Crime de escravidão não exige restrição de locomoção

Crime de escravidão não exige restrição de locomoção

* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.

Decisão do STJ

A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Recurso Especial n. 2.204.503, reafirmou a já consolidada jurisprudência brasileira de que a configuração do delito de redução à condição análoga à de escravo (previsto no Art. 149 do Código Penal) não exige que os trabalhadores sejam privados de sua liberdade de ir e vir.

CP

Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:

Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.   
A tipificação penal é alcançada pela simples submissão a condições degradantes de trabalho.

O STJ reformou a decisão de segunda instância que havia absolvido os réus, assentando que a restrição da liberdade de locomoção é apenas uma das formas de cometimento do delito, mas não a única.

Entenda o caso

O Ministério Público Federal interpôs o recurso especial contra decisão do TRF1, que havia mantido a absolvição dos responsáveis por uma fazenda.

O Tribunal de origem, apesar de reconhecer a existência de precariedade e violação de direitos trabalhistas, afastou o crime por não ter sido comprovado o cerceamento da liberdade de ir e vir.

Os fatos, considerados incontroversos pelas instâncias ordinárias, foram demonstrados pelo relatório de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego, que identificou 13 trabalhadores submetidos a condições degradantes em 2008, em propriedades rurais na Bahia.

Condições subumanas

Ademais, as condições subumanas detalhadas no conjunto probatório incluíam:

  • Alojamento Precário: trabalhadores alojados no meio do mato, dividindo-se entre um ônibus velho e um barraco de plástico preto, sem piso e sem energia elétrica.
  • Água Imprópria: água para consumo armazenada em caminhão-pipa velho e enferrujado, estacionado sob o sol, sendo consumida sem tratamento.
  • Higiene e Saneamento: ausência total de instalações sanitárias, forçando os trabalhadores a fazer suas necessidades no mato. O local para banho era improvisado com pedaços de plástico sustentados por forquilhas.
  • Alimentação: refeições preparadas ao lado do ônibus, em fogão improvisado no chão.
  • Segurança: falta de fornecimento adequado de equipamentos de proteção individual.

O Ministro Relator, Sebastião Reis Júnior, concluiu que essas circunstâncias configuravam condições degradantes de trabalho na acepção jurisprudencial consolidada.

Além disso, o Ministro ressaltou que se tratava de pessoas em situação de extrema vulnerabilidade social, aliciadas em contexto de miserabilidade e propensas à submissão a condições desumanas que visavam à redução máxima dos custos da atividade empresarial, sendo que os recorridos tinham pleno conhecimento dessas condições.

Por fim, o provimento do Recurso Especial resultou na cassação do acórdão absolutório e no reconhecimento da tipicidade da conduta.

A decisão firmou a tese de que a submissão a condições degradantes de trabalho é suficiente para a tipificação do crime de redução à condição análoga à de escravo, sendo prescindível a restrição física da liberdade de locomoção.

Os autos retornaram ao Tribunal de origem para que prosseguisse na análise das demais alegações defensivas que haviam ficado prejudicadas pela absolvição anterior.

Análise jurídica

Claramente a situação narrada pelo MP pode enquadrar-se como análoga à escravidão, ou trabalho escravo contemporâneo.

Mas antes, vamos analisar pontos que podem se relacionar ao tema.

Legitimidade ativa do Ministério Público do Trabalho

O artigo 127, da CF, confere ao Ministério Público a competência para defender interesses sociais e individuais indisponíveis.

CF/88

Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

E a jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho é firme no sentido de reconhecer que o Ministério Público do Trabalho detém legitimidade para ajuizar ação civil pública para tutelar interesses difusos, direitos coletivos e individuais homogêneos, desde que demonstrada relevância social da defesa de direitos assegurados constitucionalmente.

Prescrição

No âmbito trabalhista (cobrança de direitos laborais), não se aplica a prescrição em relação ao trabalho escravo e tráfico de pessoas, haja vista que tais práticas ofendem gravemente o núcleo duro dos direitos humanos que o Estado Brasileiro se comprometeu a respeitar perante a comunidade internacional, motivo pelo qual, consoante entendimento já consolidado na Corte Interamericana de Direitos Humanos, os direitos dos trabalhadores e trabalhadoras vitimados/sobreviventes são indisponíveis.

