Polêmica: edital do BNDES em concurso exclusivamente para negros

Polêmica: edital do BNDES em concurso exclusivamente para negros

* Marcos Vinícius Manso Lopes Gomes. Defensor Público do estado de São Paulo. Professor de Direito Constitucional do Estratégia Carreiras Jurídicas.

Concurso Pequena África do BNDES

Concurso exclusivamente

O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) publicou edital para o concurso denominado “Pequena África” – Concurso Internacional de Arquitetura e Urbanismo para seleção de ideias de intervenções arquitetônicas e urbanísticas a serem realizadas na região da Pequena África, localizada nos bairros Santo Cristo, Gamboa, Saúde, Centro, Cidade Nova e Estácio, na cidade do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.

Porém, um ponto vem causando inúmeras polêmicas no âmbito jurídico e político, qual seja, trata-se de um concurso exclusivamente para negros. Vejamos trecho do edital:

“Poderão participar do Concurso pessoas físicas ou jurídicas desde que, em quaisquer das hipóteses, o participante isolado ou o líder/representante de pessoa jurídica SEJA ARQUITETO NEGRO ou URBANISTA NEGRO, devidamente registrado no seu conselho regional de origem ou congênere, diante da relevância da temática e pelo contexto histórico e cultural em que serão implantadas as intervenções urbanísticas, sem prejuízo das demais qualificações exigidas neste edital”1.

A partir da polêmica instaurada, questiona-se: seria possível seleção exclusivamente baseada na cor da pele? Historicamente, a (in)constitucionalidade do sistema de quotas foi muito discutida filosoficamente em nosso país. Porém, pragmaticamente, esse tema vem sendo pouco debatido. Assim, iremos abordar um tema que o aluno raramente irá encontrar nos manuais jurídicos sobre o tema!

Sistema de quotas: argumentos contrários e favoráveis

Conforme exposto, filosoficamente, muito se discute acerca da possibilidade ou não de se adotar sistemas de quotas em nosso país. O tema é extremamente controvertido, motivo pelo qual merece uma atenção e detalhamento especial, notadamente em relação aos argumentos contrários e a favor das cotas.

Argumentos Contrários
Viola o princípio da isonomia, criando uma discriminação reversa.
Viola o critério republicano da meritocracia.
Cada pessoa deve ser avaliada individualmente e não como membro de um grupo.
Trata-se de medida imediatista e inapropriada para a solução do problema.
Argumentos à Favor
Necessidade de uma justiça compensatória, ajustando falhas cometidas no passado.
Trata-se de implementar a justiça retributiva.
O sistema de cotas promove a diversidade, permitindo uma sociedade mais tolerante.
Ainda que não solucione o problema definitivamente, promove uma igualdade real.

Julgados da Suprema Corte

Analisados os argumentos contrários e favoráveis, imprescindível que o concurseiro tenha conhecimento de dois julgados da nossa Suprema Corte, sendo que o primeiro envolve cotas em universidades públicas e o segundo envolve cotas em concursos públicos.

STF, ADPF nº 186: ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. ATOS QUE INSTITUÍRAM SISTEMA DE RESERVA DE VAGAS COM BASE EM CRITÉRIO ÉTNICO-RACIAL (COTAS) NO PROCESSO DE SELEÇÃO PARA INGRESSO EM INSTITUIÇÃO PÚBLICA DE ENSINO SUPERIOR. ALEGADA OFENSA AOS ARTS. 1º, CAPUT, III, 3º, IV, 4º, VIII, 5º, I, II XXXIII, XLI, LIV, 37, CAPUT, 205, 206, CAPUT, I, 207, CAPUT, E 208, V, TODOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE. I - Não contraria - ao contrário, prestigia - o princípio da igualdade material, previsto no caput do art. 5º da Carta da República, a possibilidade de o Estado lançar mão seja de políticas de cunho universalista, que abrangem um número indeterminados de indivíduos, mediante ações de natureza estrutural, seja de ações afirmativas, que atingem grupos sociais determinados, de maneira pontual, atribuindo a estes certas vantagens, por um tempo limitado, de modo a permitir-lhes a superação de desigualdades decorrentes de situações históricas particulares.

