A análise do julgado
No julgamento do REsp 2.105.317, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, com a acuidade que se espera dos que vestem a toga, reavivou o rigor necessário à aplicação do artigo 213 do Código Penal.
Aqui, não se trata de exigir da vítima uma resistência estóica, digna dos épicos, mas, tão somente, a manifestação inequívoca de sua discordância, explícita e expressa, antes ou durante o ato libidinoso.
Em decisão majoritária, por 3 votos a 2, o STJ reformou a absolvição dada pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJ-DF). A decisão foi a de condenar o réu a seis anos de reclusão por estupro.
O caso
O caso sub judice envolveu uma relação inicialmente consentida, mas que evoluiu para práticas indesejadas — especificamente, o sexo anal, imposto pela vontade unilateral do réu.
A vítima, em juízo, foi categórica ao narrar que expressou seu dissenso: não queria, não gostava e que a experiência lhe causava dor. Entretanto, resignou-se em suportar o ato, o que o TJ-DF entendeu como ausência de resistência inequívoca, justificando a absolvição.
Mas o ministro Sebastião Reis Júnior, em voto que triunfou como o mais lúcido e afinado ao espírito da lei, refutou a aplicação da Súmula 7.
O núcleo da questão não era revisitar as provas, mas sim reinterpretar a moldura dos fatos à luz do tipo penal. O crime de estupro, como se sabe, configura-se pelo constrangimento mediante violência ou grave ameaça, sem que a discordância inicial ou posterior da vítima deva ser superada pela simples inércia.
Argumentação
A discordância da vítima, frisou o ministro, pode surgir em qualquer momento e, uma vez manifestada, quebra a linha do consentimento. Na visão de Reis Júnior, não se pode exigir da vítima uma resistência hercúlea.
O dissenso, ainda que externado com palavras e não com ações físicas, é suficiente para delinear o delito.
“Dizer que não queria, pedir que parasse e afirmar que estava doendo são expressões claras do dissenso, que deveria ser respeitado pelo agente”, asseverou o ministro.
A argumentação vencedora rechaçou o entendimento ultrapassado de que a palavra da vítima deva ser mitigada por seu comportamento posterior. Aqui, Sebastião Reis Júnior identificou o velho espectro do machismo, que ainda insiste em ditar como uma vítima deveria se portar para ter sua dor validada.
“O depoimento da vítima em crimes sexuais”, lembrou o ministro, “tem especial valor probante, sobretudo quando reforçado por outros relatos de ofendidas que enfrentaram idêntico modus operandi”.
Completando a corrente vencedora, o ministro Rogerio Schietti advertiu que não cabe ao Judiciário julgar a conduta da vítima após o delito, mas sim os atos que constituem o próprio crime.
“As evidências são claras”, concluiu Schietti, “quanto ao dissenso reiterado da vítima, que, infelizmente, não foi capaz de impedir a continuidade da ação do réu”.
Eis o norte trazido pela decisão: o crime de estupro não está condicionado à resistência física, mas à ruptura do consentimento. Qualquer manifestação de discordância, seja verbal ou gestual, retira do ato qualquer resquício de licitude.
Num país em que o patriarcado ainda murmura, este julgamento acerta ao reconhecer que não se pode mais exigir da vítima aquilo que a barbárie jamais deveria impor.
Sobre o crime de estupro: o que o candidato deve memorizar para as provas de concursos públicos
O artigo 213 do Código Penal, ao dispor sobre o crime de estupro, expõe a matéria com a crueza necessária ao deslinde de uma das práticas mais abjetas que o Direito Penal é chamado a reprimir.
Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que se pratique ato libidinoso equivale a despojar o ser humano de sua dignidade, subjugando-o à vontade despótica do agressor. Tal conduta, que ora analisamos sob a ótica do clássico e inabalável princípio da ofensividade, denota a total aniquilação da autodeterminação sexual da vítima.
O tipo penal em questão, na sua redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009, amplia o alcance da proteção legal. Assim, tal Lei não mais restringe o estupro à conjunção carnal, mas o estende a qualquer ato libidinoso praticado mediante violência ou grave ameaça.
