Olá, pessoal! Aqui é o professor Adriano Álvares.
Comentaremos este estudo que visa dissecar o intrincado cenário que se estabeleceu entre a promessa de inovação disruptiva e a inegociável necessidade de segurança jurídica. Convidamos todos a acompanhar a análise detalhada dos eventos que culminaram na recente suspensão judicial de normativas e que impulsionaram o debate para as esferas do Legislativo e do Judiciário, moldando o futuro da propriedade imobiliária digital em nosso país.
O ano de 2025 será assinalado como um marco divisório no debate concernente à tokenização imobiliária no Brasil. O que se iniciou como uma promessa tecnológica de democratização do acesso ao mercado imobiliário, converteu-se celeremente em uma crise institucional. Essa crise evidenciou as tensões intrínsecas entre a inovação financeira, a segurança jurídica e as competências regulatórias.
Neste artigo, propomo-nos a analisar os eventos ocorridos ao longo deste ano, culminando na recente suspensão judicial da Resolução Cofeci nº 1.551/2025. Tal normativa visava a regulamentar as denominadas “transações imobiliárias digitais“. Isso resultou no redirecionamento da controvérsia para a esfera do Poder Legislativo e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Era digital
A tokenização imobiliária insere-se em um movimento de escopo global conhecido como tokenização de ativos do mundo real — real world assets (RWA). Este é um processo por meio do qual ativos físicos ou financeiros tradicionais representam-se digitalmente mediante tokens registrados em redes descentralizadas.
Neste contexto, emerge o conceito de propriedade digital. Com essa tecnologia, permite-se que investidores com distintas capacidades financeiras adquiram participações fracionadas em imóveis de elevado valor, com transações supostamente executadas “em minutos” e com “poucos cliques”.

Não obstante, essa maior eficiência e melhor experiência do usuário acarretam numa complexidade jurídica fundamental: a expressão "propriedade digital" é juridicamente ambígua, porquanto sugere a transferência do domínio pleno do imóvel, um direito real que, em face do ordenamento jurídico pátrio, somente se consolida mediante o registro na matrícula do Cartório de Registro de Imóveis.
Na prática, entretanto, a maioria das estruturas atuais de tokenização efetua a transferência de direitos obrigacionais (créditos) ou de participações em entidades jurídicas detentoras do imóvel, e não a propriedade stricto sensu. Essa dissonância entre a percepção criada pelas estratégias de marketing e a realidade jurídica do ativo adquirido constitui fonte primária de risco para o investidor. Este pode erroneamente supor estar adquirindo uma fração do imóvel quando, na realidade, está a adquirir um direito que lhe confere “apenas” a experiência de um direito real — abarcando suas dimensões de usar, fruir e dispor do bem imóvel —, mesclada com a essência de um produto financeiro, caso o token ofereça rendimentos provenientes de aluguéis e outras receitas.
O paradigma da tokenização imobiliária: estruturas jurídicas de garantia e participação acionária
A operacionalização da tokenização de bens imóveis exige, tipicamente, um arcabouço jurídico que inicia com a transferência da titularidade do imóvel para uma entidade societária dedicada, especificamente uma Sociedade de Propósito Específico (SPE), criada com a única finalidade de deter o ativo em questão. Posteriormente, essa SPE outorga o imóvel em regime de alienação fiduciária a uma instituição custodiante.
Esta entidade assume a propriedade resolúvel do bem, agindo como fiduciária em benefício dos futuros adquirentes dos tokens. Na sequência, a SPE procede à emissão dos tokens, os quais representam parcelas dos direitos patrimoniais e econômicos sobre a própria sociedade, que detém o controle do imóvel onerado pela alienação fiduciária. É prática usual buscar a publicidade dessa operação, mediante a averbação do contrato na matrícula do imóvel, e, idealmente, o registro da própria emissão dos títulos digitais (tokens).
Esta arquitetura introduz um nível considerável de abstração na relação jurídica. O investidor não adquire diretamente uma porção da propriedade imobiliária. Em verdade, ele passa a ser detentor de um token que confere direitos sobre uma SPE, cujos ativos imobiliários estão afetados em garantia em favor dos próprios titulares dos tokens. A gestão dos direitos e interesses de cunho coletivo desses investidores sobre a SPE e, consequentemente, sobre o imóvel, estabelece uma dinâmica que se assemelha a uma estrutura condominial. Contudo, diferencia-se por envolver cotas negociáveis na forma ao portador, registradas e transacionadas por meio de uma rede tecnológica descentralizada.