No âmbito federal, a Lei nº 12.990 de 2014 reserva aos negros 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União. Em julgamento realizado em 08/06/2017, pelo Supremo Tribunal Federal, restou decidido, na ADC nº 41/DF, questionando-se a constitucionalidade da Lei n° 12.990/2014, que “é constitucional a reserva de 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública direta e indireta. É legítima a utilização, além da autodeclaração, de critérios subsidiários de heteroidentificação, desde que respeitada a dignidade da pessoa humana e garantidos o contraditório e a ampla defesa”.

Uma conclusão muito oportuna para os concursos de carreiras jurídicas apresenta Marcelo Novelino (NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 5ª Edição. Rio de Janeiro: Forense. São Paulo: Método, 2011, página 439):

“Em síntese conclusiva, as ações afirmativas representam uma evolução do princípio da igualdade em seu aspecto substancial. São medidas tomadas com o intuito de implementar um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: a redução das desigualdades sociais. (...) Do ponto de vista das políticas públicas, ainda que o sistema de cotas (reserva de vagas) não seja a solução mais justa e adequada para resolver o problema de forma definitiva, não se pode fechar os olhos para a realidade atual daqueles que não tiveram igualdade real de condições e oportunidades para alcançar determinadas posições na sociedade”.

Seleção exclusivamente baseada na cor da pele

Analisada a possibilidade de adotarmos ações afirmativas inerentes a um sistema de quotas, a partir desse momento, buscar-se-á analisar, pragmaticamente, se um programa de quotas e seleção exclusivamente baseada na cor da pele seria ou não constitucional.

Assim, a grande questão é: como verificar se uma ação afirmativa é válida? O STF sempre se voltou mais para a análise filosófica e menos para as questões da validade. Ou seja, tanto nossos Tribunais quanto nossa doutrina apenas discutem se a ação afirmativa é possível ou não, deixando em segundo plano eventuais critérios para sua validade. Mas, nos EUA, por exemplo, debatem-se amplamente as questões pragmáticas e de validade, com destaque para dois casos extremamente importantes.

O primeiro se refere ao caso Regents of the University of California vs. Bakke, 438 U.s. 265 (1978), que se tratava de um percentual de 16% para o sistema de cotas para ensino superior. Nesse caso, definiu-se o critério.

O segundo se refere ao caso Jennifer Gratz et al vs. Lee Bollinger, 539 U.S., 234 (2003). Aqui se tratava de pontuação para ensino superior. Nesse caso, ratificou-se o critério.

No Commum Law, a grande importância é definir o critério para a formação de precedentes. As opções a serem adotadas pelo Judiciário seria um critério “soft” (leve), “hard” (forte) ou “strict” (radical). A corte americana adotou o critério radical, ou seja, o crivo será o mais rigoroso possível.

Critérios para a ação afirmativa

De acordo com a Suprema Corte Americana, teríamos que respeitar três condições: a) imperativo interesse do governo, ou seja, tem que demonstrar que o governo possui interesse imperativo no caso concreto; b) programa desenhado sob medida para o fim visado, analisando-se a proporcionalidade no caso concreto; c) demonstração de que o fim não seria alcançado, senão com o uso do meio proposto, ou seja, aquele meio seria o único disponível para alcançar o fim buscado. Se qualquer critério não for respeitado, a ação afirmativa será inconstitucional. Por fim, conforme a jurisprudência americana, é possível termos ação afirmativa, mas não como elemento essencial de admissão.

Portanto, a partir dos critérios acima analisados pela doutrina e jurisprudência dos EUA, a seleção em análise seria de constitucionalidade duvidosa. Entrementes, isso não significa que o critério norte-americano deva ser aquele que o Brasil adotou.

