Prof. Gustavo Cordeiro
Introdução: quando a crítica política deixa de ser crime?
Em outubro de 2025, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça proferiu decisão que reacende o debate sobre os limites entre a liberdade de expressão e os crimes contra a honra no contexto do debate político-jornalístico. O colegiado decidiu trancar queixa-crime ajuizada por deputado federal contra jornalista que o chamou de “fascista” em artigo de opinião, reconhecendo a atipicidade da conduta.
Para quem se prepara para concursos jurídicos de alto nível, este julgado é fundamental por diversos motivos: articula princípios constitucionais sensíveis (liberdade de expressão versus proteção à honra), dialoga com a teoria do crime (tipicidade material), e representa tendência jurisprudencial consolidada nos tribunais superiores sobre crimes contra a honra no debate público.
Mais do que decorar ementas, é preciso compreender a ratio decidendi e os fundamentos dogmáticos que sustentam esse tipo de decisão — exatamente o que as bancas examinadoras cobram nas provas discursivas e orais.
O caso concreto: contexto fático e processual
O jornalista Kiko Nogueira, editor do site Diário do Centro do Mundo, publicou em 2022 artigo intitulado “Enquanto Petrópolis conta mortos, a família Imperial conta o dinheiro do laudêmio”. O texto criticava o silêncio da família imperial brasileira diante das enchentes na região serrana do Rio de Janeiro e qualificou um ramo familiar como composto por “fascistas como Dom Bertrand e o ‘príncipe’ bolsonarista Luiz Philippe de Orleans e Bragança”.

O deputado federal Luiz Philippe de Orleans e Bragança (PL-SP) ajuizou queixa-crime por injúria. O processo chegou ao STJ via agravo em recurso especial. Inicialmente, o recurso não foi conhecido pelo relator, desembargador convocado Otávio de Almeida Toledo, por intempestividade.
Contudo, o ministro Antonio Saldanha Palheiro, em voto-vista, propôs a concessão de habeas corpus de ofício para absolver o jornalista pela atipicidade da conduta, sendo acompanhado pelos ministros Og Fernandes e Rogerio Schietti, formando maioria na turma.
Fundamentos jurídicos da decisão
Tipicidade material e o conceito contemporâneo de “fascista”
O núcleo argumentativo da decisão reside na ausência de tipicidade material da conduta. Embora formalmente o termo “fascista” pudesse ser enquadrado como imputação de qualidade negativa (injúria, art. 140 do CP), o STJ entendeu que, no contexto atual do debate político, o vocábulo sofreu um processo de vulgarização semântica.
Segundo o ministro Saldanha Palheiro, “a conotação de fascista foi alterada em tempos recentes. Passou a ser adjetivação bastante comum e sem indicação específica do fascismo como ideologia de governo, e, sim, de uma postura autoritária”.
Traduzindo para a linguagem dos concursos: nem toda conduta formalmente típica é materialmente típica. A tipicidade exige que a conduta tenha lesividade concreta ao bem jurídico tutelado (no caso, a honra). Quando um termo perde sua capacidade ofensiva objetiva e se converte em mera retórica política, desaparece a ofensa jurídico-penal.
Liberdade de imprensa e crítica jornalística opinativa
A decisão reafirma a primazia constitucional da liberdade de imprensa (art. 5º, IV e IX, e art. 220 da CF/88) no contexto do debate público, especialmente quando se trata de crítica a figura pública exercendo mandato eletivo.
O STF já consolidou o entendimento de que agentes políticos, por sua exposição voluntária ao escrutínio público, submetem-se a um standard mais elevado de tolerância quanto a críticas, mesmo as contundentes ou desagradáveis (ADPF 130, Rel. Min. Carlos Britto).
No caso em análise, o STJ destacou que a reportagem, embora “bastante contundente”, não ultrapassou os limites da liberdade jornalística, pois se inseriu no exercício legítimo da crítica política opinativa.
Uso recíproco do termo pelo próprio querelante
Um argumento particularmente interessante — e estratégico para provas — foi a menção de que o próprio querelante já havia utilizado a mesma expressão em disputas públicas. Esse fato reforça a tese de vulgarização do termo e evidencia a inconsistência da pretensão punitiva.