Reconhecimento do trabalho escravo

O código penal tipifica como crime de “Redução a condição análoga à de escravo” o fato de “Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”. A pena-base é de reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.

Portanto, os elementos que caracterizam o crime de escravidão moderna são:

  • Submissão a trabalhos forçados;
  • Submissão a jornadas exaustivas;
  • Sujeição a condições degradantes de trabalho; e
  • Restrição de locomoção do trabalhador.

Não é necessária a cumulação de todos os quatro requisitos acima. Assim, basta um deles para a configuração do trabalho escravo.

Escravo contemporâneo é todo aquele submetido a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, a condições degradantes de trabalho ou que tenha seu direito de locomoção cerceado pelo empregador.

Há, ainda, a Instrução Normativa 2 do Ministério do Trabalho e Previdência, que dispõe sobre os procedimentos aos quais a Auditoria-Fiscal do Trabalho deve observar nas situações elencadas, em especial os artigos 23 e 24:

Art. 23. Considera-se em condição análoga à de escravo o trabalhador submetido, de forma isolada ou conjuntamente, a:

I - trabalho forçado;

II - jornada exaustiva;

III - condição degradante de trabalho;

IV - restrição, por qualquer meio, de locomoção em razão de dívida contraída com empregador ou preposto, no momento da contratação ou no curso do contrato de trabalho; ou

V - retenção no local de trabalho em razão de:

a) cerceamento do uso de qualquer meio de transporte;

b) manutenção de vigilância ostensiva; ou

c) apoderamento de documentos ou objetos pessoais.
Art. 24. Para os fins previstos no presente Capítulo:

I - trabalho forçado é aquele exigido sob ameaça de sanção física ou psicológica e para o qual o trabalhador não tenha se oferecido ou no qual não deseje permanecer espontaneamente;

II - jornada exaustiva é toda forma de trabalho, de natureza física ou mental que, por sua extensão ou por sua intensidade, acarrete violação de direito fundamental do trabalhador, notadamente os relacionados à segurança, saúde, descanso e convívio familiar e social;

III - condição degradante de trabalho é qualquer forma de negação da dignidade humana pela violação de direito fundamental do trabalhador, notadamente os dispostos nas normas de proteção do trabalho e de segurança, higiene e saúde no trabalho;

IV - restrição, por qualquer meio, da locomoção do trabalhador em razão de dívida é a limitação ao direito fundamental de ir e vir ou de encerrar a prestação do trabalho, em razão de débito imputado pelo empregador ou preposto ou da indução ao endividamento com terceiros;

V - cerceamento do uso de qualquer meio de transporte é toda forma de limitação ao uso de meio de transporte existente, particular ou público, possível de ser utilizado pelo trabalhador para deixar local de trabalho ou de alojamento;

VI - vigilância ostensiva no local de trabalho é qualquer forma de controle ou fiscalização, direta ou indireta, por parte do empregador ou preposto, sobre a pessoa do trabalhador que o impeça de deixar local de trabalho ou alojamento; e

VII - apoderamento de documentos ou objetos pessoais é qualquer forma de posse ilícita do empregador ou preposto sobre documentos ou objetos pessoais do trabalhador.  

Arcabouço normativo internacional relacionado ao trabalho escravo

No âmbito internacional, podemos citar algumas normas aplicáveis ao combate a escravidão contemporânea.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pela Assembleia Geral da ONU em 1948, sendo fonte dos sistemas de direitos humanos e o principal regramento de universalização da proteção do ser humano, dispõe, em seus artigos IV e XXIII, que:

Artigo 4

Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas.
Artigo 23

1. Todo ser humano tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego.

A Convenção nº 105, da OIT, ratificada pelo Brasil, e promulgada pelo Decreto nº 58.822, de 14/07/1966, obrigam os países signatários a suprimir o trabalho forçado.

E com a assinatura da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) também foi reforçado o compromisso brasileiro de que “Ninguém poderá ser submetido a escravidão ou servidão e tanto estas como o tráfico de escravos e o tráfico de mulheres são proibidos em todas as suas formas”.

Por fim, o Brasil tem, desde 1995, o compromisso com a erradicação do trabalho escravo, tratando-se de uma política de Estado, e não de governo.