Análise de casos

No caso DPU x Magazine Luiza, a referida empresa realizou programa de trainee exclusivamente para negros. Posteriormente, fora ajuizada ACP pela Defensoria Pública com escopo de obrigar a empresa privada a reiniciar programa de trainee, excluindo-se qualquer tipo de exclusividade de inscrição fundada em raça, cor, etnia ou origem nacional.

O processo tramitou na 15ª Vara de Brasília, sob o número 0000790-37.2020.5.10.0015. A referida ação restou julgada improcedente. Destacamos, em apertada síntese, os fundamentos para a improcedência do pedido:

  • Argumento doutrinário: princípio da igualdade;
  • Normativa Internacional: Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial;
  • Normativa Nacional: Constituição Federal e Estatuto da Igualdade Racial;
  • Argumento jurisprudencial: decisões do STF sobre o tema.

Ocorre que, mais uma vez, os magistrados somente enfrentaram a questão filosófica, deixando de lado o critério quantitativo e prático, o que não foi realizado nem mesmo em segunda instância (TRT).

Por outro lado, em um caso mais antigo, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro julgou inconstitucional a Lei Estadual n° 3.708/02, na medida em que afrontou o princípio da razoabilidade ao criar a reserva de 40% de vagas na Universidade Estadual para pardos e negros e 50% para egressos de Escolas Públicas, restando apenas 10% para brancos oriundos de escolas particulares.

0023764-08.2003.8.19.0001 – APELAÇÃO - Ementa sem formatação - 1ª Ementa: Des(a). MARCUS TULLIUS ALVES - Julgamento: 14/02/2005 - NONA CÂMARA CÍVEL - ENSINO SUPERIOR - SISTEMA DE COTAS - APROVACAO DE CANDIDATO - DIREITO LÍQUIDO E CERTO - INCONSTITUCIONALIDADE DE LEI - RECURSO PROVIDO - "ENSINO UNIVERSITÁRIO - SISTEMA DE COTAS INSTITUÍDO NA UNIVERSIDADE DO RIO DE JANEIRO - MINORIAS - AUTO DECLARAÇÃO DE RAÇA - LEI ESTADUAL N° 3.708/02 - INCONSTITUCIONALIDADE - DIREITO LÍQUIDO E CERTO DE CANDIDATO APROVADO EM CONCURSO PÚBLICO DE INGRESSO NA FACULDADE DE MEDICINA MANTIDA PELA ENTIDADE DE ENSINO COM NOTA SUFICIENTE AO SEGUIMENTO DO CURSO - APELO PROVIDO - DECISÃO REFORMADA PARA COM BASE NO RECONHECIMENTO DE DIREITO LÍQUIDO E CERTO GARANTIR AO ALUNO A MATRICULA PERSEGUIDA. A Lei Estadual n° 3.708/02 é inconstitucional na medida em que afronta o princípio da razoabilidade ao criar a reserva de 40% de vagas na Universidade Estadual para pardos e negros e 50% para egressos de Escolas Públicas, restando apenas 10% para brancos oriundos de escolas particulares. Enquadrando-se o impetrante entre estes últimos e que obteve no certame público nota superior aos demais é de lhe ser reconhecido direito líquido e certo a obtenção da devida matrícula de molde a se lhe assegurar garantia constitucional da igualdade, inclusive, racial advertindo-se da violação ao princípio da summum jus, summa injuria."2

Resumo de apoio aos alunos

De forma a apresentarmos um material extremamente didático aos nossos alunos, iremos destacar duas correntes existentes sobre o tema, com seus respectivos fundamentos:

1ª corrente

i) Com a passagem de um Estado Social para um Estado Democrático Constitucional de Direito, passa-se a ver a democracia não só como o direito da maioria, como também o respeito aos direitos fundamentais da minoria, sempre pautando-se na ideia de dignidade da pessoa humana como um valor supremo. Seguindo essa linha de raciocínio, destaca-se mais um avanço no conceito de igualdade, a qual passa a ser formal, material e também como reconhecimento. Verifica-se o referido conceito no voto do Ministro Luíz Roberto Barroso, na ADC n. 41: “Igualdade como reconhecimento, significando o respeito devido às minorias, sua identidade e suas diferenças, sejam raciais, religiosas, sexuais ou quaisquer outras”.

