Definição da natureza jurídica do crime de poluição

Definição da natureza jurídica do crime de poluição

* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.

Tema 1377 do STJ

O Superior Tribunal de Justiça afetou o Recurso Especial n° 2.205.709/MG como paradigma da controvérsia repetitiva descrita no Tema 1377, no qual se busca definir a natureza jurídica do crime ambiental previsto no art. 54, caput, primeira parte, da Lei n. 9.605/1998, e se há necessidade de realização de prova pericial para sua configuração.

Mas o que diz o artigo 54, primeira parte, da Lei nº 9.605/98? Vejamos.

Lei 9.605/98

Art. 54. Causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora:

Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.

A relevância jurídica e social da matéria é clara, porquanto extrai-se que a discussão apresentada no processo envolve tema relativo a delito da lei de crimes ambientais, especificamente poluição sonora, os quais, segundo o Superior Tribunal de Justiça, devem ser interpretados à luz dos princípios do desenvolvimento sustentável e da prevenção.

O STJ verificou a controvérsia como geradora de grande pertinência jurídica e social, considerando-se os impactos da poluição sonora, que pode atingir indistintamente qualquer cidadão e ocasionar diversos prejuízos à saúde humana.

Tal situação tem gerado judicialização da matéria, seja por meio de ações individuais, como aquelas por perturbação do sossego, seja por ações coletivas e penais voltadas à proteção do meio ambiente e da saúde pública, o que justificou a afetação do tema.

Precedentes

O STJ, no EREsp 1.417.279, decidiu que o delito previsto na primeira parte do artigo 54 da Lei n. 9.605/1998 possui natureza formal, de perigo abstrato, sendo suficiente a potencialidade de dano à saúde humana para configuração da conduta delitiva, não se exigindo, portanto, a realização de perícia.

Mais recentemente, houve o julgamento do AgRg no REsp n. 2.130.764. Neste caso, o dono de uma casa de eventos, localizada em Minas Gerais, foi denunciado pelo Ministério Público por emitir barulho acima do limite máximo permitido na NBR 10.151, da Associação Brasileira de Normas Técnicas, gerando uma poluição sonora, crime tipificado no artigo 54, da Lei de Crimes Ambientais.

A sonorização advinda do local de eventos incomodava a vizinhança, causando aos moradores locais dificuldades para dormir e perturbação do sossego.

Os moradores da vizinhança relataram perda de audição e concentração, aumento da pressão arterial, interferência no sono e estresse decorrentes da exposição a ruídos.

Os limites máximos de ruídos permitidos variam conforme o tipo de área e o período de emissão (diurno ou noturno), indo de 35 até 70 decibéis. Vejamos:

poluição

Durante a instrução probatória realizada no primeiro grau, restou comprovada a elevação sonora acima da fixada em regulamentação específica pelo estabelecimento comercial em questão, mas não se comprovou que o barulho teria o condão de causar qualquer tipo de risco à saúde humana.

Diante desse quadro probatório, o Tribunal de Justiça de Minas desclassificou a conduta do crime ambiental de poluição sonora (artigo 54, da Lei nº 9.605/98) para mera contravenção de perturbação do sossego (artigo 42, do Decreto Lei nº 3.688/1941), fundamentando a decisão na ausência de prova técnica que comprovasse o dano ou a probabilidade de dano à saúde dos moradores locais.

O Ministério Público recorreu da decisão do Tribunal mineiro ao Superior Tribunal de Justiça, que acabou dando provimento ao recurso especial (REsp 2.130.764).

O STJ entendeu que o crime de poluição sonora é formal, de perigo abstrato, que não exige prova pericial para constatar o poder de resultar em danos à saúde humana.

Análise jurídica

Poluição

A Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei nº 6.938/81) conceitua a poluição como sendo a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou indiretamente:

a) prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da população;

b) criem condições adversas às atividades sociais e econômicas;

c) afetem desfavoravelmente a biota;

d) afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente;

e) lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos;

E conceitua o poluidor como sendo a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental.

Poluição sonora poder ser conceituada como toda perturbação do ambiente causada por ruídos ou barulhos em níveis superiores ao máximo estabelecido pelo poder público, prejudicando a saúde humana e o bem-estar da população.

Não confundir som com ruído:

Som -> Qualquer variação de pressão (no ar, na água) que o ouvido humano possa captar cadenciadamente;

Ruído -> O som ou conjunto de sons indesejáveis, desagradáveis, perturbadores, em limites superiores ao permitido pela legislação.

Limites e consequências

A Organização Mundial da Saúde (OMS) define como ruído níveis sonoros superiores a 65 decibéis (dB). O ruído se torna daninho se for superior a 75 dB e doloroso a partir dos 120 db.

Consequentemente, a OMS recomenda não passar de 65 dB durante o dia e indica que, para que o sono seja reparador, o ruído do ambiente noturno não deve ser superior a 30 dB.