Nas palavras do acórdão: “Atribuir ao adversário político a pecha de fascista no contexto de opinião jornalística não configura o tipo de injúria, ante a vulgarização do termo que é usado frequentemente pelas diversas correntes políticas para tentar desqualificar adversários, inclusive demonstrado nos autos que foi usado pelo próprio querelante em contexto de disputa de narrativa política”.
Aqui há um importante princípio implícito: a inadmissibilidade da invocação do direito penal por quem pratica conduta idêntica à que pretende criminalizar (tu quoque).
Absolvição com base no art. 386, III, do CPP
A decisão determinou a absolvição do jornalista com fundamento no art. 386, III, do CPP: “não constituir o fato infração penal”. Trata-se de absolvição própria, que reconhece a atipicidade da conduta e impede qualquer efeito condenatório, inclusive na esfera cível.
Esse fundamento absolutório é crucial: significa que não há sequer ilicitude civil, diferentemente do que ocorreria se a absolvição fosse pelo inciso VI (insuficiência de provas), que permite posterior ação de reparação civil.
Conexões doutrinárias essenciais para concursos
A teoria da tipicidade conglobante (Zaffaroni)
A decisão dialoga com a moderna teoria da tipicidade, especialmente a tipicidade conglobante de Eugenio Raúl Zaffaroni, segundo a qual uma conduta só é típica se, além de formalmente adequada ao tipo penal, for também materialmente antinormativa — ou seja, contrária ao ordenamento jurídico como um todo.
No caso, a crítica jornalística é fomentada constitucionalmente (art. 220, CF/88), de modo que não pode, ao mesmo tempo, ser penalmente reprovável. Há ausência de tipicidade conglobante.
Distinção entre crítica política e ofensa pessoal
Para fins de prova, é essencial memorizar: crítica política dirigida a ideias, posturas e atuação pública ≠ ofensa pessoal dirigida a atributos íntimos da pessoa.
Chamar alguém de “fascista” em contexto de debate público sobre posições políticas = crítica opinativa protegida.
Chamar alguém de “ladrão”, “corrupto” ou atribuir fato criminoso específico sem base fática = injúria e difamação, respectivamente.
Atribuir característica pejorativa desvinculada de contexto político (ofensas racistas, sexistas, relativas à aparência física) = injúria ou injúria qualificada.
A doutrina do “real malice” (atual malícia ou dolo de ofender)
Embora não expressamente mencionada no acórdão, a decisão se alinha à doutrina da real malícia, originária da jurisprudência norte-americana (caso New York Times vs. Sullivan) e incorporada pelo STF: exige-se dolo específico de ofender ou, no mínimo, desprezo temerário pela verdade para configurar crime contra a honra de agente público.
Na crítica jornalística opinativa, presume-se o animus criticandi (intenção de criticar) e não o animus injuriandi vel diffamandi (intenção de ofender).
Conexão prática com concursos públicos
Como o tema pode ser cobrado?
🔶 Em provas objetivas: questões sobre atipicidade material, colisão entre liberdade de expressão e proteção à honra, requisitos dos crimes contra a honra.
🔸 Em provas discursivas: peças processuais (parecer do MP opinando pelo trancamento de queixa-crime; decisão judicial fundamentada; habeas corpus) ou questões teóricas sobre limites da liberdade de expressão.
🔶 Em provas orais: perguntas sobre jurisprudência recente do STF e STJ em crimes contra a honra; distinção entre crítica política e ofensa pessoal; cabimento de habeas corpus de ofício.
Questão simulada de concurso
(Concurso Simulado — Promotor de Justiça — 2026)
Jornalista publicou artigo opinativo em portal de notícias chamando deputado federal de "autoritário e fascista", em crítica à sua atuação parlamentar contrária a medidas de transparência pública. O deputado ajuizou queixa-crime por injúria. O Ministério Público, em parecer, opinou pelo recebimento da queixa, argumentando que o termo "fascista" é objetivamente ofensivo. O juiz recebeu a queixa-crime e determinou a citação do querelado. Inconformado, o jornalista impetrou habeas corpus no Tribunal de Justiça. Com base na jurisprudência do STJ, assinale a alternativa correta:
a) O habeas corpus deve ser denegado, pois o termo "fascista" configura injúria, independentemente do contexto político, uma vez que atribui qualidade negativa ao ofendido.