Nesse ponto, a lei segue a evolução doutrinária e jurisprudencial. Ou seja, reconhece que a dignidade sexual não se circunscreve aos limites da conjunção carnal. Tal dignidade, porém, compreende um conjunto de bens jurídicos imateriais que integram a esfera da liberdade sexual.
Não há maior ultraje à personalidade humana do que a imposição do gozo carnal por meios violentos. E o estupro, por excelência, é o crime em que se coonesta a primazia do bruto sobre o humano.
Vulnerabilidade da vítima e resultado morte
Ademais, a norma em tela não se satisfaz com a simples tipificação do constrangimento. Isso porque ela prevê sanções agravadas nos casos em que a conduta resulte lesão corporal de natureza grave ou, ainda, quando a vítima seja menor de 18 anos ou maior de 14 anos (§ 1º).
Nestes casos, a pena recrudesce, evidenciando a reprovabilidade maior quando o agente se vale da vulnerabilidade da vítima ou provoca consequências de gravidade exacerbada. Como já se decidiu,
"a tutela do legislador recai sobre a especial condição de vulnerabilidade, seja etária ou decorrente das lesões impostas, com o fim de salvaguardar a integridade física e psíquica em sua plenitude" (STJ, HC 202.469/SP).
No paroxismo da infâmia, quando a conduta criminosa resulta em morte, o artigo 213, §2º, impõe sanção variando de 12 a 30 anos de reclusão.
Tal previsão, longe de ser uma mera exacerbação punitiva, revela a intensidade do mal infligido à vítima e à sociedade, à medida que a consumação da morte conjuga, em um só ato, a supressão da dignidade e da própria vida.
A reprimenda, portanto, harmoniza-se com a função retributiva e preventiva da pena, reforçando o caráter dissuasório do Direito Penal.
Relevância da manifestação da vítima
Não se pode olvidar que o tipo penal prescinde de consentimento em qualquer fase da prática delitiva. Como bem aponta a doutrina majoritária,
"a oposição expressa ou tácita, manifesta em qualquer momento, é suficiente para configurar o dissenso necessário à tipificação da conduta" (BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Especial, Vol. 2).
Deste modo, o consentimento inicial não é blindagem para o ato subsequente se, em algum instante, a vítima manifesta sua negativa.
Cumpre ressaltar que, ao se interpretar o artigo 213 do Código Penal, deve-se evitar o retrocesso que buscaria pautar a valoração do dissenso da vítima com base em padrões antiquados e estigmatizantes.
O comportamento posterior ao ato não pode servir de alicerce para a deslegitimação do relato, conforme consagrado pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:
"A palavra da vítima em crimes sexuais possui especial relevância, notadamente em contextos onde a violência se dá de maneira insidiosa e silenciosa" (STJ, HC 548.510/PR).
Em suma, o artigo 213 do Código Penal se apresenta como um bastião da tutela da dignidade sexual, erguido contra a vilania dos que, por meio da força ou da ameaça, pretendem submeter o outro ao capricho de seus instintos mais baixos.
A estrutura normativa desenhada pelo legislador, ao prever penas proporcionais à gravidade das consequências, almeja não apenas a repressão da conduta. Assim, a busca também é pela reafirmação de valores que sustentam o próprio conceito de civilização.
Assim, no terreno da tutela penal da liberdade sexual, não há espaço para hesitações: a proteção deve ser contundente, pois, como já dizia Hungria,
“a lei penal, ao defender o pudor, não protege apenas a vítima individual, mas a própria moral social, pilar imprescindível da ordem pública.”
Sobre o crime de estupro de vulnerável: o que o candidato deve memorizar para as provas de concursos públicos
O artigo 217-A do Código Penal brasileiro, inserido pela Lei nº 12.015, de 2009, reflete o mais elevado interesse de tutela penal em matéria de proteção à dignidade sexual da criança e do adolescente.
Nele, a norma penal incrimina, com gravidade proporcional ao ultraje, a prática de conjunção carnal ou qualquer ato libidinoso com menor de 14 anos, independente de consentimento, discernimento ou histórico sexual da vítima.
Ao tratar deste delito, o legislador não se limita a proteger o bem jurídico da liberdade sexual. O legislador, em verdade, também almeja resguardar a formação moral e psíquica da infância e juventude, contra a exploração precoce e deletéria de sua sexualidade.
