Há crime de uso de documento falso mesmo quando policial solicitar a apresentação do documento – diz o STJ (REsp 2.131.614).

Há crime de uso de documento falso mesmo quando policial solicitar a apresentação do documento – diz o STJ (REsp 2.131.614).

Queridos amigos, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao julgar o Recurso Especial 2.131.614, trouxe alguns esclarecimentos relevantes sobre o crime de uso de documento falso, previsto no artigo 304 do Código Penal.

Vamos examinar detalhadamente este caso e suas implicações para os concursos, especialmente no que tange ao “flagrante” e a configuração do crime de uso de documento falso.

De início, pergunta-se: é justo punir alguém por usar um documento falso quando foi a própria autoridade que pediu para vê-lo?

Imagine a seguinte cena:

É uma noite de sexta-feira em Brasília. Carlos, um jovem de 25 anos, dirige seu carro pela Esplanada dos Ministérios. Ele está nervoso, pois sabe que sua CNH é falsificada – comprou de um amigo há alguns meses, quando perdeu a original após uma série de multas.

De repente, Carlos vê as luzes de uma viatura da Polícia Rodoviária Federal.

O agente Souza, que recebeu uma denúncia anônima sobre um motorista com documentação falsa naquela área, faz sinal para que Carlos encoste.

“Boa noite, documentos por favor”, solicita o policial.

Carlos, suando frio, entrega a CNH falsa. O agente Souza, que já suspeitava da falsidade, examina o documento cuidadosamente e confirma suas suspeitas.

“Esta carteira é falsa. Você está preso em flagrante pelo crime de uso de documento falso”, declara o policial.

Carlos, surpreso, argumenta: “Mas eu só mostrei porque o senhor pediu! Eu nem queria usar isso. Como pode ser crime se foi o senhor que me obrigou a apresentar?”

Agora, Carlos enfrenta um processo criminal, questionando-se sobre a justiça dessa situação.

Pontos-chave do caso, ressaltando:

  • Os policiais já tinham informações de que o motorista portava documentos falsos.
  • Ao ser solicitado, o motorista apresentou uma CNH falsificada.

Nos tribunais

A denúncia pelo crime de uso de documento falso foi inicialmente rejeitada pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1).

crime

O TRF-1 argumentou que não houve comprometimento da fé pública, pois o meio utilizado para cometer o crime foi considerado ineficaz já que a pessoa só apresentou o documento porque foi coagido pelos policiais.

O Ministério Público Federal recorreu da decisão através de recurso especial.

Daí, o tema foi parar no STJ.

Entendido? Ok, antes de nos aprofundarmos na análise do STJ, é crucial entender o que constitui o crime de uso de documento falso:

Art. 304 - Fazer uso de qualquer dos papéis falsificados ou alterados, a que se referem os arts. 297 a 302:

Pena - a cominada à falsificação ou à alteração (um a cinco anos de reclusão.

– É um crime formal: consuma-se com o simples uso, independentemente de causar prejuízo efetivo.

Não exige que o usuário seja o falsificador: o crime se configura mesmo que a pessoa apenas utilize o documento falso produzido por terceiros.

Análise do STJ no caso concreto

A 5ª Turma do STJ, sob a relatoria do Ministro Ribeiro Dantas, deu provimento ao recurso especial do Ministério Público Federal, mantendo o trâmite da ação penal pelo crime de uso de documento falso. Os principais pontos da decisão foram:

a) Configuração do crime mediante solicitação policial

O STJ afirmou que o uso de documento falso constitui crime mesmo quando:

  • A apresentação ocorre a pedido dos policiais;
  • Os policiais já têm ciência prévia da possível falsidade do documento.

Fundamentação do STJ: O Min Relator argumentou que o dever de portar documento verdadeiro persiste independentemente de quem toma a iniciativa de solicitar sua apresentação.

Em outras palavras, esclareceu-se que o crime do artigo 304 do Código Penal se consuma com a mera utilização ou apresentação do documento falso, independentemente do objetivo ou resultado.

Inclusive, o Ministro Joel Ilan Paciornik, em seu voto-vista, trouxe um ponto crucial para a compreensão do caso: o conhecimento prévio dos agentes sobre o envolvimento do réu com documentos falsos não impede a configuração do crime. Isto porque, o crime de uso de documento falso visa proteger a fé pública. O conhecimento prévio dos agentes não diminui a lesão a este bem jurídico quando o documento é efetivamente utilizado.

Até porque, o crime se consuma no momento do uso do documento, independentemente das circunstâncias que levaram a este uso ou do conhecimento prévio de quem o recebe.

b) Afastamento da tese de flagrante preparado

O STJ rejeitou categoricamente o argumento de que a situação configuraria flagrante preparado, fazendo uma distinção crucial entre este e o flagrante esperado.

Vale frisar que o TRF1 tinha entendido que o caso seria um “flagrante preparado”.

O que é um flagrante preparado?

Ocorre quando a autoridade policial induz ou instiga o agente a praticar o crime e, simultaneamente, adota providências para que o delito não se consume.

Qual a consequência? É considerado crime impossível, conforme a Súmula 145 do STF: “Não há crime, quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação.”

Exemplo: Um policial disfarçado convence alguém a vender drogas e, ao mesmo tempo, garante que a transação não se concretize.

O STJ entendeu que seria um “flagrante esperado”.

O que é um flagrante esperado?

Ocorre quando a polícia, tendo informações prévias sobre um crime que está para acontecer, aguarda sua consumação para efetuar a prisão.