b) O habeas corpus deve ser concedido para trancar a ação penal, reconhecendo-se a atipicidade da conduta em razão da vulgarização do termo "fascista" no debate político contemporâneo e da proteção constitucional à liberdade de imprensa.
c) O habeas corpus deve ser concedido apenas se ficar provado que o jornalista não agiu com dolo de ofender, situação que exige dilação probatória incompatível com a via eleita.
d) O habeas corpus não é a via adequada, devendo o jornalista aguardar o trânsito em julgado da condenação para, só então, questionar a tipicidade da conduta via revisão criminal.
e) O parecer do Ministério Público vincula o juiz, de modo que o recebimento da queixa-crime é irretratável, sendo impossível o trancamento da ação penal em habeas corpus.
GABARITO: B
Explicação:
Alternativa A (incorreta): Ignora a evolução semântica do termo e a necessidade de análise contextual. O STJ reconheceu que “fascista”, no debate político contemporâneo, perdeu a conotação ofensiva específica, tornando-se mera retórica desqualificadora sem lesividade jurídico-penal.
Alternativa B (correta): Reproduz fielmente o entendimento firmado no AREsp 2.945.532. A decisão reconheceu a atipicidade material da conduta (ausência de ofensa concreta à honra) e a primazia da liberdade de imprensa no contexto de crítica a agente político, determinando o trancamento da ação penal via habeas corpus de ofício.
Alternativa C (incorreta): Embora o dolo seja elementar subjetiva do crime, a atipicidade reconhecida foi material (ausência de lesão ao bem jurídico), e não subjetiva. Ademais, o STJ vem admitindo análise de atipicidade em habeas corpus quando evidente dos autos, sem necessidade de dilação probatória.
Alternativa D (incorreta): O habeas corpus é remédio constitucional cabível sempre que houver coação ilegal ou ameaça à liberdade de locomoção, inclusive para trancamento de ação penal manifestamente infundada. Não é necessário aguardar o trânsito em julgado.
Alternativa E (incorreta): O parecer ministerial é opinativo, não vinculante. O juiz possui liberdade para rejeitar a queixa-crime se vislumbrar causa de rejeição liminar (art. 395, CPP). Além disso, o trancamento via habeas corpus é plenamente viável quando evidente a atipicidade.
Resumo estratégico para memorização
✅ Termo “fascista” no debate político = atipicidade material (vulgarização semântica)
✅ Crítica a agente público = proteção reforçada da liberdade de expressão (art. 220, CF + ADPF 130)
✅ Uso recíproco do termo pelo próprio querelante = reforço da tese de vulgarização
✅ Absolvição pelo art. 386, III, CPP = atipicidade (impede ação cível)
✅ Habeas corpus de ofício = possível em 2ª instância quando reconhecida atipicidade manifesta
✅ Animus criticandi ≠ animus injuriandi = presunção de intenção de criticar, não de ofender
Conclusão: o que o concurseiro deve levar desta decisão
O STJ não está dizendo que “tudo vale” no debate público. A decisão não autoriza ofensas pessoais, discursos de ódio ou imputação leviana de fatos criminosos. O que ela reconhece é que determinados termos, em contextos específicos, perdem a capacidade jurídico-penal de ofender porque se tornaram mera retórica política.
Para as provas, lembre-se: a tipicidade penal não é apenas formal. É preciso lesividade concreta ao bem jurídico. E quando a Constituição protege determinada conduta (liberdade de imprensa), não pode o Código Penal, ao mesmo tempo, puni-la.
Guarde esta decisão. Ela representa a síntese de um movimento jurisprudencial consolidado: no conflito entre liberdade de expressão e proteção à honra de agentes públicos, a balança pesa em favor da primeira, salvo quando demonstrado abuso manifesto.
E lembre-se: quem quer ser magistrado, promotor ou defensor precisa saber não apenas citar julgados, mas compreender e aplicar os fundamentos. É isso que diferencia quem decora de quem aprende — e quem é aprovado de quem fica pelo caminho.
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