O enigma regulatório dos ativos virtuais e a delimitação da competência
A promulgação da Lei nº 14.478/2022 marcou o início do estabelecimento de um esboço normativo para a prestação de serviços relacionados a ativos virtuais no território nacional. A referida legislação adota uma definição abrangente para "ativo virtual". Contudo, o artigo 3º, inciso IV, explicitamente exclui de seu escopo as “representações de ativos cuja emissão, escrituração, negociação ou liquidação esteja prevista em lei ou regulamento”. Esta exclusão tem se configurado no cerne da argumentação jurídica soerguida pelos oficiais de registro de imóveis, os quais contestam a legalidade de qualquer sistema de tokenização de propriedade que se proponha a operar à margem do sistema registral vigente.
O pressuposto lógico subjacente é inequívoco: a criação, a transferência e a garantia de publicidade dos direitos reais sobre imóveis encontram-se integral e detalhadamente disciplinadas no Código Civil brasileiro e na Lei de Registros Públicos (Lei nº 6.015/73). Consequentemente, a tokenização do direito de propriedade imobiliária deveria se enquadrar nessa exceção legal. Assim, ela não poderia ser objeto de regulação por mera analogia a outros criptoativos e permanecendo, portanto, sob a jurisdição precípua do sistema de registros públicos.
No âmbito da distribuição de atribuições, o Decreto nº 11.563/2023 designou o Banco Central do Brasil (BC) como a autoridade competente para a regulação, autorização e supervisão das entidades prestadoras de serviços de ativos virtuais.
A competência do BC concentra-se primordialmente sobre o agente que atua no mercado (i.e., plataformas de negociação e custodiantes), estabelecendo normas operacionais para essas empresas, abrangendo requisitos de capital, governança corporativa e mecanismos de prevenção à lavagem de dinheiro. Não obstante, a aferição da validade jurídica do token transacionado remete a outras esferas normativas:
- o Código Civil e a Lei de Registros Públicos para bens imóveis, e
- a regulamentação emanada da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) no que tange aos valores mobiliários.
A prevalência da CVM no mercado de capitais e o reconhecimento das fronteiras regulatórias
A competência da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) para a disciplina do mercado de capitais detém primazia sobre o disposto no Marco Legal dos Criptoativos (Lei nº 14.478/2022).
Qualquer ativo digital (token) que satisfaça os critérios de enquadramento na definição legal de valor mobiliário fica, ipso facto, sujeito à jurisdição fiscalizatória da CVM. É notório que um número considerável de tokens imobiliários, especialmente aqueles que conferem ao investidor frações de fluxos de receitas locatícias ou direitos de participação nos lucros de empreendimentos de incorporação, preenchem os requisitos conceituais de “contrato de investimento coletivo”, sendo, portanto, qualificados como valores mobiliários e submetidos à regulação específica da Autarquia.
Em uma relevante ação regulatória, o Banco Central (BC) lançou, no final de 2024, a Consulta Pública nº 109, destinada a propor normas para as prestadoras de serviços de ativos virtuais. Embora a minuta do documento tivesse oferecido uma conceituação ampla para “tokenização de ativos”, o ato de maior impacto foi a exclusão explícita de certas categorias de ativos do seu âmbito de aplicação. A norma proposta estabeleceu que suas disposições não se estenderiam aos instrumentos financeiros e aos bens, sejam eles móveis ou imóveis, que fossem objeto de processos de tokenização.
Pode-se argumentar que esta exclusão é deliberada e precisa sinalizar o reconhecimento, por parte do regulador federal legalmente designado, de que a regulação da propriedade imobiliária tokenizada transcende os limites de sua competência institucional. Tal inferência sugere que a matéria pertence, por natureza, a outra esfera de direito, a saber, o direito registral e imobiliário, cuja supervisão última compete ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Cronologia da controvérsia regulatória
O marco inaugural da presente controvérsia remonta a 10 de abril de 2025, data em que o Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (IRIB) divulgou o parecer intitulado “Tokenização e Controle dos Direitos Reais Imobiliários” (OF-IRIB/P/JPBJ-06/2025). Este documento assumiu uma função de alerta preventivo, ao questionar a pertinência da instituição de um “segundo sistema em blockchain” destinado à transação de direitos reais, operando de maneira paralela ao sistema de registro de imóveis estabelecido.