PEC do Trabalho Escravo

Em 2014, tivemos a promulgação da Emenda Constitucional nº 81, conhecida como PEC do Trabalho Escravo, que prevê o confisco de propriedades rurais e urbanas que possuem trabalhadores submetidos à escravidão.

CF/88

Art. 243. As propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no art. 5º.

Parágrafo único. Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e da exploração de trabalho escravo será confiscado e reverterá a fundo especial com destinação específica, na forma da lei.

Tráfico de pessoas

O tráfico de pessoas concretiza-se por meio de ações que caracterizam o recrutamento, o deslocamento ou acolhimento de pessoas.

Nos termos da legislação, configura-se por meio de ações voltadas a agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, utilizando-se de formas de coerção, como a força, fraude, engano, abuso, violência ou outras, com o propósito de explorá-las em condições de trabalho análogo ao de escravo, em todas as suas formas, ou para finalidades diversas tais como exploração sexual, remoção de tecidos, órgãos ou partes do corpo ou para fins de adoção ilegal.

Sob o viés da exploração laboral, traduz-se num ato complexo para tirar vantagem injusta do trabalho de uma pessoa. Consubstancia-se pela existência de condições de trabalho inconsistentes com a dignidade humana, particularmente duras e abusivas.

Geralmente o tráfico humano é praticado para fins de exploração sexual, trabalho escravo ou retirada de órgãos ou tecidos.

O que caracteriza o tráfico humano é a retirada da pessoa de seu ambiente (cidade, estado, país), ficando com sua liberdade de locomoção limitada e submetida a exploração (sexual, laboral, retirada de órgãos).

A limitação da liberdade obtém-se de várias formas, em especial através da retenção de documentos, passaporte, celulares, agressões, ameaças psicológicas, risco de morte de familiares.

A dinâmica do tráfico de pessoas é a seguinte:

escravidão

Escravidão moderna

No tráfico para trabalho escravo, os aliciadores são chamados de “gatos”, e geralmente fazem propostas irrecusáveis de trabalho.

O STF, notadamente no julgamento do Inquérito 3.412/AL, já havia consolidado o entendimento de que a escravidão moderna é mais sutil, e o cerceamento da liberdade pode decorrer de diversos constrangimentos econômicos e não necessariamente físicos.

A submissão a trabalhos forçados, jornada exaustiva ou condições degradantes basta para a caracterização do crime.

Essa interpretação está em consonância com compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, como a Convenção Suplementar sobre a Abolição da Escravatura (Decreto n. 58.563/1966), a Convenção Americana de Direitos Humanos (Decreto n. 678/1992) e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (Decreto n. 592/1992).

Veja como o tema foi cobrado em prova

MPT – 2024

A vista das condutas elencadas nas assertivas seguintes, assinale a alternativa em que todas as situações retratam características típicas do trabalho escravo contemporâneo, de acordo com a normativa nacional e internacional:

I – A submissão do trabalhador a serviços forçados; a retenção dos documentos do trabalhador; e o pagamento de remuneração de modo fracionado.

II – A imposição ao trabalhador de jornada exaustiva; a não realização dos exames médicos periódicos; e a restrição da locomoção do trabalhador.

III – A retenção dos objetos pessoais do trabalhador; a violação da sua correspondência; e a vigilância ostensiva no local de trabalho.

IV – A sujeição do trabalhador a condições degradantes; a cobrança abusiva de adiantamento salarial; e o impedimento físico para deslocamento externo.

Assinale a alternativa correta:

a) Apenas as assertivas l e III estão incorretas.

b) Apenas as assertivas l e IV estão incorretas.

c) Apenas as assertivas II e III estão incorretas.

d) Todas as assertivas estão incorretas.

e) Não respondida.

Gabarito: D.

Conclusão

Infelizmente, ainda é comum encontrar trabalhadores submetidos a condição análoga à escravidão, também conhecida como escravidão contemporânea.

Estima-se que, de 1995 a 2023, foram encontrados 63.516 trabalhadores em condições análogas à escravidão.

Por isso é imprescindível que o Estado brasileiro continue aplicando recursos e esforços no combate a essa praga social que ainda nos aflige, e acaba por ferir de morte a dignidade desses trabalhadores.

Portanto, tema relevante para provas de direito do trabalho, processo do trabalho, direito constitucional e direitos humanos.


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