As principais consequências danosas aos seres humanos em decorrência da exposição contínua à poluição sonora são1:

  • Psicopatológicos: agitação respiratória, aceleração da pulsação, aumento da pressão arterial, dor de cabeça e, no caso de barulhos extremos e constantes, gastrites, colites ou inclusive enfartes;
  • Psicológicos: o ruído pode provocar episódios de estresse, fadiga, depressão, ansiedade ou histeria, tanto em seres humanos quanto em animais;
  • Sono e conduta: um ruído superior a 45 dB impede conciliar o sono ou dormir corretamente; tenhamos em conta que o ideal, conforme a OMS, é não passar de 30 dB. Tudo isto pode influir, a posteriori, na nossa conduta, provocando episódios de agressividade ou irritabilidade;
  • Memória e atenção: o ruído pode afetar a nossa capacidade de concentração, o que ao mesmo tempo pode provocar baixo rendimento. A memória também sofre, por exemplo, quando vamos estudar. Um dado interessante: o ouvido precisa um pouco mais do que 16 horas de repouso para compensar duas horas de exposição a 100 dB.

Responsabilidade civil ambiental

Os entes federativos têm obrigação constitucional (artigos 23, VI e 225, § 1º) de zelar pelo meio ambiente ecologicamente equilibrado, garantindo o direito à saúde e bem-estar de seus habitantes e, consequentemente, de coibir a ocorrência da poluição sonora.

O descumprimento a esse dever, como na falha da fiscalização ou na não adoção das medidas necessárias, poderá sujeitar o poder público à responsabilidade de indenizar as pessoas que sofreram com as práticas lesivas, ou seja, com o elevado índice de poluição sonora.

A responsabilidade civil ambiental, ou seja, de reparar os danos causados ao meio ambiente, além de objetiva (independe de culpa ou dolo), é solidária e fundamentada na teoria do risco integral, que é uma teoria extremada do risco, onde o nexo de causalidade é fortalecido (ver informativo STJ nº 545).

Além do mais, a pretensão de reparação do dano ambiental é imprescritível, conforme jurisprudência pacificada dos tribunais superiores, em especial o tema 999 do Supremo Tribunal Federal.

TEMA 999 do STF: É imprescritível a pretensão de reparação civil de dano ambiental.

Lembrando que o poder público, quando se omite no dever de fiscalizar, responde de forma objetiva, solidária, mas com benefício de ordem (execução subsidiária), conforme súmula 652 do STJ.

Súmula 652 do STJ: “A responsabilidade civil da Administração Pública por danos ao meio ambiente, decorrente de sua omissão no dever de fiscalização, é de caráter solidário, mas de execução subsidiária.

Crime formal

O STJ entendeu, portanto, que o crime do art. 54, caput, da Lei n. 9.605/98, primeira parte, se trata de crime formal, de perigo abstrato, prescindindo de prova pericial para constatação de poluição que possa resultar em danos à saúde humana diante do desrespeito às regras de emissão sonora constatado pelas instâncias ordinárias.

Crime formal (também chamado de crime de consumação antecipada ou de resultado cortado) é aquele em que o resultado naturalístico não é necessário para a consumação do delito, mesmo que a norma preveja o resultado.

Ou seja, no crime formal, a produção do resultado é indiferente para a consumação do crime.

No caso da poluição sonora, o STJ entendeu que basta que se comprove que foi emitido ruído acima do permitido pelo regulamento para que o crime seja considerado consumado, independente do efetivo prejuízo à saúde humana, comprovado por perícia técnica, que é totalmente dispensável.

Vejamos a ementa do julgado:

PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. RECURSO ESPECIAL DA ACUSAÇÃO PROVIDO PARA AFASTAR A DESCLASSIFICAÇÃO PARA PERTURBAÇÃO. ART. 42 DO DECRETO-LEI N. 3.688/41. POLUIÇÃO SONORA. ART. 54, CAPUT, DA LEI N. 9.605/98. CRIME DE PERIGO ABSTRATO. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.

1. Conforme precedentes desta Corte, o delito do art. 54, caput, primeira parte, da Lei n. 9.605/98, é crime de perigo abstrato, prescindindo de prova pericial para constatação de poluição que possa resultar em danos à saúde humana.

1.1. No caso concreto, diante do comprovado desrespeito às regras de emissão sonora constatado pelas instâncias ordinárias em decorrência de levantamento de ruídos ambiental, indevida a desclassificação operada pelo Tribunal de Justiça com fundamento na falta de realização de prova técnica para comprovação do dano ou da probabilidade do dano à saúde dos moradores locais.

2. Agravo regimental desprovido.

(AgRg no REsp n. 2.130.764/MG, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 16/9/2024, DJe de 18/9/2024.)

Ocorre que existem decisões do próprio STJ conflitando com esse entendimento, que parece ser majoritário, o que causou a afetação do REsp no tema 1377.

Importante acompanhar a definição desse tema, mas a tendência é de corroborar o entendimento de que o crime do artigo 54, primeira parte, da lei de crimes ambientais, é mesmo crime formal abstrato, independendo da comprovação de danos à saúde humana.

Tema atual, interessante e pertinente às provas de direito ambiental e direito penal. Portanto, muita atenção!


  1. IBERDROLA. Poluição sonora: como reduzir as consequências de uma ameaça invisível? Iberdrola. Disponível em: <https://www.iberdrola.com/sustentabilidade/o-que-e-poluicao-sonora-causas-consequencias-solucoes>. ↩︎

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