O parecer empreendeu uma análise das supostas vantagens oferecidas pela tokenização, contrastando-as com os riscos iminentes. Argumentou-se que a celeridade prometida seria alcançada em detrimento da eliminação da qualificação jurídica, um filtro essencial cuja função é obstar o registro de atos inválidos e, consequentemente, prevenir a litigiosidade.
A ausência desse mecanismo de controle acarretaria potenciais anulações massivas de transações, geraria inconsistências informacionais entre o registro oficial e a rede blockchain, e estabeleceria um ambiente propício para práticas de evasão fiscal e lavagem de dinheiro.
O documento estabeleceu um paralelo com as disfunções observadas no sistema Mortgage Electronic Registration Systems (MERS) nos Estados Unidos, que contribuíram significativamente para a crise hipotecária de 2008 ao fomentar a “sombra” quanto à titularidade dos créditos.
O ato catalisador do conflito e a reação institucional
O evento catalisador da crise ocorreu em 14 de agosto de 2025, com a publicação da Resolução COFECI nº 1.551. Este ato normativo transcendeu a mera função de orientação profissional dos corretores de imóveis, instituindo, na prática, um ecossistema regulado integral para as denominadas “Transações Imobiliárias Digitais”.
A resolução criou as figuras das Plataformas Imobiliárias para Transações Digitais (PITDs) e dos Agentes de Custódia e Garantia Imobiliária (ACGIs), estabelecendo que ambas as entidades deveriam ser credenciadas e supervisionadas pelo próprio COFECI.
Além disso, definiu o Token Imobiliário Digital (TID) como representação de “Direitos Imobiliários Tokenizados” (DITs), os quais poderiam ostentar natureza tanto obrigacional quanto real.
Um ponto crucial foi a determinação de que a intermediação de negócios envolvendo TIDs seria atividade de competência privativa dos corretores de imóveis inscritos no sistema COFECI-CRECI.
A reação do setor foi imediata e coordenada. Apenas cinco dias após a publicação, o IRIB divulgou a Nota Técnica CPRI/IRIB nº 01/2025, a qual procedeu à desconstrução da resolução em múltiplas dimensões jurídicas. A argumentação centralizou-se na incompetência formal do COFECI, sustentando que, na qualidade de conselho profissional, não detém o poder de agência reguladora para criar um mercado. Alegou-se, ademais, a inconstitucionalidade material por legislar sobre Direito Civil e Registros Públicos, ou seja, matérias constitucionalmente reservadas à competência privativa da União. Finalmente, apontou-se a ilegalidade material, em razão da contrariedade direta aos preceitos do Código Civil, da Lei de Registros Públicos e da própria Lei de Ativos Virtuais.
Paralelamente a essa manifestação, em 18 de agosto, a Corregedoria-Geral da Justiça de Santa Catarina emitiu a Circular nº 410, proibindo de forma expressa que os oficiais de registro realizassem “qualquer anotação, averbação ou registro que vincule a matrícula imobiliária a tokens digitais, representações em blockchain ou qualquer outro instrumento extrarregistral”.
Essa decisão baseou-se nos riscos à segurança jurídica e na ausência de legislação federal autorizativa. Tal medida preventiva seccionou o elo essencial que as plataformas de tokenização necessitavam para conferir uma aparência de legitimidade aos seus produtos.
A busca por solução legislativa e a intervenção do Judiciário
Em meio à escalada da crise, o Poder Legislativo demonstrou movimentação no sentido de propor uma solução estrutural.
Em 4 de setembro, foi apresentado o Projeto de Lei do Senado nº 4.438/2025, visando ao estabelecimento de um marco legal definitivo. Suas propostas centrais incluíam:
- a definição clara das competências regulatórias (Banco Central para prestadores de serviço, CVM para tokens de segurança e CNJ/Serviço Nacional de Registro de Imóveis (SNRI) para aspectos registrais),
- a integração da tecnologia ao sistema existente por meio de uma “matrícula tokenizada” operada pelo ONR, e
- a alteração do Código Civil para reconhecer a “fração digital de propriedade de bem imóvel” como uma nova categoria de direito real.
