Introdução
O Superior Tribunal de Justiça (STJ), através de sua Sexta Turma, proferiu uma decisão significativa no Habeas Corpus nº 879.757-GO, julgado em 20 de agosto de 2024.
A decisão, relatada pelo Ministro Sebastião Reis Júnior, aborda a constitucionalidade e legalidade da obrigatoriedade de fornecimento de perfil genético por condenados, conforme previsto no artigo 9º-A da Lei de Execução Penal (LEP).
Este caso coloca em evidência o delicado equilíbrio entre a eficácia da persecução penal e a proteção dos direitos fundamentais dos condenados, especialmente o princípio da não autoincriminação (nemo tenetur se detegere).
Então, vamos aprofundar o que o STJ já tinha decidido em 2022 através da 5ª Turma e, agora de outro aspecto, o que foi trazido pela 6ª Turma:
É entendimento assente no STJ de que o art. 9º-A da Lei de Execução Penal expressamente prevê que os condenados por crimes praticados, dolosamente, com violência de natureza grave contra pessoa serão submetidos, obrigatoriamente, à identificação do perfil genético, mediante extração do DNA.
No caso dos autos, o paciente cumpre pena por lesão corporal no âmbito doméstico, cárcere privado e estupro, estando contemplado pelo que reza a lei.
O Tribunal de origem concluiu pela possibilidade da coleta de material biológico para extração do perfil genético e sua inclusão em banco de dados estatal, não implicando em ofensa ao princípio da não autoincriminação.
STJ. 5ª Turma. AgRg no HC 675.408/MG, Rel. Min. João Otávio de Noronha, julgado em 22/02/2022.
Contexto fático e jurídico
O caso em análise envolve um condenado por crime sexual contra vulnerável (art. 217-A do Código Penal) que se recusou a fornecer material genético para o banco de dados de perfis genéticos, conforme exigido pela Lei de Execução Penal.
Os principais pontos jurídicos abordados na decisão são:
- A constitucionalidade do art. 9º-A da LEP, que exige o fornecimento de perfil genético por condenados por crimes violentos ou hediondos.
- A possível violação do princípio da não autoincriminação.
- A caracterização da recusa em fornecer o material genético como falta grave.
Análise da Decisão
Fundamentos legais
A coleta de perfil genético de condenados no Brasil tem sua origem na Lei nº 12.654/2012, que alterou a Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/1984) e a Lei de Identificação Criminal (Lei nº 12.037/2009). Posteriormente, a Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime) ampliou o escopo da coleta obrigatória.
Ou seja, a decisão do STJ fundamenta-se primariamente no art. 9º-A da Lei de Execução Penal, introduzido pela Lei nº 12.654/2012 e modificado pela Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime).
Este dispositivo prevê:
"O condenado por crime doloso praticado com violência grave contra a pessoa, bem como por crime contra a vida, contra a liberdade sexual ou por crime sexual contra vulnerável, será submetido, obrigatoriamente, à identificação do perfil genético, mediante extração de DNA - ácido desoxirribonucleico, por técnica adequada e indolor."
Outros dispositivos relevantes:
Art. 50, VIII, da LEP: Caracteriza como falta grave a recusa em submeter-se ao procedimento de identificação do perfil genético.
Art. 5º, LVIII, da Constituição Federal: Garante que o civilmente identificado não será submetido a identificação criminal, salvo nas hipóteses previstas em lei.
Argumentos principais
1)Não violação do princípio da não autoincriminação: o STJ entendeu que o fornecimento de perfil genético não viola o princípio nemo tenetur se detegere. Isso porque não há relação com uma investigação específica em curso, mas está sim relacionado a um procedimento de identificação criminal.
Ademais, o STJ baseou-se em doutrinadores renomados para fundamentar sua decisão:
Renato Brasileiro de Lima: define o princípio da não autoincriminação como uma proteção contra a produção de provas incriminatórias pelo próprio acusado.
Eugênio Pacelli: discute a garantia da ordem pública como justificativa para medidas restritivas de direitos.
Aury Lopes Jr.: aborda o princípio da contemporaneidade em medidas cautelares.