A consequência é que é considerado válido e não impede a configuração do crime.

Exemplo: a polícia recebe uma denúncia de que determinada pessoa está portando documento falso e aguarda que ela o apresente em uma blitz para efetuar a prisão.

Resumindo

Consolidando as diferenças nessa tabela MASSA (só o filé da muriçoca):

AspectoFlagrante PreparadoFlagrante Esperado
DefiniçãoAutoridade policial induz ou instiga o agente a praticar o crime e adota providências para que o delito não se consume.Polícia tem informações prévias sobre um crime que está para acontecer e aguarda sua consumação para efetuar a prisão.
ConsequênciaConsiderado crime impossível (Súmula 145 do STF). Não há crime.Considerado válido. Não impede a configuração do crime.
ExemploPolicial disfarçado convence alguém a vender drogas e, ao mesmo tempo, garante que a transação não se concretize.Polícia recebe denúncia de que alguém porta documento falso e aguarda que a pessoa o apresente em uma blitz para efetuar a prisão.
Atuação PolicialAtiva na indução do crime e na prevenção de sua consumação.Passiva na espera da ocorrência do crime, ativa apenas na prisão.

Veja, como vimos, no caso em questão, o STJ entendeu que a situação se enquadrava como flagrante esperado. Isto porque, os policiais tinham informações prévias sobre a possível falsidade do documento, mas não induziram o suspeito a cometer o crime. Perceba, o que houve foi que apenas criaram uma situação (a solicitação do documento) em que o crime poderia ocorrer naturalmente.

Logo, esta distinção é crucial porque reafirma a legalidade da atuação policial em casos onde há informações prévias sobre possíveis crimes. Ademais, permite que a polícia aja de forma proativa, desde que não induza ativamente à prática criminosa (flagrante preparado).

Aprofundamento: outros julgados relevantes

É possível a condenação pelo crime de uso de documento falso (art. 304 do CP) com fundamento em documentos e testemunhos constantes do processo, acompanhados da confissão do acusado, sendo desnecessária a prova pericial para a comprovação da materialidade do crime, especialmente se a defesa não requereu, no momento oportuno, a realização do referido exame.
O crime de uso de documento falso se consuma com a simples utilização de documento comprovadamente falso, dada a sua natureza de delito formal.
STJ. 5ª Turma. HC 307586-SE, Rel. Min. Walter de Almeida Guilherme (Desembargador convocado do TJ/SP), julgado em 25/11/2014 (Info 553).

Caso hipotético: em 01/05/2008, João celebrou um contrato com Pedro envolvendo um imóvel. João inseriu intencionalmente informações falsas no contrato, simulando situações que não existiram. Após alguns anos, a Polícia instaurou investigação para apurar irregularidades envolvendo esse imóvel. João passou a ser um dos investigados e, para tentar transferir a responsabilidade para Pedro, ele apresentou na apuração o documento falso (contrato). Ocorre que a falsidade do documento foi descoberta.
Diante disso, João foi denunciado pelo Ministério Público acusado de dois crimes: falsidade ideológica (art. 299 do CP) e uso de documento falso (art. 304).
O STJ reconheceu que, em razão do princípio da consunção, João deveria responder por apenas um delito e que, no caso, era o crime de uso de documento falso (art. 304).
A falsidade ideológica foi o crime-meio, que fica absorvido pelo crime-fim(uso de documento falso).
STJ. 5ª Turma. AgRg no AgRg no AREsp 2.077.019-RJ, Rel. Min. Daniela Teixeira, Rel. para o acórdão Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 19/3/2024 (Info 815).

Como o tema já caiu em concursos

(Juiz Federal TRF2 2013) No crime de uso de documento falso, pode-se prescindir da prova pericial, desde que o ilícito seja comprovado por outros meios de prova. (Certo)

Em síntese, para a configuração do uso de documento falso quando a pessoa apenas possui o documento sem apresentá-lo:

AspectoEntendimento do TRF-1Decisão do STJ
Configuração do crimeNão há crime se a exibição se dá por ordem policialCrime se configura mesmo quando solicitado pela autoridade
Conhecimento prévio da políciaTorna o meio ineficaz para lesionar o bem jurídicoIrrelevante para a configuração do crime
Lesão à fé públicaNecessária para configurar o crimeNão é exigida para a consumação do crime
FlagranteConsiderou possibilidade de flagrante preparadoCaracterizou como flagrante esperado, não preparado

Ementa:

PENAL E PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. USO DE DOCUMENTO FALSO. CNH APRESENTADA A PEDIDO DOS POLICIAIS. CONDUTA TÍPICA. FLAGRANTE PREPARADO. INOCORRÊNCIA. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. 1. “É copiosa a jurisprudência que entende que o delito previsto no art. 304 do Código Penal consuma-se mesmo quando a carteira de habilitação falsificada é exibida ao policial por exigência deste, e não por iniciativa do agente” (AgRg no REsp n. 1.758.686/SP, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 25/9/2018, DJe de 3/10/2018). 2. Se a polícia recebe informações acerca da possível ocorrência de algum crime, não há nenhuma ilegalidade em averiguá-las e, uma vez confirmadas – isto é, mesmo sendo esperada a veracidade das informações -, prender o acusado. Situação distinta do flagrante preparado. 3. Agravo regimental desprovido. (STJ. AgRg no REsp 2131614 (2024/0097868-6 de 19/09/2024, Rel. Min. Ribeiro Dantas)

Fique de olho, aposto que isso do flagrante preparado e flagrante esperado cairá em provas!


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