As atribuições da Guarda Municipal têm sido muito questionadas e é objeto de muitas controvérsias na jurisprudência recente. Para contribuir nesse debate jurídico, trago parte de decisão que tomei em determinado caso concreto.
Não prospera a preliminar da Defensoria Pública quanto à ilegalidade da atuação da Guarda Municipal.
Contexto e Precedentes Jurisprudenciais
Este juízo conhece o entendimento paradigma do REsp n. 1.977.119/SP, rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 16/8/2022, DJe de 23/8/2022. Pontuo, entretanto, que se trata de um precedente da jurisprudência, sem efeito vinculante, que encontra outros vários julgados em sentido diverso. Talvez o STF defina quanto à atuação da Guarda Municipal no Tema 656, mas o RE 608588 ainda está pendente de julgamento.
De forma concisa e resumida, eis o entendimento deste magistrado, enquanto a questão não é pacificada nos tribunais superiores.
O regime jurídico da Guarda Municipal é extraído principalmente da Constituição Federal, no capítulo que trata de segurança pública (art. 144, § 8º), e do seu Estatuto Geral consubstanciado na Lei 13.022/2014. Dessas normas, aliado ao disposto no art. 9º da Lei 13.675/18, pode-se concluir que: i) a Guarda Municipal integra legalmente o Sistema Único de Segurança Pública; ii) pode realizar patrulhamento preventivo (inc. III, art. 3º, Lei 13.022/14); iii) tem como competências específicas (art. 5º, Lei 13.022/14), dentre outras, atuar, preventiva e permanentemente, no território do Município, para a proteção sistêmica da população que utiliza os bens, serviços e instalações municipais (inc. III); iv) deve colaborar, de forma integrada com os órgãos de segurança pública, em ações conjuntas que contribuam com a paz social (inc. IV); v) deve encaminhar ao delegado de polícia, diante de flagrante delito, o autor da infração, preservando o local do crime, quando possível e sempre que necessário (inc. XIV); aliás, a possibilidade de atuação conjunta é reforçada pelo parágrafo único do mesmo art. 5º do Estatuto.
A propósito, com as novas tecnologias e as comunicações instantâneas (até mesmo em grupos informais de rede social), essa atuação conjunta e colaboração entre os agentes que atuam na segurança pública tem sido cada vez mais comum, principalmente nos casos de urgência; bom que seja e continue assim, porque a população será a mais beneficiada, como destinatária da paz social, da ordem pública de que tanto fala o ordenamento jurídico.
Sem dúvida, diante desse regime jurídico estabelecido, é evidente que o guarda municipal, até na condição de agente público e detentor do ‘poder de polícia’ (art. 78 do CTN) pode muito mais do que um cidadão comum, inclusive limitando direitos ou a liberdade das pessoas. A atuação da Guarda Municipal não se restringe à mera possibilidade de realizar o flagrante que ‘lhe caia no colo’, nos termos da parte inicial do art. 301 do CPP. Pode-se até discutir se o guarda municipal tem o ‘dever’ legal de prender em flagrante; mas sem dúvida não se lhe pode negar a possibilidade de atuação e, inclusive, de eventual responsabilização em caso de omissão voluntária – servidor público que é.
A possibilidade de flagrante (e até o dever em precedente do STF) é reconhecida por ambos os tribunais superiores:
[…] 1. A guarda municipal pode, e deve, prender quem se encontre em situação de flagrante delito, nos termos do art. 301 do CPP. Precedentes. […] (RE 1281774 AgR-ED-AgR, Rel.: ALEXANDRE DE MORAES, Rel. p/ Acórdão: ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, j. 13/06/2022, PUBLIC 26-08-2022).
[…] “os Guardas Municipais, assim como qualquer outra pessoa do povo, ao contrário do entendido externado pela nobre Defesa, pode deter alguém pela prática de crime, desde que em flagrante delito” (fl. 88), não havendo que se falar em nulidade por este fundamento. […] (AgRg no HC n. 748.762/SP, relator Ministro Jesuíno Rissato (Desembargador Convocado do Tjdft), Quinta Turma, julgado em 16/8/2022, DJe de 23/8/2022).
Regime jurídico da Guarda Municipal
A busca pessoal, prevista no art. 244 do CPP, desde que realizada nos ditames da lei, não pode ser diligência subtraída da Guarda Municipal, inclusive como inerente ao “patrulhamento preventivo”, princípio mínimo de sua atuação, nos termos do inc. III do art. 3º do seu respectivo Estatuto e até do ‘poder de polícia’. Afinal, que tipo de prevenção se espera de um patrulhamento, se nem isso lhes for permitido; é de ‘prevenção’ com o ‘patrulhamento’ que a Lei 13.022/14 trata, não de mera vigilância.
Embora a investigação não seja tarefa exclusiva da polícia judiciária (Civil e Federal), como se sabe, há se reconhecer a impossibilidade de a Guarda Municipal ‘investigar’, pois isso fugiria muito do regime jurídico hoje existente em relação a suas atribuições, principalmente, mas não exclusivamente, voltadas à proteção dos bens, serviços e instalações da municipalidade.