2) Distinção entre coleta para investigação e para identificação: a Corte fez uma distinção crucial entre a coleta de material genético para uma investigação em andamento (que poderia violar o princípio da não autoincriminação) e a coleta para fins de identificação criminal (que não violaria tal princípio).
3) Analogia com outros métodos de identificação: o tribunal comparou a coleta de DNA com outros métodos de identificação criminal, como a coleta de impressões digitais, argumentando que ambos são procedimentos de identificação legítimos.
4) Prevenção especial negativa: a decisão ressalta que a coleta de perfil genético serve como um mecanismo de prevenção especial negativa, visando desencorajar a reincidência criminal.
5) Falta grave: o STJ confirmou que a recusa em fornecer o material genético constitui falta grave, conforme previsto nos artigos 50, VIII, e 9º-A, § 8º, da LEP.
Implicações da Decisão
1)Fortalecimento do banco de dados genéticos
A decisão reforça a política de expansão do banco nacional de perfis genéticos, uma ferramenta cada vez mais importante na investigação criminal.
2) Potencial aumento na elucidação de crimes
Com mais perfis genéticos no banco de dados, há um potencial aumento na capacidade de solucionar crimes passados e futuros.
3) Debate sobre direitos individuais
A decisão reaviva o debate sobre o equilíbrio entre segurança pública e direitos individuais, especialmente o direito à privacidade genética.
4) Impacto na execução penal
A caracterização da recusa como falta grave pode ter implicações significativas na progressão de regime e outros benefícios dos condenados.
Críticas
Potencial violação da privacidade
Críticos argumentam que a coleta compulsória de DNA pode violar o direito à privacidade, especialmente considerando a sensibilidade das informações genéticas.
Nesse sentido, autores como Denise Hammerschmidt argumentam que a coleta compulsória de DNA viola o direito à privacidade genética, um aspecto fundamental da dignidade humana1.
Risco de uso indevido dos dados
Há preocupações sobre o potencial uso indevido ou vazamento das informações genéticas armazenadas, o que poderia levar a discriminações ou outros prejuízos aos indivíduos.
Helena Machado e Susana Silva, em seu artigo “Confiança, Voluntariedade e Supressão dos Riscos: Expectativas, Incertezas e Governação das Aplicações Forenses de Informação Genética” (in: FROIS, C. “A Sociedade Vigilante”, 2008), alertam para os riscos de discriminação baseada em informações genéticas.
Pendência no STF
É importante notar que o tema ainda está pendente de julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) através do RE 973.837/MG (Tema 905), o que pode potencialmente alterar o entendimento sobre a questão.
Como o tema foi cobrado em provas
Prova: FGV - 2024 - TJ-RJ De acordo com a Lei de Execução Penal, o condenado por crime doloso praticado com violência grave contra a pessoa, bem como por crime contra a vida, contra a liberdade sexual ou por crime sexual contra vulnerável, será submetido, obrigatoriamente, ao(à): Alternativas A)encarceramento em “solitária” por um período de três meses. B)exame e diagnóstico psiquiátrico. C)identificação do perfil genético, mediante extração de DNA. D)cadeia de custódia. E)trabalho em penitenciária agrícola. Gab: C
Conclusão
Por fim, a decisão do STJ no HC 879.757-GO representa um marco importante na jurisprudência sobre identificação criminal e coleta de material genético no Brasil.
Ao validar a obrigatoriedade do fornecimento de perfil genético por condenados, o tribunal sinaliza uma postura que prioriza a eficácia da persecução penal e a prevenção de crimes.
No entanto, esta decisão também suscita debates importantes sobre os limites do poder estatal na coleta e armazenamento de dados sensíveis dos cidadãos, mesmo que condenados.
Portanto, o equilíbrio entre segurança pública e direitos individuais continua sendo um desafio central no direito penal e processual penal brasileiro.
A pendência do julgamento no STF adiciona uma camada de incerteza ao tema, podendo potencialmente alterar o panorama jurídico nos próximos anos. Profissionais do direito, acadêmicos e a sociedade em geral devem continuar atentos aos desdobramentos deste importante debate.
- HAMMERSCHMIDT, D. Intimidade Genética & Direito da Personalidade. Curitiba: Juruá, 2007. ↩︎
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