ii) Tanto a Lei n. 12.288/2010 (Estatuto da Igualdade Racial), no seu art. 39, como também a Convenção Internacional Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, no art. 1º, 4, estimulam a referida prática.

iii) O referido programa fortalece a ideia de justiça compensatória, ajustando falhas cometidas no passado. Trata-se de implementar a justiça retributiva. O programa promove a diversidade, permitindo uma sociedade mais tolerante. Ainda que não solucione o problema definitivamente, promove uma igualdade real.

iv) Importante ressaltar que, em duas oportunidades, a Suprema Corte declarou constitucional o sistema de quotas – ADPF nº 186 e ADC nº 41/DF. Portanto, conclui-se que o programa de trainee está em sintonia com a normativa internacional e constitucional, promovendo-se a igualdade material e a igualdade como reconhecimento. Ademais, está em sintonia com o Estatuto da Igualdade Racial e o atual posicionamento do STF.

v) não aplicação dos critérios adotados nos EUA, notadamente diante da essência da realidade brasileira, bem como dos fins almejados pelo concurso de seleção.

2ª corrente

i) O estudioso deverá realizar uma diferenciação entre programa de quotas e seleção exclusivamente baseada na cor da pele, o que a Constituição Federal vedaria.

ii) CF, Art. 7º – São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: XXX – proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil.

iii) CF, Art. 3º – Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

iv) A referida contratação, ao invés de promover a igualdade, estaria gerando a exclusão de outros grupos de trabalhadores, a exemplo de índios, refugiados, asiáticos e outras raças ou etnias – minoritárias ou não. Excluiria, ainda, as mulheres brancas, asiáticas, necessitada, dentre outras.

v) A seleção teria exorbitado os limites e objetivos do Estatuto da Igualdade Racial.

vi) A ação afirmativa deve promover a igualdade de oportunidades, sem privar a generalidade dos indivíduos dos meios de participação social no mercado de trabalho.

vii) O programa fere o princípio da proporcionalidade, excluindo completamente determinadas pessoas de ingressarem nos programas da empresa – ainda que futuramente.

viii) É possível termos ação afirmativa, mas não como elemento essencial de admissão no certame. Por mais que se deseje alterar a realidade brasileira, existem marcos normativos e limites a se respeitar.

Em conclusão, de fato, o tema é extremamente polêmico e ainda atrairá muitos debates acadêmicos. Nosso objetivo, no presente trabalho, foi demonstrar as correntes e posicionamentos doutrinários sobre o tema e possibilitar maior reflexão por nossos alunos.


  1. Disponível em https://www.concursobndespequenaafrica.com.br/. Acesso em 05 de abril de 2025. ↩︎
  2. Ao que parece, o referido julgado foi, inclusive, objeto de uma questão de prova dissertativa do TJRJ. Vejamos a questão de prova do XXXIX Concurso para Ingresso na Magistratura de Carreira do Estado do Rio de Janeiro: “Embora aprovado em 6º lugar no concurso vestibular de 2003, para o curso de Desenho Industrial, com 79,75 pontos, ao pretender matricular-se em uma das 36 vagas oferecidas, certo candidato viu-se impedido de fazê-lo por isso que, reservadas pelas Leis de nº 3.524/2000 (50%) e 3.709/2001 (40%), nada menos do que noventa por cento (90%) dessas, aos estudantes egressos da rede de ensino público (50%), ou declaradamente negros ou pardos (40%), apenas 04 (quatro) daquelas vagas inicialmente oferecidas remanesciam em disputa direta.
    Pedindo declaração incidental de inconstitucionalidade das leis em questão, o candidato aforou mandado de segurança, impugnado pela autoridade apontada como coatora ao argumento de que as leis em questão, autênticas ações afirmativas, apenas cumpriam a Constituição, dando-lhe efetividade ao princípio da isonomia. Deve o juiz acolher-lhe o pleito?” ↩︎

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