Todavia, não se pode confundir atividade típica de investigação, inerente à polícia judiciária, com diligências mínimas, de caráter ostensivo, pragmático e imediato, que a atuação de agentes públicos que estão nas ruas requer. Note-se, no ponto, que nossa tradição jurídica nunca foi muito exigente em relação a essa separação de atribuições, tanto que permite a lavratura de termos circunstanciados por policiais militares; permite o cumprimento de diligências judiciárias pela polícia militar, dentre outros exemplos, sem que isso implique em nulidade. No final das contas, todas essas instituições são sustentadas pelo cidadão e trabalham para um objetivo comum, muito valoroso para a sociedade. Não há razão para não contar com a colaboração de todas elas (dentro das suas atribuições) e seria um tremendo desperdício de recursos públicos.
Dentro desse contexto jurídico, então, este juízo reconhece a possibilidade de a Guarda Municipal:
- realizar patrulhamento preventivo, inclusive com a realização de busca pessoal, nos termos do art. 244 do CPP, exercendo o poder de polícia previsto no art. 78 da Lei 5.172/66;
- atuar, preventiva e permanentemente, no território do Município, para a proteção sistêmica da população que utiliza os bens, serviços e instalações municipais;
- colaborar, de forma integrada com a Polícia Militar e a Polícia Civil, dentre outros órgãos de segurança pública, em ações conjuntas que contribuam com a paz social;
- capturar e prender em flagrante nas situações do art. 302 do CPP, encaminhando ao delegado de polícia o autor da infração, inclusive ficando responsável pela preservação do local do crime e dos vestígios para início da cadeia de custódia (art. 158-A, § 2º do CPP);
- aliás, embora isso deva ser absolutamente excepcional e sem desvio de função, em caso de flagrante delito com justa causa (Tema 280/STF) ou quando haja o consentimento do morador, até o ingresso em domicílio é constitucionalmente permitido (art. 5º, XI).
O que não pode a Guarda Municipal é usurpar as atribuições que são próprias da polícia judiciária, realizando, por exemplo, típicas diligências investigatórias, que se protraem no tempo, para desvendar crimes e autoria; ainda, não pode exercer um policiamento ostensivo e indistinto, suplantando funções administrativas da Polícia Militar. Mas pode sim, em sua atividade, colher breves e imediatas informações e dados que lhe viabilizem uma atuação mais segura, principalmente quando se deparam ou são comunicadas de um possível flagrante ou atuam em conjunto com os demais órgãos de segurança pública.
No caso concreto, a Polícia Militar atendeu primeiramente a ocorrência, lavrou BO e angariou imagens e informações preliminares, inclusive sobre a placa do veículo e algumas características dos agentes (repassadas por vizinha, que teria filmado a ação) e a região para a qual teriam ido.
Aparentemente, a PM imediatamente repassou esses dados em grupo de WhatsApp, para outros agentes de segurança (no intuito de buscar auxílio). A Guarda Municipal prontamente atuou em cooperação, de posse dessas informações iniciais, dirigindo-se à região indicada. Em patrulhamento, encontram um dos réus em frente da sua residência, este que prontamente admitiu participação no furto e informou que os objetos subtraídos estavam dentro da casa. Pelo que consta isso aconteceu pouco tempo depois do fato, em provável flagrante presumido (art. 302, IV, CPP), que, não custa lembrar, poderia demandar a atuação de “qualquer do povo” (art. 301 do CPP).
Não importa saber como a GM foi acionada (talvez pelas informações repassadas em grupo de agentes de segurança), nem como chegou até os autores do crime; o importante é constatar que não fez nada de ilícito e não autuou isoladamente em atividades típicas de investigação; ao contrário, o fez em pronta colaboração com a PM. Cooperação que não depende de nenhum pedido ou solicitação formal ou de acionamento administrativo mais elaborado/demorado. Até porque, situações de flagrante demandam urgência e não comportam expedientes mais burocráticos (que, aliás, não fazem sentido e não são de lei exigidos).
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Competências e Atuação da Guarda Municipal
Quando acontece um crime e há uma situação de flagrante, até pela urgência, é absolutamente conveniente (para a sociedade) que todos os agentes de segurança disponíveis na rua possam ajudar na pronta localização e captura dos envolvidos. Não conheço nenhuma regra legal que impeça essa atuação conjunta; ao contrário, até recomendam; existe previsão normativa e isso é muito razoável até pelo interesse público envolvido numa prisão em flagrante. Sim, a possibilidade do flagrante sempre foi ditada pelo interesse público envolvido na captura imediata dos agentes criminosos.
Os réus não foram perguntados sobre isso no interrogatório judicial, mas pela versão do guarda municipal, além da justa causa (decorrente da assunção de culpa e indicação da res furtiva), houve até consentimento para ingresso na residência para recuperação dos objetos. Enfim nada de ilícito na atuação da Guarda Municipal; ao contrário, merece elogio a corporação por esse ‘apoio’ (esse foi o termo usado pelo policial militar no seu depoimento da delegacia) que prontamente deram numa situação urgente de flagrante. —–
Colocadas as premissas jurídicas e feito o recorte no caso concreto, na condição de professor de processo penal, espero ter contribuído com a compreensão do tema, bastante importante e com muitos reflexos no dia a dia da persecução penal.
Leonardo Ribas Tavares – professor do Estratégia Carreira Jurídica e Juiz de Direito da 3ª Vara Criminal de Cascavel/PR.