Os crimes sexuais contra vulneráveis possuem caráter especialmente vil, pois atacam não apenas a vítima individual, mas a própria base moral da sociedade. Assim, o caput do artigo em análise estabelece uma presunção absoluta (“iuris et de iure”) de violência, ao considerar irrelevante qualquer manifestação de consentimento por parte da vítima.
A “ratio legis” repousa na ideia de que o menor de 14 anos não pode oferecer consentimento válido para atos de natureza sexual. Isso se deve ao fato de o menor por não possuir discernimento adequado. A presunção, portanto, é objetiva, afastando qualquer juízo subjetivo sobre a capacidade de autodeterminação sexual.
Corroborando essa interpretação, a doutrina é uníssona ao afirmar que o dispositivo visa garantir proteção integral e prioritária. Essa afirmação está em consonância com o princípio da proteção integral inscrito na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente.
Como ensina Capez (2020),
“a norma reflete uma salvaguarda à inviolabilidade do desenvolvimento sadio e pleno da criança e do adolescente, blindando-os contra quaisquer atos que possam aviltar sua formação psíquica e emocional.”
Agravantes
A rigidez punitiva prevista no caput — reclusão de 8 a 15 anos — reforça a reprovação social à prática, em uma resposta à altura do dano causado. No entanto, a norma vai além: o § 1º estende a punição para casos em que a vítima, por enfermidade, deficiência mental ou qualquer outra causa, não possa oferecer resistência.
Tal previsão evidencia a preocupação legislativa em abarcar situações em que o sujeito passivo encontra-se em condições de vulnerabilidade que o tornam incapaz de se defender ou de compreender o significado do ato. Isso abrange, inclusive, vítima maior de 14 anos.
Ainda no espectro das circunstâncias agravantes, o § 3º aumenta a pena para 10 a 20 anos caso a conduta resulte em lesão corporal de natureza grave. Já o §4º, em consonância com o princípio da proporcionalidade, prevê reclusão de 12 a 30 anos se da conduta resultar a morte da vítima.
Tais disposições são claras ao enfatizar que o agravamento da lesão ao bem jurídico protegido — seja ele a integridade física ou a vida — deve implicar em maior censura penal.
Consentimento da vítima
O § 5º, incluído pela Lei nº 13.718, de 2018, reitera a irrelevância do consentimento da vítima ou de sua experiência sexual anterior para a configuração do crime.
O dispositivo zela para que os preconceitos sociais e a estigmatização não sirvam de escudo para eximir o agressor de sua responsabilidade penal. Ou seja, afasta-se qualquer tentativa de relativização da conduta.
Em consonância, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que
“o consentimento da vítima menor de 14 anos, bem como sua eventual experiência sexual anterior, é juridicamente irrelevante para afastar a configuração do crime de estupro de vulnerável” (STJ, HC 306.430/SP).
A jurisprudência consolidada, ao aplicar o artigo 217-A, reafirma a interpretação rígida e protetiva da norma. O Tribunal da Cidadania vem reiteradamente repelindo argumentos defensivos que buscam desqualificar o tipo penal com base em alegações de consentimento ou maturidade da vítima.
Em uma de suas decisões paradigmáticas, o STJ fixou o entendimento de que
“não cabe ao julgador aferir a maturidade sexual do menor de 14 anos, pois o legislador, em clara opção de política criminal, entendeu por bem estabelecer uma presunção absoluta de incapacidade para o consentimento em tais situações” (STJ, HC 597.014/RS).
Conclusão
Em conclusão, o artigo 217-A do Código Penal é um marco na proteção da infância e juventude contra a exploração sexual.
A norma harmoniza-se com os valores mais caros à ordem jurídica. Ela estabelece uma presunção absoluta de violência e ao prever sanções severas para as condutas descritas. Além disso, tal norma acaba protegendo de forma inequívoca os vulneráveis e assegurando que a resposta estatal seja proporcional à gravidade da ofensa.
Como bem sintetizou Nelson Hungria,
“a legislação penal não pode fechar os olhos para os abismos que a devassidão abre sobre os mais indefesos; a missão do Direito Penal é levantar uma barreira intransponível contra a degradação da dignidade humana, sobretudo quando esta se manifesta na pessoa da criança, ainda não plenamente inserida no mundo das responsabilidades e discernimentos”.
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