do CC. Assim, ela poderia ser excluída da sucessão e não receber a herança dos seus pais. Ocorre que, para isso acontecer, o outro herdeiro (seu irmão, Andréas Von Richtofen) teve que propor ação de indignidade contra Suzane.

Caso Andréas não tivesse proposto a ação, Suzane, mesmo tendo matado os pais, em tese, receberia a herança. Isso parece extremamente injusto e contrário à ética geral.

Pensando nisso, a Lei nº 13.532/2017 acrescentou expressamente a possibilidade de o MP propor a ação de indignidade neste caso.

Assim, se o caso Suzane Richthofen tivesse acontecido após a Lei nº 13.532/2017, o Promotor de Justiça poderia ajuizar a ação de indignidade mesmo sem a iniciativa ou concordância de Andréas, outro herdeiro.

No caso de Suzane, como já dito, Andréas ajuizou a ação de indignidade, sendo julgada procedente já com trânsito em julgado. Confira trecho do dispositivo da sentença:

“ANDREAS ALBERT VON RICHTHOFEN moveu AÇÃO DE EXCLUSÃO DE HERANÇA em face de sua irmã SUZANE LOUISE VON RICHTHOFEN, por manifesta indignidade desta, pois teria ela, aos 31 de outubro de 2002, em companhia do seu namorado, Daniel Cravinhos de Paula e Silva, e do irmão dele, Cristian Cravinhos de Paula e Silva, barbaramente executado seus pais (…)

Conheço desde logo do pedido, pois se trata de matéria exclusiva de direito, estando a lide definida com a condenação penal, transitada em julgado, da herdeira Suzane Louise Von Richthofen pela morte de seus pais, pela qual foi condenada a 39 anos de reclusão e seis meses de detenção.

A indignidade é uma sanção civil que causa a perda do direito sucessório, privando da fruição dos bens o herdeiro que se tornou indigno por se conduzir de forma injusta, como fez Suzane, contra quem lhe iria transmitir a herança (…)

Ante o exposto, julgo PROCEDENTE a presente Ação de Exclusão de Herança que Andreas Albert Von Richthofen moveu em face de Suzane Louise Von Richthofen e, em consequência, declaro a indignidade da requerida em relação à herança deixada por seus pais, Manfred Albert Von Richthofen e Marísia Von Richthofen, em razão do trânsito em julgado da ação penal que a condenou criminalmente pela morte de ambos os seus genitores, nos exatos termos do disposto no artigo 1.814, I, do Código Civil.

Condeno também a requerida a restituir os frutos e rendimentos dos bens da herança que porventura anteriormente percebeu, desde a abertura da sucessão, nos termos do § único, artigo 1.817, também do Código Civil.  (…)”

Diferença: deserdação X indignidade

DeserdaçãoIndignidade
Vontade expressa manifestada em testamento, logo somente o testador pode fazer. É ato personalíssimo do testador.Ao contrário da deserdação, a indignidade não decorre da vontade expressa do falecido, mas sim, de uma determinação da lei.
Hipóteses: além das mesmas hipóteses de indignidade, temos:
DESCENDENTES POR SEUS ASCENDENTES:
I – ofensa física;
II – injúria grave;
III – relações ilícitas com a madrasta ou com o padrasto;
IV – desamparo do ascendente em alienação mental ou grave enfermidade.
ASCENDENTES PELOS DESCENDENTES:
I – ofensa física;
II – injúria grave;
III – relações ilícitas com a mulher ou companheira do filho ou a do neto, ou com o marido ou companheiro da filha ou o da neta;
IV – desamparo do filho ou neto com deficiência mental ou grave enfermidade.
Hipóteses:
1)  Que houverem sido autores, co-autores ou partícipes de homicídio DOLOSO, ou tentativa deste, contra a pessoa de cuja sucessão se tratar, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente;
2)  Que houverem acusado caluniosamente em juízo o autor da herança ou incorrerem em crime contra a sua honra, ou de seu cônjuge ou companheiro;
3)  Que, por violência ou meios fraudulentos, inibirem ou obstarem o autor da herança de dispor livremente de seus bens por ato de última vontade.
Quem pode opor = aquele herdeiro que se beneficiar com a deserdação.Quem pode opor = Os herdeiros, legatários e MP
Enunciado 116 – Art. 1.815: o Ministério Público, por força do art. 1.815 do novo Código Civil, desde que presente o interesse público, tem legitimidade para promover ação visando à declaração da indignidade de herdeiro ou legatário.
Quem pode ser deserdado? Somente o herdeiro necessário pode ser deserdado.Quem pode ser deserdado? Qualquer sucessor (seja herdeiro ou legatário) pode ser indigno.
A deserdação se dá por ato praticado antes da abertura da sucessãoA indignidade é reconhecida por ato praticado antes ou depois da abertura da sucessão
Prazo de 4 anos, a contar da data da abertura do testamento.Prazo de 4 anos, contados da abertura da sucessão.