Ainda em setembro, o Fundo Nacional de Desenvolvimento Imobiliário (FNDI) publicou uma nota técnica que reforçava a tese da incompetência regulatória do COFECI e alertava para riscos sistêmicos. Argumentou que a criação de um sistema paralelo de titularidade fragilizaria as garantias que sustentam o crédito imobiliário. Isso resultaria no aumento do risco das operações e do custo do financiamento, com impacto direto no direito social à moradia. Esta manifestação foi politicamente contundente, evidenciando que a oposição à Resolução não era meramente setorial, mas sim generalizada em todo o mercado imobiliário.
O desfecho provisório da controvérsia ocorreu em 13 de outubro de 2025. Na ocasião, a 21ª Vara Federal Cível da Seção Judiciária do Distrito Federal deferiu o pedido de tutela de urgência formulado na ação ajuizada pelo ONR.
A decisão liminar determinou a imediata suspensão de todos os efeitos da Resolução COFECI 1.551/2025.
O julgado reconheceu que o COFECI extrapolou as prerrogativas inerentes a um conselho profissional, usurpou a competência privativa da União para legislar sobre Direito Civil e Registros Públicos, e invadiu a esfera de atuação de outros órgãos federais legalmente constituídos, como o Banco Central e o binômio CNJ/ONR.
A imperatividade da segurança jurídica e a orquestração do registro de imóveis
O cenário desvendado revela uma tensão estruturalmente profunda entre a natureza inerentemente descentralizada da inovação tecnológica e a exigência de segurança jurídica centralizada que é intrínseca ao mercado imobiliário.
A ação unilateral e disruptiva da Resolução COFECI nº 1.551/2025 precipitou uma reação em cadeia por parte de instituições vitais (IRIB), do mercado organizado (FNDI), do judiciário em âmbito local (CGJ-SC) e do judiciário federal. Todos convergiram na necessidade premente de uma correção de rota em favor de uma abordagem mais prudente e sistêmica.
Este embate não deve ser interpretado simplistamente como uma luta entre o estabelecido e o novo, mas sim como uma disputa fundamental entre dois modelos concorrentes de modernização:
descentralizado e de autorregulação (proposto pelo COFECI)
versus
centralizado sob estrita regulação estatal (personificado pelo ONR e pelo sistema registral).
A via para a conciliação dos interesses entre os agentes tokenizadores e os registradores não reside na substituição de um sistema pelo outro, mas sim na sua integração inteligente e simbiótica.
O Projeto de Lei do Senado aponta decisivamente nessa direção. A proposta é a utilização da blockchain não como um substituto, mas como uma extensão tecnológica do registro público, materializada na “matrícula tokenizada”.
Neste modelo integrativo, o token passaria a herdar a segurança jurídica e a fé pública inerentes ao registro. Por sua vez, o registro ganharia a agilidade, a liquidez e a programabilidade oferecidas pela tecnologia.
Desta forma, o oficial de registro imobiliário manteria sua função essencial e insubstituível de qualificação jurídica na “porta de entrada” do ativo no sistema digital. Essa é uma forma de assegurar a legalidade da operação de tokenização. As transações subsequentes dos tokens poderiam então ocorrer de forma mais fluida, rápida e automatizada, sob a garantia da legalidade original.
Futuro do mercado imobiliário
Os próximos passos lógicos e imperativos envolvem a tramitação e aprovação de uma lei federal que estabeleça as bases legais para a propriedade digital.
Tal legislação deverá ser seguida por uma regulamentação infralegal coordenada e harmônica entre:
- o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), responsável pelos aspectos registrais e pela operação do ONR;
- a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), para os tokens que se qualificarem como valores mobiliários; e
- o Banco Central do Brasil (BC), para a supervisão dos prestadores de serviço.
A questão crucial para o futuro do mercado imobiliário brasileiro não é a possibilidade da tokenização. É importante que a forma como ela será estruturada para garantir que a inovação seja implementada sob a orquestração da segurança jurídica centralizada, conferida inequivocamente pelos Cartórios de Registro de Imóveis. Somente assim será possível conciliar a eficiência prometida pela tecnologia com a estabilidade e a proteção do direito de propriedade, pilares fundamentais da economia nacional.
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