O caso Cid Moreira

Agora que já temos o embasamento teórico, vamos ao caso que está dando o que falar.

A herança de Cid

Segundo o advogado da viúva, Fátima Sampaio, Cid “manifestou em testamento público, motivadamente, a vontade de deserdar os dois filhos, com base na indignidade prevista no Código Civil brasileiro”.

O fato de Cid Moreira realizar um testamento dizendo que quer deserdar os filhos automaticamente tem efeitos?

Não.

Apesar da vontade do testador, Cid Moreira, há necessidade de reconhecimento de uma das causas de deserdação através de decisão judicial.

O caso é realmente de Deserdação ou de Indignidade?

O caso de Cid Moreira, conforme as informações disponíveis, aparenta ser primariamente um caso de deserdação, mas possui elementos que poderiam, dependendo da interpretação judicial, levar a discussões sobre indignidade.

A hipótese estaria configurada como deserção, isto porque:

  1. houve manifestação expressa da vontade de Cid Moreira em testamento público, como exige o art. 1.964 do Código Civil;
  2. direcionou-se o testamento especificamente contra herdeiros necessários (seus filhos), conforme permite o art. 1.961 do CC;
  3. o advogado da viúva mencionou que Cid “manifestou em testamento público, motivadamente, a vontade de deserdar os dois filhos”, indicando que houve declaração de causa, como requer o art. 1.964 do CC.

Interpretação judicial

Em 2021, os filhos de Cid, entraram na Justiça pedindo a interdição do pai. Eles alegavam que a esposa estava dilapidando o patrimônio do apresentador, aproveitando-se de sua suposta senilidade. Dessa maneira, as ações dos filhos, como pedir a interdição do pai e acusar a esposa de dilapidar o patrimônio, poderiam se enquadrar na causa de deserdação por “injúria grave” (art. 1.962, II do CC).

Por outro lado, as acusações feitas pelos filhos contra Cid e sua esposa poderiam, em tese, também se enquadrar no art. 1.814, II do CC: “que houverem acusado caluniosamente em juízo o autor da herança ou incorrerem em crime contra a sua honra, ou de seu cônjuge ou companheiro”.

Enfim, a decisão final dependerá da interpretação judicial dos fatos e provas apresentados:

  1. Se o juiz entender que o testamento de Cid Moreira cumpre todos os requisitos legais da deserdação e que as causas alegadas são válidas e comprovadas, manterá a deserdação.
  2. Se o juiz considerar que as acusações dos filhos foram de fato caluniosas e graves o suficiente, poderá haver uma declaração de indignidade, mesmo que o testamento não seja considerado válido para fins de deserdação.
  3. Existe ainda a possibilidade de o juiz entender que não houve nem deserdação válida nem motivos para indignidade, o que levaria à anulação da exclusão dos herdeiros.
  4. O juiz também precisará avaliar se Cid estava em pleno gozo de suas faculdades mentais ao fazer o testamento, considerando os laudos médicos mencionados.

Como o tema já caiu em concursos

MPE-GO - 2016 - MPE-GO - Promotor de Justiça Substituto

No tocante à indignidade sucessória e deserdação, assinale a alternativa correta:

Alternativas

A)o direito de demandar a exclusão do herdeiro ou legatário indigno extingue-se em dois anos, contados da abertura da sucessão.

B)são pessoais os efeitos da exclusão por indignidade, de forma que os descendentes do herdeiro excluído sucedem, como se ele morto fosse antes da abertura da sucessão.

C)a indignidade sucessória e a deserdação alcançam qualquer classe de herdeiro (necessário ou facultativo).

D)a deserdação não necessita de um testamento.

Gabarito: B

Referências

CAVALCANTE, Márcio André Lopes. O herdeiro que seja autor, coautor ou partícipe de ato infracional análogo ao homicídio doloso praticado contra os ascendentes fica excluído da sucessão. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/9fd7c9fc436c0b439e0b56159eafacc8>. Acesso em: 08/10/2024.

MEDEIROS, Danielly. Diferença: deserdação X indignidade. Direito em quadrinhos. Disponível em: <https://direitoemquadrinhos.blogspot.com/2012/02/diferenca-deserdacao-x-indignidade.html>.


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